Se o Natal servisse para celebrar a nossa bondade, não nos chegaria hoje à mesa. Aquilo que faz desta festa cristã uma tradição que resiste é a mensagem de que a luz é uma excepção e não a regra. Amaciámos os textos bíblicos num cenário rústico e terno, em jeito de uma selfie de família pós-parto numa espécie de Airbnb mais selvagem. José, Maria e os pastores nos campos diriam, todavia, que, estando alguma coisa a começar no nascimento daquela criança, a memória a descreveria como escura, muito escura. O presépio original é uma experiência perturbadora e os anjos nocturnos, antes de paz, inspiram pânico.

Diante do Natal é preciso não ter medo. Aliás, os ateus que o desprezam possuem mais bom senso do que os vulgares fãs da festa. A alegria que vem com a mensagem de que Deus se fez bebé, antes de ser um sentimento é um estranho anúncio: “o que pode pacificar os homens é o facto de a glória ser para Deus”. Forçar familiaridade com o nascimento de Jesus é, neste sentido, altamente contra-producente. O bebé vai crescer para ser um homem que se familiariza com todo o tipo de pessoas e circunstâncias que dificilmente celebraríamos à mesa. É mesmo preciso não ter medo do Natal.

A história do Natal, seguindo o seu curso, acabará no lado errado dela. Crescida, a criança Jesus vai envolver-se com os piores. E uma ironia sobressai agora: quanto menos acreditamos em pecado, mais evitamos aqueles que nele se especializam. Dois mil anos depois, a nossa religião pode ser pouca mas somos muito selectivos com a nossa companhia. Nessa medida, deveríamos ler urgentemente as cenas bíblicas em que Jesus se dar com os ruins escandalizava os que naturalmente os evitam. De certo modo, quem na altura se escondia atrás da religião pode ser hoje o que, não professando nenhuma, lhe perpetua os achaques.

O que é contado no nascimento, crescimento, vida, morte, ressurreição e ascensão de Jesus nem sequer rasa a lengalenga dos bons sentimentos que tendem a ser associados ao Natal. Se quisermos ser honestos diante dos evangelhos, o que a humanidade no geral tem para oferecer a Jesus é uma rejeição clara em forma de pena de morte. Se fôssemos assim tão bons como nos esforçamos nesta quadra paradoxal, o fim do conto era outro. Mas como tendemos a procurar a glória para nós, o que demos a Deus foi guerra—o oposto concreto do anúncio dos tais anjos naquela noite de breu.

Significa isto que a história de Natal fracassou? Pelo contrário. Mas significa, necessariamente, que ela, para ser o que realmente é, dispensa dos nossos virtuosos sentimentos. O bem que nos cabe é assumir o nosso pior. E, nessa confissão, desistirmos de sermos contados entre os bons. E é só a partir daqui que podemos compreender a potência no facto de Jesus ser descrito como “amigo de pecadores”.

Jesus ser amigo de pecadores pode, para fazer jus ao desatino que está em causa na Escritura, repugnar-nos. Vou correr o risco de uma linguagem grosseira: é possível até que o cristianismo meta nojo quando Cristo medeia nojentos. Há um Jesus a sério a dar-se seriamente com pecadores a sério — os piores mesmo, para nós hoje aqui em 2021. O sublime não é vermo-nos no lado certo da história, porque andamos naturalmente sintonizados com a acção divina. O sublime é vermo-nos nessa lista negra, rejeitados justamente por todos, mas encontrados graciosamente por um Cristo que partilha a mesa connosco. Os bons ficaram lá fora, a censurar a nossa refeição.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR