Algures enquanto crescíamos, esquecemo-nos de que o mundo não nos pertence. Esquecemo-nos de que é preciso protegê-lo, que é preciso parar e consentir-nos o dom tempo. O problema não é a velocidade. Nem sequer a aceleração. É a pressa. Esquecemo-nos de que para habitar o mundo não precisamos de pressa; que temos de saber habitar o presente; que temos de alimentar constantemente os vínculos que nos ligam aos que nos antecederam e a todos quantos connosco partilham a barca que desce o rio do tempo; que temos de aprender a viver no provisório, no desenraizamento e na incerteza. Esquecemo-nos de que, sem essa demora, sem essa atenção, o mundo se transforma num deserto de opacidade e fome, e não aquilo para que ele foi criado: aquele cheiro a terra molhada sob um céu da boca onde explode açafrão em pó, limalhas de lápis-lazúli e cera de abelha misturada com raspa de limão. Como um beijo.
Para aprender a ver de novo o mundo, é necessário ousar habitar uma sabedoria adaptada a seres corpóreos, seres que vivem possuídos por uma gramática sempre infiel e instável que reclama constante cuidado. Sem essa gramática não é possível habitar o mundo. Vivemos um tempo rico em conhecimento e pobre em sabedoria. Saber não é conhecer. O conhecimento aprisiona o mundo em categorias, fórmulas e conceitos. A sabedoria, pelo contrário, evita os grilhões do conceito e abandona-se ao fluxo da metáfora. A sabedoria cultiva um «tom menor» da verdade que emerge da leitura dos grandes e veneráveis textos da filosofia, da literatura, da arte, da música e do cinema. Desliza por eles, infiltra-se em personagens, no dom do espanto, por entre o seu claro-escuro, e ilumina o mundo com a sua luz ténue, titubeante e trémula. A sabedoria vacila. Como um beijo.
Aprender a ver de novo o mundo implica perceber que nem tudo depende de nós, que nem tudo pode ser submetido aos nossos interesses; implica intuir que existe «algo» lá fora, muito para além de nós, que quase nunca sabemos o que é, mas que nos reclama ainda assim proximidade, reconciliação, e que tantas vezes não se consegue facilmente reconhecer. Implica ousar habitar o mundo sem bússola, tactear, avançar, recuar porque, uma vez a caminho, não sabemos, duvidamos, questionamo-nos, o que significa que o mundo nos é indisponível, verdadeiramente inapropriável. Como um beijo.
É por essa razão o mais belo dos paradoxos, a paixão que tudo silencia, lábios nos lábios: silêncio, portanto; um étimo que tudo diz sem ser preciso dizer uma única palavra, o amor dual que ilumina e que sabe fazer sombra sobre todo o plural. Talvez nenhum outro gesto no mundo fale mais do que um beijo: conta, grita, sussurra, murmura, encanta, narra, recorda, sabe dizer cada palavra que ficou por dizer, precisamente por não haver qualquer necessidade de dizê-la.
O nosso beijo vem do basium latino. Um étimo aparentemente simples. Aparentemente apenas, uma vez que os académicos não concordam quanto à forma como o termo basium chegou ao latim. Alguns propuseram a derivação da palavra do grego antigo βάζω (bázo – «eu digo-te»), ou de βασκαίνω (baskaíno – «eu seduzo-te»). Outros ainda da palavra φάσκω (phàsko – «eu prometo», mas também «eu confio», «eu acredito em ti») porque, em última análise, a raiz deste gesto de narrar a boca de um outro quando ela silencia a minha deriva do verbo φημί (phemí – «dizer»).
Hipóteses todas elas não sem um certo romantismo, mas pouco adequadas ao rigor que a etimologia exige. Seja como for, de uma coisa o Dictionnaire étymologique de la langue latine não tem dúvidas: o aparecimento tardio da palavra latina basium sugere um empréstimo linguístico, provavelmente de origem celta. A linguagem literária, é um facto, evita este lema: Plauto, por exemplo, não conhece senão o verbo depoente osculari («beijar») e o substantivo savium («beijo»).
A toda esta incerteza oferecerá Catulo um remédio definitivo: não apenas este poeta – originário de Verona e por isso mais próximo das contaminações linguísticas dos povos nórdicos – foi o primeiro a importar para a língua latina escrita as palavras basium e basiare (claramente roubadas à oralidade), como a partir de então as duas palavras estender-se-ão a todas as línguas românicas sem quaisquer alterações de significado. Mas Catulo fará mais: saberá ainda silenciar com o seu Carmen V (Da mi basia mille, deinde centum / dein mille altera, dein secunda centum…) o cinismo pragmático de todas as azedas rãs que, invejosas do amor humano, por nunca terem saído do poço, teimam por despeito afirmar que o paraíso é aquela bola azul que, de dia, lhes surge por cima das cabeças.
Continuemos, pois, a falar em silêncio: beijemo-nos e, entretanto, percamos a conta a todas as palavras ditas e por dizer com lábios que não precisam de qualquer voz. Eduquemo-nos para este limite, para a pobreza necessária para existir, eduquemo-nos na gentileza de tudo fazer para que a arrogância – tão afim da condição humana – seja derrotada: é absolutamente fundamental, para que o mundo não acabe desvendado para sempre.
O pulsar do mundo é a sua fragilidade. Sem ela, o universo e a natureza continuariam a existir, mas o mundo não. Assumir a fragilidade do mundo significa também – porque o ser humano é um ser no mundo – aceitar dimensões da nossa condição que muitas vezes não são fáceis de admitir: que existimos e que, consequentemente, somos muito mais aquilo que nos acontece do que aquilo que decidimos; que somos finitos, contingentes, e não podemos controlar as nossas vidas; que o mal e o inferno são possibilidades históricas que podem surgir a qualquer momento; que vivemos, como anunciou Rilke nas Elegias de Duino, sempre em despedida…
É absolutamente fundamental, escreve Nietzsche em A Gaia Ciência, «iluminar constantemente os nossos pensamentos com a nossa dor e oferecer-lhes maternalmente tudo o que possuímos de sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, acaso e destino. A vida significa para nós tudo o que somos, em contínua transformação em luz e chama.» Como um beijo.