No verão, três deputados (Nilza de Sena, Miguel Morgado e Bruno Vitorino) submeteram ao Tribunal Constitucional (TC) um pedido de fiscalização da constitucionalidade da lei de identidade de género que foi subscrito por algumas dezenas de outros deputados e que suscita questões muito pertinentes acerca da visão plasmada na lei e suas consequências. Focado sobretudo no domínio das políticas de educação, o pedido trata de saber, em síntese, se através das escolas o Estado pode ser veículo de uma teoria sobre o género que, de modo a apresentá-lo como experiência colectiva ou individual totalmente desligada da realidade biológica natural, marginaliza essa realidade.
O pedido motivou várias críticas por parte de quem assegura que os defensores do mesmo estão apenas interessados em perpetuar a discriminação e intolerância. A rotulagem a que se prestaram muitos dos críticos não a moderou nem o facto de um dos subscritores ser o deputado socialista Miranda Calha, que julgo poder estar seguro de que representa muitos dos eleitores da sua área política (arrisco, a título de exemplo, Guilherme de Oliveira Martins ou Jaime Gama). Porém, na exacta medida em que prova o sectarismo típico da obsessão ideológica, tal rotulagem honra todos os que assumem querer pensar e exprimir-se sobre o assunto com a mesma liberdade com que o faz quem garante que “a ideologia de género não existe”. Este texto é para essas pessoas e gostava que servisse de complemento a um outro, muito certeiro, onde Alexandre Franco de Sá sintetiza uma ideia chave: “o uso político da “teoria do género” não está centrado na ideia de que as pessoas devem ser livres e respeitadas nas suas opções sexuais. Este uso centra-se antes na ideia dogmática de que o respeito pela liberdade e pelas opções sexuais de cada um depende da aceitação de uma teoria segundo a qual as funções sociais do masculino e do feminino são mera construção cultural, e de que as instituições, os costumes, as tradições e a educação têm no seu fundamento a reprodução de um sexismo hegemónico que deve ser infinitamente exorcizado.”
1 O que o pedido de fiscalização questionou
Além de assinalar a centralidade da visão do género enquanto mera construção social sem relação, ou com uma relação irrelevante, com a biologia, mais concretamente com o sexo com que nascemos, é fundamental clarificar o conceito de ideologia usado na exposição ao TC: um arquétipo sobre a realidade que não é necessariamente determinado por ela mas antes a determina. Neste sentido, que em grande medida é idêntico ao que Marx atribui ao termo, a ideologia consiste numa abordagem alienada da realidade, de tal forma apriorística que nada nessa realidade é susceptível de alterar ou corrigir a teoria que se elaborou acerca do que essa realidade é e deve ser. O aparelho conceptual que identifica a ideologia é, portanto, e ainda segundo o entendimento aqui adoptado, fechado à realidade, à evidência empírica, ao que é objectivo.
No âmbito da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania, o Referencial para a Saúde (p.75) descreve o género como “um conjunto de qualidades e de comportamentos que as sociedades esperam dos indivíduos (…) A identidade de género é a experiência interna e individual de género profundamente sentida por cada pessoa que pode, ou não, corresponder às expectativas sociais”. Esta definição reflecte a assimilação da visão do género como pura construção social, denotando até um voluntarismo quase idílico na abordagem à experiência pessoal de disrupção entre o “género sentido” e o sexo biológico, algo que não surpreende quem estiver familiarizado com importantes referências dos chamados estudos de género que contribuiram para um ideal de autonomia e liberdade onde o corpo surge como “prisão” e a biologia como “ditadura”. A definição adoptada pelo documento citado é claramente devedora da associação proposta por John Money entre o termo “género” e “sexo psicológico”, bem como de desenvolvimentos teóricos posteriores que atribuem a um “sistema disciplinar” a visão do sexo biológico enquanto algo natural. É nesse contexto, que se contrapõe a “rigidez” do “sexo” à “plasticidade” do “género” (“sintético, maleável, variável, susceptível de ser transferido, imitado, produzido e tecnicamente reproduzido”), numa tentativa de mostrar que mesmo a especificidade ou a diferença sexual seriam meras ilusões criadas por um “aparelho sexo-político” e pelas suas técnicas multifacetadas para naturalizar o sexo.
Qualquer que seja a explicação, devia ser óbvio que não têm o direito de usar as escolas para impor a ignorância aos alunos deste país, que é o que fazem manipulando os conteúdos de ensino de acordo com o dogma da moda, nem de conotar todos os que assinalam a existência daquilo que eles ignoram como pessoas maldosas ou, na melhor das hipóteses, estúpidas. Só por isso, o pedido submetido ao TC é um serviço muito pertinente à liberdade e à democracia em Portugal.
Outro exemplo da assimilação da visão do género como pura construção social são os Guiões de Educação Género e Cidadania que a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género distribuiu massivamente pelas escolas do país para orientação dos professores no ano lectivo 2018/2019. Neles se lê o seguinte: “A caracterização dos homens e das mulheres a partir do conhecimento da sua categoria biológica de pertença abriu caminho à ideia de que seria ‘normal’ que os seres masculinos tivessem certas características psicológicas e os seres femininos evidenciassem outras, distintas. Para além desta visão dicotómica não ter qualquer fundamento científico (…) a diferença não tem sido sinónimo de diversidade mas sim de desigualdade, de hierarquia e de posse dissemelhante de poder e de estatuto social.” (Pp. 10-11 dos guiões entre pré-escolar e 2º ciclo e pp. 22-23 do guião 3º ciclo).
Note-se que, além de negarem que os comportamentos sejam afectados pelas características biológicas de homens e mulheres, os Guiões negam também a existência de evidência científica que o comprove. Ironicamente, entre os que rejeitam tais conclusões não estão apenas autores de estudos (novos e antigos) na área da endocrinologia, da psicologia, da neurologia, etc., etc., etc.. Estão também autores que aparentemente servem de referência a quem não admite o questionamento dos seus próprios dogmas. É o caso, por exemplo, de Cordelia Fine, académica da área da neurologia cujas posições têm sido duramente criticadas na substância (entre outras razões, por aparentemente supôr que a afirmação das diferenças sexuais se baseia unicamente nas diferenças hormonais e, em particular, na exposição à testosterona) e na forma (pela deturpação conveniente dos estudos a favor e contra a sua posição) mas que, apesar de alguma ambiguidade, não parece corroborar as afirmações categóricas dos Guiões antes citados: “não é correcto nem construtivo dizer que eu nego que haja diferenças sexuais nas capacidades, nas motivações ou no comportamentos; o meu livro cita repetidamente estudos de diferenças sexuais incluindo meta-análises de diferenças sexuais na assunção de risco, sexualidade, agressividade, interesses, cognição, comunicação e variáveis sociais e de personalidade’”.
Registe-se também que, ainda segundo os Guiões, a existência de um padrão sexualmente diferenciado nas escolhas profissionais ou na expressão de traços de personalidade reflecte necessariamente desigualdade, condicionamento social, preconceito ou discriminação. Trata-se de outra afirmação que a investigação científica rejeita, pois o que a observação empírica prova é que os países onde aquele padrão é mais marcado são precisamente os que melhor pontuam nos indicadores de igualdade de género, como os escandinavos, e que quanto mais se desce nesses rankings mais aquele padrão se esbate (1, 2, 3, 4 exemplos).
Tendo presente o conceito de ideologia antes referido e feito o contraste entre a realidade e o que dizem os documentos de orientação política citados, é óbvio que os autores e defensores destes, ou ignoram a evidência empírica existente ou a omitem por ser inconveniente. Qualquer que seja a explicação, devia ser igualmente óbvio que não têm o direito de usar as escolas para impor a ignorância (voluntária ou involuntária) aos alunos deste país, que é o que fazem manipulando os conteúdos de ensino de acordo com o dogma da moda, nem de conotar todos os que assinalam a existência daquilo que eles ignoram como pessoas maldosas ou, na melhor das hipóteses, estúpidas. Só por isso, o pedido submetido ao TC é um serviço muito pertinente à liberdade e à democracia em Portugal.
2 Dogmatismo e arbitrariedade pela mão do relativismo
À luz da actual lei de identidade de género, aquilo que importa para a determinação do género é exclusivamente a percepção do indivíduo e, além da identificação com o sexo contrário, deduz-se, deve reconhecer-se até a possibilidade de uma pessoa não se identificar com nenhum dos sexos, de optar por um dos muitos géneros que surgem a cada dia ou de criar um à medida. Assim, todos os cidadãos têm a obrigação de identificar o próximo utilizando, por exemplo, os pronomes associados ao género que esse indivíduo diz ser o seu, não sendo de estranhar que venhamos a ser instruídos a usar pronomes neutros de modo a não “impôr” o género à partida ou nos casos em que as pessoas se identificam como “não-binárias” (como não existem pronomes pessoais neutros para a terceira pessoa nas línguas latinas, não seria aqui possível importar mais essa solução anglófila de alargar o “they” à terceira pessoa do singular).
Como é óbvio, se o significado das palavras “homem” e “mulher”, em vez de ser reflexo de algo objectivo, resultar exclusivamente da percepção subjectiva que cada um tem sobre o que é ser homem e mulher, então o significado dessas palavras torna-se relativo, a ponto de poderem significar uma coisa e o seu contrário. Nesta matéria, o corolário do relativismo é exactamente o mesmo que quando a confusão em que ele consiste serve para perverter a apreensão de qualquer outro conceito (dignidade da pessoa, liberdade, igualdade, democracia, violência, etc.): a abolição dos significados.
Se o significado das palavras “homem” e “mulher”, em vez de ser reflexo de algo objectivo, resultar exclusivamente da percepção subjectiva que cada um tem sobre o que é ser homem e mulher, então o significado dessas palavras torna-se relativo, a ponto de poderem significar uma coisa e o seu contrário.
A actual lei de identidade de género é um produto evidente deste relativismo. A desconexão que promove face à dimensão objectiva da condição feminina e masculina é a certidão de óbito dos conceitos de mulher e homem, porque uma vez convertidos em algo relativo [ao entendimento subjectivo de cada um], podem significar tudo, logo, não significam nada.
É precisamente na abolição do significado desses conceitos que se traduz a visão do género como construção social sem relação, ou com uma relação insignificante, com o dado objectivo. Para o comprovar, não é sequer preciso apontar as decisões políticas que parecem encarar os próprios termos “homem”, “mulher”, “pai” ou “mãe” como símbolos de opressão que é preciso extinguir. Bastará talvez recordar que é a própria Judith Butler, referência incontornável da visão em causa, quem se refere explicitamente ao género como “artifício à deriva” (free floating artifice). Muito coerentemente, a autora conclui que a indefinição é o desfecho lógico da desconexão entre o género e o seu substrato objectivo (o sexo biológico). Por isso complementa a tese do género enquanto pura construção social com a tese do género enquanto experiência individual, não apenas ditada colectivamente mas sentida por cada um, “performativa” e, portanto, fonte de tantos significados quantos os que cada um lhe quiser atribuir.
Tal como lembra Franco de Sá, aos olhos de Butler é preciso concretizar “a possibilidade de subverter e deslocar as noções de género naturalizadas e reificadas que suportam a hegemonia masculina e o poder hetero-sexista”, algo que leis como a nossa ajudam a conseguir ao implantarem a visão que, aparentemente, todos deveríamos ter sobre o género: “uma identidade performativa cultivada por práticas e discursos sempre politicamente determinados e que, uma vez naturalizados e radicados numa ontologia substancialista, estabelecem estruturas de dominação.”
Esta perspectiva está construída de tal forma que desconsidera automaticamente qualquer leitura discordante mas isso não deve dissuadir a sua confrontação nem torna irrazoável observar o seguinte: a simbolização do masculino e do feminino fundada no elemento biológico não tem necessariamente de empobrecer nem significar hierarquia ou antagonismo. Na verdade, enriquece, porque contribui para uma compreensão plena do que é o ser humano. A realidade biológica que permite distinguir objectivamente os membros da espécie entre homens e mulheres, justifica a existência de espelhos dessa realidade específica que tem no aspecto fisionómico o seu traço mais visível mas vai muito além dele, tal como comprova a já referida evidência na área das ciências médicas. Como afirmam os especialistas Paul McHugh e Lawrence Meyer “a capacidade para reconhecer excepções aos comportamentos típicos de cada sexo radica num entendimento da masculinidade e da feminilidade que é independente dos estereótipos sobre o comportamento” (p.90). A distinção baseada nos sistemas reproductivos é binária e estável, independentemente de que os comportamentos individuais sejam mais ou menos típicos de cada sexo. É por esta razão que, além do Ocidente, os mais diversos ambientes culturais dotaram a sua linguagem das palavras “mulher” e “homem”, que recolhem o seu significado primordial da distinção que a realidade evidencia, concretamente da especificidade biológica que autoriza uma classificação diferente para os exemplares da espécie humana em função do seu papel sexual na reprodução da mesma. A existência dessas palavras permite, em suma, apreender de forma mais precisa a distinção subjacente, impedindo assim um tratamento indistinto – e, portanto indiferente – das diferenças que a realidade evidencia.
Do mesmo modo como a lei que procura a igualdade entre mulheres e homens à custa das diferenças não é igualitária mas indiferente (imagine-se, por exemplo, o fim das políticas de maternidade), é bom e justificado que a linguagem respeite aquela distinção dotando-nos de palavras que facilitem o entendimento através da precisão com que reflectem a realidade. Pelo contrário, se o uso de “homem” e “mulher”, bem como o dos pronomes masculinos e femininos, deixar de atender à realidade que lhes subjaz e, portanto, a palavra homem passar a aplicar-se indistintamente quer aos elementos da espécie que têm aparelho reprodutor masculino quer aos que não têm, então “homem” e “mulher” perdem a razão de ser. Como se detalha a seguir, multiplicar o significado de masculino e feminino, isto é, submetê-lo totalmente à interpretação individual e dissolvê-lo na indefinição geral, não impede sequer que ele fique refém das percepções estereotipadas que é suposto eliminar, pelo contrário…
3 A liberdade democrática frente a outro género de Diácono Remédios
A actual lei de identidade de género ilustra a dinâmica gerada pelas características ideológicas da abordagem apostada na prevalência absoluta da dimensão cultural do género (ou “género-afirmativa”): por um lado consagra um menosprezo injustificável pela realidade biológica; por outro, tem também subjacente uma lógica (substantiva e discursiva) onde a adesão ao marginal, ao incomum e ao transgressor é projectada como ideal ou expressão maior de liberdade, enquanto que a harmonia natureza/cultura, mesmo ao nível da experiência de vida pessoal, isto é, da conformidade sensorial e psíquica entre o “género sentido” e o sexo inato, surge quase como submissão perpetuadora da “desigual” normatividade vigente; como arregimentação discriminatória.
Para a saúde e o bem estar das crianças e adolescentes envolvidos, desde logo, a assimilação cultural desta dinâmica está longe de confirmar o retrato ligeiro que tantas vezes convém.[1] Porém, focamos aqui os efeitos da mesma para a liberdade e o estado de direito.
O caso do autocarro que em 2017, em Espanha, foi acusado de veicular “discurso de ódio” e “transfobia” e proibido de circular por dizer o óbvio é um exemplo claro. Na ocasião, os media foram quase unânimes em assumir como evidente a interpretação que fizeram da mesma os únicos visados, que eram determinadas forças intelectuais e políticas, como de resto as reacções provaram. Em Espanha, mas também em Portugal, optaram por classificar a notícia como um caso de ataque à tolerância e aos direitos humanos, aceitando com aparente naturalidade a censura de uma constatação indesmentível. O argumento avançado foi o de que ela era ofensiva e os media “compraram-no” sem qualquer espírito crítico (atente-se como isso é evidente logo nos títulos das peças do Observador e do El País, por exemplo). Importaria perguntar se o mesmo argumento também serviria para aprovar a censura de um anúncio que dissesse que as pessoas têm dois braços e duas pernas ou, para não ir mais longe, da liberdade de Charlie Hebdo (por exemplo) para caricaturar e denegrir figuras sagradas para outros. Felizmente, as sucessivas instâncias judiciais espanholas vieram a ter uma interpretação diferente (e com menos eco) daquela que as autoridades políticas e os media logo adoptaram como se fosse óbvia: “os delitos de ódio são algo muito diferente do que professar e difundir uma ideologia, por muito minoritária que possa ser”; “[a mensagem do autocarro] não pode considerar-se um atentado à juventude e à infância”; “as ideias, como tal, não devem ser perseguidas penalmente, em especial quando não focam especificamente nenhum grupo determinado”; “admitir a perseguição de ideias que incomodam alguns ou muitos não é democrático e pressupõe uma visão enviesada do poder político enquanto instrumento para impor uma filosofia que tende a substituir a antiga teocracia por uma nova ideocracia”.
