As próximas décadas reservam-nos grandes incógnitas e grandes transformações. A transição ecológica e a incógnita das alterações climáticas (o advento de uma nova era geoclimática, o Antropoceno). A transição digital e a incógnita da inteligência artificial (o advento do transumanismo). A transição produtiva e a incógnita das migrações (de pessoas, bens, serviços e capitais, o advento de uma nova geopolítica). Serão estas transformações convergentes ou divergentes? Poderemos esperar uma Grande Transformação, um Novo Momento Polanyi?

Um Novo Momento Polanyi?

O Momento Polanyi (Karl Polanyi, A Grande Transformação, 1944) anuncia uma transformação civilizacional e cultural das sociedades quando se constata que as instituições, na sua generalidade, deixaram de acompanhar as mudanças introduzidas pelas forças produtivas e sociais dominantes. Se as três transições que enunciámos convergirem na mesma direção, poderemos estar a anunciar a próxima Grande Transformação.

Já aí está a polémica acerca de um novo regime climático, designado por Antropoceno. As ciências sociais e humanas colam-se mais às ciências naturais em busca de uma explicação, a variável climatérica deixa de ser uma variável exógena para se converter, cada vez mais, numa variável endógena. A severidade e a hostilidade do clima afetam a nossa vida quotidiana, avisando-nos de que a transição ecológica é um horizonte incontornável de sentido para a vida humana, um sentido de finitude, de limite e responsabilidade. Eis, pois, a utilidade social do respeito em toda a sua plenitude. Se não respeitarmos a natureza, não haverá coevolução benigna homem-natureza e o nosso quotidiano poderá transformar-se num verdadeiro inferno.

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A segunda grande transição diz respeito à transformação digital. A transição digital é a grande força transformadora do nosso tempo, feita de liberdade e transgressão, desde o infinitamente pequeno das nanotecnologias até ao infinitamente grande da robótica inteligente, numa viagem que que nos pode levar para lá dos limites do ser humano, em direção ao transumanismo e à pós-humanidade. A “informação bruta” produzida pelas tecnologias da informação e comunicação é a matéria-prima do século XXI e a “economia crowd” a nossa principal força propulsora.

A terceira grande transição diz respeito às grandes migrações, de pessoas que buscam trabalho e refúgio, de mercados de bens e serviços que buscam a melhor deslocalização para serem produzidos, de capitais que “enlouquecem” em busca da melhor rentabilidade, de plantas e animais que buscam novos habitats para poderem sobreviver. É verdadeiramente a luta pela vida.

E perante esta tripla transição, será que os seus principais protagonistas têm consciência, em toda a sua plenitude, da força transformadora da sua convergência e da força destruidora da sua divergência. É certo, há muitos sinais contraditórios e suspeições recíprocas. A comunidade ecológica suspeita da arrogância tecnológica e digital, enquanto os atores do digital, marcados pela desmaterialização e a eficiência, se consideram ecológicos por natureza. As duas transições desencadeiam círculos virtuosos e círculos viciosos e pegadas ecológicas e digitais mais ou menos pronunciadas. Por outro lado, e face a estas duas transições, a perceção do risco fica de tal modo vulnerável e instável que as migrações acabam por acelerar o metabolismo global e sistémico das três transições ao mesmo tempo que provocam ondas de choque em todas as direções. Veja-se, por exemplo, a conexão entre os fluxos de refugiados e emigrantes e os movimentos populistas e racistas na Europa.

Convergência e divergência das transições

Face ao advento destas grandes transformações, que nos transportam para lá das fronteiras convencionais até ao universo da extra-territorialidade, estamos perante uma realidade emergente a três dimensões sem direção e linha de rumo conhecidas. Façamos, pois, uma primeira viagem exploratória e procuremos ver, mais nitidamente, alguns aspetos que é já possível antecipar neste imenso turbilhão magmático. A duplicidade é, para já, a principal característica destes vários aspetos.

