No rescaldo das eleições norte-americanas e olhando para os desafios e fragilidades que a União Europeia enfrenta atualmente, vem-me ao pensamento o livro The open Society and its Enemies e os três paradoxos que Karl Popper enuncia – da tolerância, da democracia e da liberdade. O paradoxo da tolerância elabora a ideia de que a tolerância ilimitada pode levar ao desaparecimento dos tolerantes. Isto é, quando as ideias intolerantes não puderem ser confrontadas com argumentos racionais (porque se sai do campo da lógica e se suprime a crítica construtiva e o debate sério e verdadeiro, assente em factos), pode impedir-se a livre expressão dos intolerantes para que os tolerantes não acabem aniquilados.
A par deste contexto europeu e mundial, fui confrontada na semana passada com o incitamento ao cancelamento do perfil público “Pérolas da Urgência” nas redes sociais. Em perfis individuais/pessoais era pedido, inclusivamente, que deixassem de ser seguidos por quem compactuasse com as ideias veiculadas nesta página ou por aqueles que a continuassem a seguir, independentemente da razão. Desde estudante que solto gargalhadas com as partilhas cómicas nesta página que ilustram a iliteracia em saúde da população. Na maior parte das vezes, os posts servem para valorizar o trabalho mal remunerado e muitas vezes pouco considerados em sociedade. Como nos habituámos a que a Saúde fosse um bem gratuito, deixámos de o estimar, valorizar e sobretudo proteger. Os recursos humanos e materiais em saúde, como finitos que são, têm de ser administrados de forma a garantir o acesso aos cuidados de saúde da parte de quem deles precisa, evitando o desperdício da parte de quem gera e de quem utiliza. Quem quer que atenda pelo nome de “Pearls”, certo é que muitas vezes já se excedeu. Certo é que em determinada medida se pode considerar que incitou ao ódio e discriminação, como foi o caso do que despoletou este incidente ao trazer estereótipos relacionados com a comunidade LGBTQIA+.
Quanto a mim, que sou pela Liberdade, Igualdade, Estado de Direito e Democracia, enquanto defensora dos Direitos Humanos, só consigo conceber que a justiça passe pela salvaguarda da liberdade expressão, e que permitamos que coexistam e se veiculem princípios com os quais não concordamos. O debate de fundamentos e raciocínios é a única maneira de sair de uma bolha, de ultrapassar preconceitos, porque se ousa pensar diferente. É lícito advogar que se torna difícil refletir e ter uma discussão produtiva, intelectualmente honesta, quando na oposição se parte de premissas falsas, quando existe a contraposição de uma opinião que não é baseada em factos ou dados verdadeiros, baseados na melhor evidência científica disponível à data. Mas o ónus tem de estar sempre na nossa aptidão de luta pela verdade e liberdade. Pelo bem do futuro do mundo em que vivemos, que se combata indefinidamente pelo direito de o outro se expressar, ainda que num sentido diametralmente diferente daquele em que acreditamos. Que tenhamos sempre ao nosso dispor a possibilidade e a capacidade de refutar convicções com argumentação sólida.
No panorama nacional e internacional, o cancelamento de pessoas e a limitação de linguagem, não podem ser respostas à injustiça, sob pena de o íntegro se tornar indigno. A censura e os radicalismos ideológicos destroem os centros moderados, polarizam a sociedade, ofuscam a verdade e assassinam a Democracia. Por mais penosas que sejam as circunstâncias em que vivemos, que nunca nos tornemos intolerantes.