No Século XIII (1278) Dona Mor Dias propôs-se construir um convento de Clarissas junto a Coimbra, iniciando-se as obras. Vicissitudes várias levaram a que só já no reinado de Dom Dinis, por iniciativa da Rainha Isabel de Aragão, os trabalhos fossem retomados, tendo as obras terminado na década de 30 do século XIV.
Diz a lógica que estas senhoras não seriam ignorantes e irresponsáveis, construindo o convento numa zona inundável. Contudo, logo após a sua construção, o Mondego começou a mostrar o seu carácter irrequieto e imprevisível (claramente de um “Basófias”) e começou a inundar ocasionalmente os terrenos e edifícios do convento, de tal maneira que as freiras, em 1677, se mudaram definitivamente para o novo Convento de Santa Clara a Nova, localizado bem acima do temperamental rio.
O que se passou para que uma zona antes considerada segura e adequada para uma tal construção, se transformasse numa zona sistematicamente inundada?
Uma coisa muito simples: o machado, a enxada e a ovelha transformando o coberto vegetal da bacia do Mondego, de formações densas de mato e floresta, em vastas zonas agrícolas e de pastagem. Esta transformação, iniciada no século XII, após a reconquista, pacificação e repovoamento, foi-se incrementando progressivamente com o crescente aumento das áreas desmatadas e dedicadas, sobretudo à agricultura.
O que tem a ver uma coisa com a outra? Apenas isto: o coberto anterior, protegia o solo da chuva e da consequente erosão e aumentava, ao mesmo tempo, a quantidade de água infiltrada e o retardamento do escoamento superficial. Este processo resultou num aumento muito significativo da erosão e, consequentemente, dos materiais transportados pelo rio e que iriam sedimentar nas zonas mais planas, a partir de Penacova, fazendo subir o nível do leito. Simultaneamente, a diminuição do efeito de retardamento propiciado pela vegetação, assim como a maior infiltração que ela potenciava, conduziram a que o escoamento fosse mais rápido, concentrando-se mais depressa, logo aumentando drasticamente o caudal do rio.
Como resultado o leito foi subindo e as zonas que antes não sofriam inundações, passaram a sofrê-las com progressiva frequência.
Este processo não foi exclusivo do Mondego. O Vouga, o Águeda e todos os afluentes da Ria de Aveiro começaram a transportar tantos sedimentos que a barra, a partir dos séculos XVI e XVII foi, progressivamente, fechando e a Ria assoreando, até que em meados do século XVII a sedimentação fechou completamente a barra, isolando a Ria do mar obrigando a uma drástica intervenção de abertura duma saída artificial, só conseguida em pleno século XIX, em 1808.
O que tem isto a ver com o fogo? O drástico aumento das áreas destruídas por este (de valores médios entre 5 e 6 mil hectares/ano, até ao extremo de mais de 530 mil hectares em 2017) vieram acentuar este processo, de tal modo que, mesmo após as obras de regularização, realizadas nos finais da década de 70, início da década de 80, a intensidade e, de certo modo, a frequência das cheias em Coimbra se mantiveram com poucas alterações.
Recordemos que foi exactamente a partir da década de 70, que o despovoamento do interior se acentuou intensivamente, diminuindo ou acabando com um sistema de exploração que, de alguma forma, reduzia a quantidade de matéria combustível (a recolha de matos para a cama do gado e posterior utilização como estrume nos campos de milho), bem como assegurava uma vigilância de proximidade garantida pelas populações das aldeias.
Depois, ficaram apenas florestas cada vez mais abandonadas (a resina deixou de ter valor económico a partir de meados dos anos 80), generalizou-se a produção em monocultura de espécies apenas com valor industrial (pinheiro e eucalipto). Infelizmente, esta mudança não foi acompanhada de qualquer política florestal, que promovesse uma adequada gestão e condução desses povoamentos (bem ilustrada pelo desaparecimento sucessivo da formação de engenheiros silvicultores – só resta um curso na Universidade de Trás os Montes). Como consequência, salvo algumas áreas bem ordenadas e geridas da propriedade ou gestão das indústrias de celulose, toda a floresta se converteu numa área de alto risco no que respeita à ignição e propagação descontrolada de fogos florestais.
Quais são as consequências? Após o fogo, o solo fica totalmente exposto à erosão, logo a um maior afluxo de sedimentos às linhas de água, o retardamento do escoamento desaparece, fazendo com que os caudais das linhas de água se acumulem mais rapidamente, determinando que, mesmo em situações de chuvadas de média dimensão, os volumes escoados pelos rios assumam valores muito mais elevados. Estes efeitos ainda são mais graves pela forma descontrolada como se faz a limpeza do material ardido.
Daí resultam cheias mais frequentes e intensas, agravando mais ainda o padrão de alteração do regime das chuvas resultante das alterações climáticas, originando chuvadas mais intensas e concentradas, acentuando o risco de cheias e também de secas, uma vez que não há infiltração, deixa de haver água que garanta os caudais dos rios durante os meses de verão.
O que fazer? Garantir que a floresta seja uma actividade económica, que não dependa apenas da produção em monocultura de espécies de interesse industrial através, por um lado, da adequada remuneração dos imensos serviços que ela presta, bem para além da produção de madeira e por outro, de um adequado ordenamento, diferenciando zonas de protecção, das zonas de prevenção.
Que serviços são estes e quem os paga?
A função de produção (madeira, cortiça, cogumelos, frutos, etc.) deverá, naturalmente, ser paga pelo proprietário.
As funções de protecção como por exemplo: prevenção da erosão, regularização hidrológica, com a resultante prevenção de cheias e secas, …) deverão ser pagas por quem delas beneficiam: Administração central e regional, municípios, proprietários de terrenos inundáveis, seguradoras, hidroelétricas, …).
As funções de conservação da natureza e dos recursos naturais, por seu lado, deverão ser pagas pelas administrações centrais e locais, bem como, pelos cidadãos em geral e, no caso das áreas protegidas ou classificadas, pelos seus utentes e por aqueles que beneficiam da maior frequência de pessoas para usufruir desses valores (comércio, hotelaria, actividades de ar livre, etc.).
As funções associadas a actividades como a caça, a pesca ou a silvo-pastorícia, de produção ou de controlo do material combustível devem ser remuneradas pelos utentes e as administrações central, regional e local, no caso das actividades de controlo do material combustível.
Finalmente, as funções de recreio e enquadramento da paisagem devem, por seu lado, ser remuneradas pelas administrações central, regional e local, os utentes, empresários e empresas, que beneficiem dos valores paisagísticos criados pela floresta (as actividades turísticas) e a população em geral.
Inverter o ciclo das cheias tem pois, de começar nas cabeceiras das bacias hidrográficas e não se resumir a crescentes e dispendiosas obras de protecção nos troços terminais dos rios. Obras essas que serão sempre insuficientes, já que as razões de ser das cheias continuarão a existir e, tendencialmente, a acentuar-se. Tão pouco será solução a relocalização de povoações já que as áreas de risco crescerão à medida que todos os processos acima descritos se mantiverem ou, como previsto, se acentuem.
Há que começar pelo adequado reconhecimento e remuneração dos inúmeros serviços assegurados por uma floresta bem ordenada, tornando de novo rentável o investimento no seu ordenamento e gestão, criando condições para que os proprietários se voltem a interessar e a envolver, já que passarão a ver o benefício daí resultante.
Deste modo, a floresta poderá ser de novo uma diversificada produtora de riqueza, baseada na responsabilidade e interesse colectivo e não na repressão cega de proprietários incapazes de uma adequada gestão, dado ela corresponder apenas a custos sem quaisquer benefícios.
Só desta forma se conseguirá inverter o ciclo de destruição em que o abandono do interior também vai afectar de modo crescente, como já hoje observamos com a intensificação das cheias, o litoral e as zonas urbanas para onde se deslocaram as populações do interior que não tinham qualquer fonte de rendimento, que não fosse uma floresta ruinosa e uma agricultura de subsistência.
Aprendamos pois a agir concertadamente e na consciência dos benefícios de um envolvimento activo numa política florestal responsável e rentável, de modo a devolver ao interior valores económicos que, neste momento, por não serem reconhecidos e remunerados, resultam apenas em custos absurdamente elevados.