Sucedem-se a cada passo os exemplos de que é possível destruir a liberdade em nome da liberdade ou de como, também neste tema, os maiores males se praticam em nome dos maiores bens.
Recentemente, no Canadá, foi conhecido o caso de várias esteticistas que se recusaram atender um cliente que se identificava como mulher e pretendia fazer um tratamento de depilação. Servindo-se dos mesmos pressupostos que sustentam a lei portuguesa de identidade de género, o cliente interpôs uma queixa argumentando que estava a ser vítima de preconceitos. Muitas das esteticistas em causa eram imigrantes com poucos recursos e pelo menos uma delas fechou as portas antes do desfecho do litígio nos tribunais. Neste caso a sentença foi favorável às acusadas mas tendo em conta outros factores envolvidos na decisão (nomeadamente a condição social e económica das acusadas e o facto de o queixoso ter um registo pouco abonatório, com episódios de xenofobia e assédio sexual), resta esclarecer um ponto fundamental: quanto terá pesado na sentença o argumento esgrimido pela defesa de que “a auto-identificação não apaga a realidade fisiológica”? Quanto valeria se o queixoso não tivesse certo “currículo” ou, devido a um qualquer motivo “interseccional” cujo ridículo nunca devemos subestimar, as acusadas estivessem obrigadas à contrição tão em voga do “identifica o teu privilégio” (check your privilege)?
Sucedem-se a cada passo os exemplos de que é possível destruir a liberdade em nome da liberdade ou de como, também neste tema, os maiores males se praticam em nome dos maiores bens. Entre os prejudicados estão, muitas vezes, aqueles que se diz defender mas, apesar de insólitos, esses exemplos são totalmente consequentes com a alienação ideológica do real que caracteriza a visão do género enquanto pura construção social. Eles mostram os atropelos de direitos para os quais resvala a lei que, em vez de atender a realidade, a determina por decreto.
Os colégios punidos por considerar a ideologia de género uma teoria sem qualquer fundamento científico são outro exemplo, bem como as propostas de que nos fala uma reportagem do site progressista Slate, para que os pedagogos de género vigiem os recreios porque, como afirma um deles, é nos recreios “que os padrōes estereotipados de género nascem e se cimentam. Na brincadeira livre há hierarquia, exclusão e a semente da intimidação”. Um exemplo do trabalho desta espécie de polícia de recreios consiste, por exemplo, em tirar os carrinhos aos rapazes com a justificação de que estes os “codificam” enquanto objectos masculinos,
As concepções sobre o masculino e o feminino, “mulher”, “homem”, “rapaz”, “rapariga”, “mãe” ou “pai”, tornam-se um produto subjectivo que, embora promovido em nome da diversidade, alimenta, ironicamente, os mesmos estereótipos que é suposto eliminar.
É evidentemente inútil provar a estes especialistas que a preferência por carrinhos e objectos mecânicos é a regra observada até em rapazes com menos de 1 ano (leituras complementares: 1, 2, 3, 4, 5, 6). Tal preferência será necessariamente vista como perniciosa, senão mesmo insultuosa, para quem já decidiu que ela é apenas fruto do condicionamento social, tal como também assegura a CIG nos citados Guiões de Educação Género e Cidadania – veja-se as páginas antes referidas e outras passagens nas pp. 49 e segs. dos Guiões entre o pré-escolar e o 2º ciclo, como por exemplo esta: “ao mesmo tempo que a criança (logo a partir dos dois anos) inicia o processo de formação da sua identidade de género e começa a dar provas de que conhece os estereótipos de género, surge da sua parte a exibição de comportamentos estereotipados, sobretudo, em situações não estruturadas por pessoas adultas em que pode interagir livremente com os pares. Refira-se, a título de exemplo, a escolha dos brinquedos”). Num quadro mental onde é simplesmente inconcebível que determinadas preferências possam ser reflexo da predisposição natural de um ou outro sexo (ainda que, evidentemente, venham depois a ser moldadas pelo meio social) e, pelo contrário, se afiguram sempre uma manifestação de violência “heteronormativa” cristalizada, não estranha que elas sejam proactivamente contrariadas em nome da liberdade.
