No passado mês de novembro, dois dias antes da data de lançamento da maior emissão inicial de ações (IPO) da história pelo Ant Financial na bolsa de Hong-Kong, sem qualquer aviso prévio, os reguladores chineses cancelaram a emissão. A Ant faz parte da Alibaba, talvez a empresa de maior sucesso na China. O seu fundador e líder é Jack Ma, a resposta chinesa a Bill Gates. Jack Ma é um visionário que revolucionou o negócio digital com inovações disruptivas nas telecomunicações, no comércio e nas finanças. Na sua luta épica com a eBay, Jack Ma caracterizava a estratégia da Alibaba do seguinte modo: “A eBay é um tubarão no oceano, mas nós somos um crocodilo no Yangtze; se lutarmos no oceano perdemos, mas se lutarmos no rio ganhamos”. Atualmente, o negócio de maior sucesso da Ant é o dos empréstimos de baixo valor a pequenas empresas e consumidores sem acesso ao crédito bancário tradicional. A empresa atua como intermediário entre aqueles que solicitam empréstimos e os bancos emprestadores através de uma plataforma digital, cobrando uma comissão pelo serviço. A Ant faz a seleção dos créditos recorrendo a algoritmos de inteligência artificial, altamente sofisticados, que avaliam o risco de crédito de cada pedido e emitem uma decisão. Estes algoritmos, em conjunto com a natureza dos empréstimos – empréstimos de baixo valor, por prazos muito curtos e com grande diversificação por sectores de atividade -, faz com que o crédito concedido apresente uma incidência de mal parado inferior à do crédito tradicional dos grandes bancos chineses.
Ora, um mês antes data prevista para o IPO, Jack Ma fez um discurso em que criticou a banca chinesa – na qual se incluem os grandes bancos estatais –, acusando-a de estar parada no tempo e de mentalidade de “loja de penhores” por concederem empréstimos apenas mediante garantias reais. Jack Ma é uma figura respeitada na China e no Ocidente, que sempre emitiu as suas opiniões livremente e com grande regularidade. Desta vez foi diferente. Desde a data do IPO e durante três meses, Jack Ma desapareceu da esfera pública, permanecendo em parte incerta e remetido ao silêncio. Só recentemente reapareceu, num vídeo dedicado à educação em zonas rurais no qual não fez qualquer referência ao cancelamento inopinado do IPO. Entretanto, os meios de comunicação chineses têm instruções do governo para censurar qualquer especulação sobre as razões para a suspensão do IPO, não podendo desviar-se da narrativa oficial de que a operação foi cancelada porque o grupo Ant constituía um foco de risco sistémico para o sector financeiro.
Muitas outras histórias deste tipo podiam ser citadas. A BBC News relatava, em dezembro de 2015, que quase numa base semanal ocorria o desaparecimento misterioso de um líder de uma instituição financeira chinesa. Um dos mais visíveis, foi o caso de Guo Guangchang, patrão da Fosum, empresa presente em Portugal. Frequentemente, estes desaparecimentos são acompanhados por acusações de corrupção, seguindo-se um julgamento rápido em que os arguidos são dados como culpados e condenados com sentenças pesadas. Ren Zhiqiang, um destacado empreendedor do imobiliário e critico de Xi Jinping, foi condenado a 18 anos de prisão. Lai Xiaomin, presidente do Conselho de Administração da Huarong Asset Management, preso em 2018, foi recentemente condenado à morte.
O que refletem estes episódios? Uma questão que tem apaixonado os académicos é porque é que a revolução industrial ocorreu na Europa e não na China. Até ao século XV, a China estava destacadamente à frente da Europa no domínio tecnológico. É longa a lista de inovações pioneiras chinesas: o papel, a pólvora, a metalurgia do ferro, a porcelana, a bússola, os estribos dos cavalos, a máquina de fiar rotativa alimentada por energia não-humana, o lança-chamas com pistons duplos, entre muitas outras. Com tão grande avanço à partida, como foi a China ultrapassada pelo Ocidente? Muitas razões têm sido sugeridas, mas uma oferece uma interpretação possível para as tribulações de Jack Ma e afins. Na China imperial não havia um mercado livre, aberto à concorrência, nem respeito pelo direitos privados de propriedade. Uma burocracia omnipotente e discricionária reprimia qualquer individuo que, por virtude da sua iniciativa empresarial, obtivesse um grau de sucesso económico excessivo. O enriquecimento pessoal era suspeito e malvisto socialmente, exceto se se tratasse de funcionários do Estado. O Estado interferia de uma forma arbitrária e imprevisível com a iniciativa privada – proibindo certas atividades, restringindo preços, confiscando bens e rendimentos, exigindo subornos. Os privados, sem segurança jurídica sobre os seus bens e rendimentos, evitavam ganhar escala nos seus negócios para não aparecer no radar. A sobranceria dos mandarins e o seu desprezo pela atividade mercantil tinham raízes profundas. A partir da dinastia Han, os seguidores de Confúcio popularizaram a ideia de que os homens se segmentavam em quatro grupos de ocupações, classificados conforme a sua virtude e as suas contribuições à sociedade. No topo ficavam os eruditos; seguiam-se, em ordem descendente, agricultores, artesãos e comerciantes.
Hoje em dia, parece ser tudo diferente na China. Com Deng Xiaoping, o enriquecimento individual passou a ser glorioso. Muitas das maiores fortunas do mundo são agora chinesas. O país é um colosso industrial e líder mundial em muitas tecnologias de ponta; há vários anos que regista anualmente mais patentes que os Estado Unidos da América ou a Europa. Mas há coisas que não mudaram no Império do Meio: o partido permite e até acarinha o sucesso económico individual, mas não tolera que este desafie ou belisque o seu poder absoluto. O respeito pela propriedade privada e a segurança jurídica de um cidadão extinguem-se no momento em que o partido comunista entenda que o cidadão ameaça o seu poder.