1. Ultrapassar os limites, respeitar os limites

Não devemos inverter os termos da equação, a transição ecológica é uma nova fronteira para o digital, isto é, os meios da transição digital devem respeitar os fins da transição ecológica. Se a transição digital, em certas versões, se alimenta da transgressão e do desejo de infinito ao ponto de querer “matar a morte”, a transição ecológica pertence ao reino da necessidade e da razão, da finitude dos recursos e da circularidade dos elementos. Afinal a terra é redonda.

2. O fim dos territórios, a emergência do universo extra-territorial

Se há um fator comum às três transições é a sua declarada extra-territorialidade, no sentido convencional, ou seja, elas não respeitam as fronteiras tradicionais dos Estados nacionais e criam uma espécie de terra de ninguém, bem como uma responsabilidade difusa que é, quase sempre, tida como muito conveniente. Devido à magnitude das alterações climáticas, à aceleração exponencial da tecnologia digital e à ilegalidade de muitos fluxos migratórios, temos imensa dificuldade em reconstituir a origem, o destino e os protagonistas destas profundas transformações e, quase sempre, chegamos tarde a um universo comportamental sem jurisdição apropriada ou com uma jurisdição territorial muito fragilizada.

3.  As externalidades negativas, a socialização dos prejuízos não é aceitável

Privatizar o benefício e socializar o prejuízo continua a ser a regra de ouro da teoria das externalidades negativas e do capitalismo mercantilista mais predador. Por um lado, a pegada ecológica do digital revela uma contradição insanável: os elevados consumos de energia (10%), as emissões de CO2, os consumos elevados de materiais raros e a baixa reciclagem destes materiais, a obsolescência programada de equipamentos. Por outro, a cultura produtivista das grandes plataformas com capitalizações bolsistas astronómicas não só busca a oligopolização dos mercados como facilita a evasão fiscal, a violação da privacidade e o condicionamento e a manipulação da opinião pública e dos consumidores. A lista dos efeitos externos negativos é longa e desemboca, tarde ou cedo, numa socialização dos prejuízos com cobertura conhecida, ou seja, dos contribuintes anónimos. O que poderia ser denominado como a “arte de exportar o risco moral para dentro do orçamento geral do estado”.

4. Da sustentabilidade fraca e da sustentabilidade forte

A pegada ecológica da transição digital e a pegada digital da transição ecológica. Para esta dupla transição ser bem-sucedida, não se trata de digitalizar a ecologia nem de ecologizar o digital. O problema essencial não é, apenas, de eficiência, redução, reciclagem e reutilização – a chamada sustentabilidade fraca – mas, também, de transformação e disrupção: das práticas e comportamentos, da natureza dos produtos e serviços, da natureza das organizações, dos modelos de negócio, da geografia das cadeias de valor e dos jogos entre atores – a chamada sustentabilidade forte. No fundo, trata-se de respeitar os termos da equação territorial, sendo que a transição ecológica é um objetivo do 1º grau e a transição digital um objetivo do 2º grau.

5. Cada vez mais próximo das linhas vermelhas das democracias liberais

Tendo em conta a linha descendente em que se encontram os mercados de trabalho, cada ponto de equilíbrio entre a transição ecológica e a transição digital determinará um nível autorizado de fluxo migratório compatível com as linhas vermelhas das democracias liberais. Ou dito de outro modo, os fluxos migratórios serão uma variável subordinada na exata medida em que colocam em risco os princípios democráticos dos regimes liberais dos países ocidentais. A consequência imediata será um reforço visível da gestão das fronteiras europeias e nacionais e uma política migratória comum muito mais seletiva, de acordo não apenas com as carências do mercado de trabalho, mas, também, com as necessidades específicas da política demográfica de cada país.

6. A lógica das grandes plataformas prejudica a convergência das transições

As grandes plataformas tecnológicas – GAFA e NATU – assentam nos chamados mercados biface. Recolhem dados brutos gratuitamente a montante e vendem informação paga a jusante, geralmente para fins publicitários. Estas grandes plataformas têm uma cultura produtivista porque estão baseadas em economias crescentes de escala e as multidões são o seu público-alvo. O seu crescimento exponencial só tem paralelo na sua fabulosa capitalização bolsista e a sua tendência é para serem quase-monopolistas em muitos mercados à medida que diversificam as suas operações. O seu sucesso no plano digital tem, aqui ou acolá, algumas epifanias ecológicas, mas não creio que essa seja a sua principal fonte inspiradora. De resto, os seus institutos de investigação levam-nos até ao transumanismo e à pós-humanidade.