Estes últimos exemplos são ilustrativos das consequências que a negação da articulação entre natureza e cultura (nature/nurture) promove por desconectar o binómio feminino/masculino da realidade biológica sexual de base. Desse modo, as resultantes concepções sobre o masculino e o feminino, “mulher”, “homem”, “rapaz”, “rapariga”, “mãe” ou “pai”, tornam-se um produto subjectivo que, embora promovido em nome da diversidade, alimenta, ironicamente, os mesmos estereótipos que é suposto eliminar.
Trata-se de uma ironia consequente com os pressupostos de partida, nomeadamente com duas características já afloradas: discricionariedade e subjectivismo resultantes da visão relativista sobre o género, por um lado, e, por outro, lógica apologética do transgressor e do inusual. Ainda que por antinomia, também a determinação daquilo que constitui uma prática discriminatória ou um discurso ofensivo fica subordinado a uma variedade imprevisível de impressões individuais e grupais, muitas delas injustificadas e até obsessivas. Na prática, está sujeita apenas à discricionariedade do agente, que tanto pode ser um professor como uma entidade com a incumbência de monitorizar a aplicação das políticas de género. Neste contexto, não deve surpreender que a mera preferência das raparigas por brinquedos mecânicos possa bastar para alimentar a certeza de que se está perante pessoas “presas no seu próprio corpo” mas, simultaneamente, essa mesma preferência nos rapazes possa ser encarada exactamente de modo contrário, ou seja, como fruto de estereótipos impostos pelo meio, e baste para os impedir de brincar com carrinhos ou para motivar sessões “inclusivas” onde são obrigados a adoptar expressões, práticas e formas de interacção tipicamente femininas, quase como forma de expiação.
A variedade de percepções acerca do que constitui ou não um estereótipo, uma ameaça sexista, uma discriminação, etc., contempla as mais criativas e contraditórias projecções, algumas delas mais surreais que reais, dignas do que poderíamos chamar “Diáconos Remédios progressistas”, para evocar uma conhecida personagem de Herman José. A diferença, porém, é que ao contrário do original, cujas pulsões censórias e patética inclinação para descortinar ofensas e motivos de escândalo até no mais inocente e desopinado dos gestos geravam repulsa, a influência dos Diáconos Remédios progressistas tem vindo a ser passivamente aceite, não obstante agredir claramente a liberdade de aprender, de ensinar e até de escolher brinquedos. De igual modo, a legítima preocupação que esta situação – e o confrangedor enquadramento cultural que a promove – suscita em pais, educadores, representantes políticos e sociedade em geral, é retratada como uma postura odiosa que atenta contra os direitos humanos.
4 Pensar o totalitarismo relativista com a ajuda de Orwell
A tensão com a realidade que caracteriza a visão do género como pura construção social e que justifica a sua apresentação como produto ideológico é ambivalente, porque essa visão nem parte da realidade nem se sente desautorizada por ela. Na verdade, precisamente porque a realidade biológica da diferença sexual lhe é indiferente para a compreensão da distinção masculino/feminino, as consequências práticas em que essa indiferença se traduz não são nunca entendidas pelo activismo de género como factor de revisão ou correcção dos seus adquiridos. Assim se despreza o dado natural, quer enquanto recurso de validação científico-positiva, quer enquanto recurso axiológico que ajuda o conhecimento humano e a consciência moral ao oferecer indicações de sentido sobre o razoável e o irrazoável, o certo e o errado, o aceitável e o abusivo.
Aqui chegados é importante sublinhar o seguinte: numa sociedade civilizada espera-se que as pessoas sejam respeitosas e correspondam educadamente à vontade do próximo em ser tratado pelos pronomes que quiser, mesmo que esses pronomes não guardem nenhuma relação com a realidade que lhes deu sentido. O que aqui se discute é que essa vontade configure um direito, porque tal tornaria legítimo impor aos outros a obrigação de nos tratarem como nós achamos que devemos ser tratados, mesmo quando isso significa ignorar a realidade que fundamenta o significado das palavras e aceitar (como se fosse uma verdade inquestionável) que não satisfazer essa nossa vontade é ofensivo. O direito de um homem a identificar-se como uma mulher não consubstancia um direito a impor essa mesma visão aos outros, e menos com base no argumento perfeitamente subjectivo de que não o fazer é um insulto. Quer pelo conhecimento objectivo que ignora, quer pelas consequências em que se traduz o relativismo que a forja, uma lei que estipule tal obrigação, além de iliberal e indigna de um Estado de Direito democrático, reveste um carácter orwelliano, porque impõe uma leitura sobre a realidade que esta desmente de forma categórica e objectiva.
