Para quem tem o inglês como língua materna, a maior parte das línguas europeias têm duas rasteiras muito difíceis.
A primeira é o género das palavras. Muita da energia que gasto todos os dias é empregada a tentar lembrar-me dos géneros. Claro que há muitas palavras cujo género é óbvio e fácil de lembrar, e dá-me jeito que o adjectivo normalmente venha depois do nome — tenho assim tempo para me lembrar de que deve concordar com esse nome.
Dentro da minha cabeça, dou-me os parabéns cada vez que acerto com o género de palavras como dia, sistema, problema, planeta, mapa, que terminam em “a”, mas são masculinas.
Pergunto-me qual a razão por que alguém decidiu que as palavras deviam ter género, sem pensar que isso ia complicar a vida a estrangeiros como eu. Para quem cresceu a falar inglês, não faz sentido nenhum que uma mesa seja feminina e um prato masculino, mas continuo todos os dias a fingir que tudo o que sai da minha boca sai naturalmente, e que não tenho três máquinas dentro do meu crânio a funcionar para recordar os géneros.
Um outro obstáculo grande para nós, os anglófonos, é a segunda pessoa, ou seja o tu/ você/ o Senhor/ a Senhora. Desde que comecei a aprender francês e alemão na escola, as variedades de tu/etc. sempre me pareceram um mistério, a adicionar à lista de coisas de que precisava de me lembrar para além do vocabulário, da gramática e do género das palavras … Mas como nunca tive de viver na França ou na Alemanha, tu/vous e du/Sie nunca me causaram os paroxismos de ansiedade de tu/você/ o Senhor/a Senhora.
Não só tenho de adivinhar qual o sexo da pessoa (já todos passámos por isso … é homem ou mulher?), mas ainda tenho de decidir se a/o vou tratar como tu, você ou o Senhor/a Senhora.
Se houvesse uma regra clara, seria um pouco mais fácil. Se, por exemplo, a regra fosse que uma pessoa da mesma idade ou mais nova era tu, e uma pessoa obviamente mais velha era o Senhor/ a Senhora, não haveria problemas. Ou se a regra fosse que todos os familiares, amigos e colegas eram tu, e o resto, os que nunca vamos encontrar mais de uma vez na vida, era você, isso também faria mais sentido.
Mas, não. Em Portugal, as regras são demasiadas fluídas e temos de sofrer a indignidade e a ansiedade de decidir no momento como tratar a pessoa que vamos encontrar pela primeira vez. De facto, a coisa do tu/etc. acaba por ser muito divisionista.
Há uma subserviência terrível em tratar o patrão por você, enquanto ele a trata por tu. É perturbador quando, ao sermos apresentados a alguém, lhe aplicamos um diplomático “você”, apenas para depois ficarmos a ponderar, à medida que nos tornamos amigos, quando será a altura certa para lhe dizer “sou TU, por amor de deus!!!”. Conheço bons amigos que ainda se tratam uns aos outros por você depois de mais de 30 anos de amizade, e pergunto-me se é só porque nunca chegaram ter “a conversa”.
Nem sequer existem regras concretas para as famílias. Há famílias onde toda a gente é tu, sem falha. E há famílias para quem só a relação de sangue justifica o tu, e onde os genros e as noras são você para sempre.
Há famílias que insistem em que amigos próximos da família sejam tratados pelos filhos por você na forma de “tio/tia”, o que, para ouvidos britânicos, soa hilariante e muito “Abigail’s Party”. Existem famílias que querem que os filhos usem você para os pais, enquanto os pais tratam os filhos por tu, e há pais que tratam os seus filhos por você. Se existe uma forma de distanciar-se de um filho, além de recusar abraços, é essa. Como pode dar-se “você” a um bebé? Mas os casos mais esquisitos são os dos casais que se tratam por você um ao outro sem nem sequer serem brasileiros.
Pergunto-me se este jogo das diferenças de tratamento não é um sinal da divisão de classes e do snobismo de que todos, aqui em Portugal, nos acusam a nós, os Britânicos.