Tal como em “1984”, o Estado que obriga os cidadãos a ignorar a realidade da pertença sexual no momento de se dirigirem ao próximo ou de usarem os pronomes fundados nessa realidade indesmentível, é um Estado que castiga quem diz a verdade.
Embora não possa alongar-me sobre o assunto, é importante reter que a fundamentação na realidade biológica (ou na natureza) dos conceitos de “mulher”, “homem” e de outros que lhe são conexos, como “maternidade” e “paternidade”, só se afigura um veículo de desigualdade e discriminação em alguns círculos intelectuais do Ocidente, que arrogam para as suas crenças o estatuto de universalidade que não têm. Mostra-o, desde logo, o facto de os mais diversos ambientes culturais encararem a preservação da ligação dos conceitos à diferença sexual objectiva como uma forma adequada de discernir a plenitude e complementaridade do humano.
Neste particular, note-se que a novilíngua de “1984”, de George Orwell, não consistia apenas numa linguagem nova mas sim na destruição do significado da existente a partir do seu desenraizamento da realidade, de tal maneira que 5 podia ser o resultado de 2+2 se o Ministério da Verdade quisesse. Era isto o “doublespeak” e, tal como em “1984”, o Estado que obriga os cidadãos a ignorar a realidade da pertença sexual no momento de se dirigirem ao próximo ou de usarem os pronomes fundados nessa realidade indesmentível, é um Estado que castiga quem diz a verdade. Em vez de ser definida pela verdade, a lei desse Estado define-a à força e, para mais, com base num dos germes da psique sectária e tirânica: a hipersensibilidade selectiva da vitimização que, no fundo, não passa de uma forma perniciosa de narcisismo.
Os traços orwellianos de semelhante entendimento revelam-se na total inconsistência dos seus pressupostos e nos absurdos a que conduz. Se basta a vontade para determinar o género de alguém e a realidade biológica do sexo não importa, com que fundamento se pode dizer a um homem que se identifica como mulher para poder aceder à reforma mais cedo, que não é uma mulher? E com que fundamento se impedem homens de participar em provas femininas ou se admitem as queixas das atletas que protestam? Não estarão essas “biomulheres”, como diria Preciado, a perpetuar a “ditadura da biologia” e a “transfobia”?[2]
Longe de serem fake news, estes casos são antes a derivação lógica da assimilação legal de uma teoria delirante que, para cúmulo, parece exigir o reporte de notícias evidentemente falsas como se fossem verdade. É o caso daquelas que nos “informam” sobre a gravidez de homens mesmo que, na realidade, se trate de mulheres que mantiveram o seu aparelho reprodutor mas passaram a identificar-se como homens. A facilidade com que muitos dos proponentes da teoria em causa aparentemente admitem ficções deste tipo e exigem a sua aceitação aos demais, contrasta com a dificuldade em admitir (e não apenas em responder, sublinhe-se) questões como as seguintes: se basta a vontade para a identificação sexual de alguém e a realidade biológica não importa, porque é que há-de contar a da altura ou da idade, que são aliás realidades biológicas bem menos fixas e evidentes que a do sexo? Se uma pessoa se considera um sexagenário de 1,60m “preso no corpo” de alguém com 30 anos e 1,80m, com que direito se impede que ela seja reconhecida como tal? Quem são os outros (e o Estado) para dizer a essa pessoa que ela não é quem diz ser e lhe negar, por exemplo, o direito à reforma?