É muito simpático argumentar que se está apenas a mostrar respeito para com certa pessoa ao usar você ou o Senhor/a Senhora, mas acontece que esse respeito raramente se ouve no resto, nas palavras e no tom.
Tenho sorte. Posso jogar a minha carta de estrangeira estúpida quando não tenho pachorra para decidir que forma de tratamento usar, e nessas ocasiões trato por tu quase toda a gente. Mas vocês, portugueses, não têm essa carta para jogar, e pergunto-me porque continuam a insistir em complicar as vossas vidas.
(texto traduzido do original inglês pela autora)
I’m talking about YOU!
For anyone whose mother tongue is English, most other European languages have two huge stumbling blocks that we really have to get our heads around.
Firstly, the gender thing. Much of my energy every day is taken up trying to remember what gender a word is. Of course, many words are obvious and easy to remember, ending with o’s and a’s, and it is useful that adjectives usually come after that noun, so it gives me time to remember to get it to agree with the noun it describes.
Inside my head, I congratulate myself on getting the gender of words, like dia, sistema, problema, planeta, mapa every time I say them right. This takes up a lot of mental energy.
I wonder why someone decided that words would have genders, and didn’t think that it might complicate things later. To the English-born brain, there is no sense whatsoever in a table being feminine and a plate being masculine, but I soldier on every day, pretending that what comes out of my mouth is natural and that I don’t have several machines inside my had trying to remember to agree article and adjective with noun.
The other big stumbling block is YOU. Since I began to learn French and German as a small child, the various forms of YOU have mystified me, adding another layer of stuff to remember apart from vocabulary, grammar and gender… who is a tu/du and who is a vous/Sie? As I never lived in those countries, though, I wasn’t sent into the paroxysms of anxiety that tu/você/o senhor/o seu nome send me.
Not only do I have to work out on the spot if you’re male or female (we have all been there… is this a man or a woman?), but I have to make a split-second decision about whether you’re a you/tu or a you/você or a you/o senhor.
If there was an absolute concrete rule, it would be a bit simpler, I suppose. If it were the rule to call everyone who looked more or less one’s own age or younger tu, and anyone significantly older o senhor, it would be slightly easier. If it were the rule that absolutely everyone who is related to each other, close family friends, colleagues with whom you share an office called each other tu, and saving o senhor merely for people you are unlikely to meet again ever in your life, that would start to make a modicum of sense.
But no. In Portugal, the rules are too fluid and we have to suffer that terrible anxiety-ridden indignity of working out who calls who what, every day. Worse than fluid, the “you” thing ends up being divisive.
There’s a horrible subservience about calling your boss você, especially if he or she calls you tu. There’s an annoying itch about meeting a new acquaintance, calling them você and then wondering when, in the following weeks, months or years will be the right moment to say “please, for heaven’s sake, call me tu!” once you realise that you will be friends. There are close friends who still call each other você after thirty years, and I wonder if they never got round to “having the talk”.
There aren’t even set rules within families. There are the families who call everyone within tu, without fail. Then there are those for whom blood is the only excuse for tu, and any in-law gets the você treatment forever.
There are families who insist that close family friends are called você by the children, in the form of aunty/uncle, which, to British ears, is hilarious and oh so “Abigail’s Party”. There are parents who call their children tu, but insist upon being called você by those children. There are parents who call their children você. If there were ever a way to distance yourself from a child, apart from denying it cuddles, it’s that. How do you call a baby “você”? The creepiest and weirdest of them all are the couples who call each other você when they aren’t even Brazilian (note to non-Portuguese/Brazilians, “você” in Brazil is far more widespread and intimate than você in Portugal).
So much of the tu/você difference between families smacks of social divisiveness and snobbery, those awful things you are always accusing we Brits of.
It’s all very well claiming that you are showing a person respect by using a formal address, but so often that respect is scant… you can hear it in the tone of voice and the rest of the words being used, not in the “o senhor”.
I’m lucky. I can play my “stupid foreigner” card when I’m not in the mood for trying to make the tu/você/o senhor decision and just call anyone “tu”, but you, the Portuguese, don’t have that card to play, and I wonder, really, why you insist upon continuing to complicate things for yourselves.