É natural que se considerem estas e outras hipóteses absurdas mas não é possível negar a relação que guardam com os pressupostos da actual lei de identidade de género, segundo os quais é razoável que a lei identifique as pessoas de acordo com a percepção que têm sobre si próprias, independentemente daquilo que a realidade diz. Se se considera legítimo que o Estado obrigue os cidadãos a referir-se a um homem como se fosse uma mulher, até que ponto se pode considerar absurdo que ele exija ser tratado como alguém de 66 anos? Afinal de contas, porque é que há-de poder ser uma mulher mas já não uma mulher em idade de reforma?
Figuras públicas como Daniel Oliveira acusam de propagar a “novilíngua” precisamente quem contesta uma visão que é a ilustração perfeita de que “2+2=5 se o partido quiser”, o que é no mínimo irónico. E chega a parecer cínico se, além da relação dessa visão com a verdade, consideramos o facto de a sua aplicação política não prescindir sequer do condicionamento e da censura de quem neste tema insiste que 2+2=4.
Os defensores deste estado de coisas apresentam-no como um fruto da moderação política e como algo que deveria ser aceitável de forma quase acrítica por qualquer pessoa de bem. Compreende-se: para que vingue uma visão cujo extremismo, além de visível nas consequências, nunca foi escondido pelas referências teóricas de base, é preciso insistir à saciedade no “extremismo” da posição moderada. Trata-se, claro, de um erro de paralaxe mas o certo é que essa visão será tanto mais difundida quanto mais calibrado estiver um aparelho discursivo que estigmatiza a discordância e dissuade a resistência. Mesmo que a adesão seja superficial e alimentada pelo hipermediatismo típico dos nossos dias, é um inegável êxito ter conseguido que tantos se sintam obrigados a aceitar tanto por tão pouco. De igual modo, não pode deixar de impressionar a facilidade com que nos convertemos hoje ao que concordávamos ser absurdo ainda ontem e com que adoptaremos a mesma postura amanhã graças a uma dinâmica seguidista absolutamente previsível, onde se mistura, em maior ou menor grau, falta de densidade e necessidade de aceitação ou de parecer moderno.
Em Portugal como noutros países, há muita gente que não aceita este estado de coisas e não é ignorante nem maldosa, ao contrário do que asseguram correntes de opinião que, até pelas mostras de afinidade a que se prestam amiúde, não merecem qualquer crédito. Os políticos que têm a coragem de dar voz a essas pessoas, como fizeram os deputados referidos antes, honram um património inestimável da democracia e representam muito mais gente do que talvez imaginem.
Este texto reflecte exclusivamente as opiniões do autor.
[1] Segundo a jornalista Helen Joyce, editora de finanças da revista Economist, no contexto das intervenções terapêuticas assentes na estratégia “género-afirmativa” – destinadas a incentivar a rejeição do sexo inato -, vem aumentando a tendência para aplicar tratamentos hormonais inclusivamente a adolescentes e crianças com 5 anos ou menos e sem diagnóstico de qualquer disfunção fenotípica, física (hermafroditismo) ou mental. De acordo com Joyce, a abordagem no RU é prudente se comparada com o que acontece nos EUA, onde a visão “género-afirmativa” tem ainda mais força: “Terapeutas do Centro Infantil e Adolescente da Universidade da California apoiaram a transição social (mudança de nome, pronomes e vestuario) de crianças a partir dos 3 anos. Johanna Olson-Kennedy, na misma linha, defende mastectomias en rapazes trans (raparigas de nascença) logo aos 13 anos.”.
[2] Em 2016 o Comité Olímpico Internacional deixou de requerer que os atletas levem a cabo cirurgias de mudança de sexo e tratamentos com hormonas de sexo cruzado para poderem competir como membro do outro sexo. Nos EUA a adopção da política de auto-identificação de género tem produzido aponta algumas consequências, segundo Helen Joyce: “As medalhas de ouro e prata numa competição do Connecticut de 100m femininos foram para rapazes de nascença. Nos meses mais recentes, as competições de natação nos EUA e de atletismo no Canadá mudaram também para a auto-identificação de género. No próximo ano, a maratona de Boston também vai mudar e a julgar pelos resultados anteriores, cerca de 150 homens podiam ganhar a corrida das mulheres simplesmente mudando de identidade. Em Outubro, Rachel McKinnon, uma mulher trans, tornou-se campeã do mundo numa competição de ciclismo. Quando a terceira classificada se queixou de que um homem beneficiava de uma vantagem injusta, McKinnon acusou-a de transfobia.”