7. A transformação das cadeias de valor e a sua nova geografia não favorecem a convergência das transições

As cadeias de valor e a sua implantação territorial andam completamente à deriva, pois seguem o princípio da “destruição criativa” e nesse movimento de deslocação para montante e para jusante da cadeia de valor alteram radicalmente a configuração dos núcleos onde se realiza a formação do valor e das mais-valias. Tudo depende do modelo de negócio adotado por quem hegemoniza a fileira, da política empresarial de preços internos à fileira e da transferência de mais-valias para efeitos de tributação final. Neste caso, a transição digital, como instrumento privilegiado da economia financeira, esmaga literalmente a transição ecológica e os fluxos migratórios operados através dos mercados de trabalho. Por exemplo, as operações de conceção e design a montante podem ser realizadas em plataformas open source e o mesmo se diga de operações de marketing digital a jusante no que diz respeito à economia crowd. Esta referência serve apenas para ilustrar a geografia muito variável das novas cadeias de valor e a sua volatilidade territorial permanente.

8. O risco sistémico e a responsabilidade difusa das multidões não favorecem a convergência das transições

A desmaterialização levada a cabo pela economia digital, o risco sistémico e interdependente, o Big Data e a sua pretensa neutralidade, a extra-territorialidade e a regulação territorial, as externalidades e a economia circular, a responsabilidade difusa da economia das multidões e a fragilidade das jurisdições em matéria de justiça ambiental e social, todos estes fatores e tendências colocam as atribuições e competências dos Estados nacionais à beira de um ataque de nervos e tanto mais quanto as jurisdições internacionais e supranacionais são, cada vez mais, meros simulacros de governança multilateral e regional. A consequência mais imediata é a proliferação de episódios e ocorrências cada vez mais aleatórias do tipo “cisne negro” e de situações frequentes de risco moral e free raider, bem como a falência das ações coletivas e das regulações públicas. O mundo está, claramente, muito mais nebuloso.

9. A febre apocalíptica ou catastrófica das grandes transformações não favorece as transições no sentido da sua convergência

O anúncio de uma nova era geoclimática designada de Antropoceno, o anúncio da chegada de um “ponto de singularidade em 2045” em matéria de inteligência artificial, bem como o advento de um transumanismo e uma nova biopolítica, a iminência de uma nova guerra fria no horizonte e a provável conexão/colisão entre os impactos das grandes migrações transcontinentais e o futuro das democracias liberais tal como as conhecemos no mundo ocidental, são algumas das linhas vermelhas que impendem sobre a governança mundial do próximo futuro. A temperatura política destas grandes tempestades anunciadas e a geopolítica que lhes está associada não deixam muito espaço aberto para abordar serenamente os assuntos da transição e da convergência entre ecologia, economia e tecnologia. Vejam-se os casos recentes da COP 21, da crise do multilateralismo, do Facebook e da violação de direitos fundamentais, da escalada do conflito diplomático com a Rússia, da nova corrida aos armamentos, ou o caos em que se encontram continentes inteiros à beira do desastre humanitário.

10. Promover a inteligência coletiva territorial e os bens comuns favorece a convergência das transições

No plano oposto, em múltiplas iniciativas empreendidas à escala humana, é possível entrever com clareza o outro lado do mundo. Falo das abordagens colaborativas e solidárias para explorar a convergência das transições. Trata-se de privilegiar a economia das multidões sob a forma de plataformas coletivas, utilizando as tecnologias digitais para promover a inteligência coletiva territorial à escala humana local e regional. A ecologia, a economia e a tecnologia poderão convergir nas seguintes áreas: as economias de energia e redução das pegadas respetivas, ao serviço da intermobilidade e contra a obsolescência e o desperdício, ao serviço da natureza pela aplicação da política dos 4R, pela mobilização e participação dos consumidores e cidadãos, pelas economias de proximidade e os consumos partilhados e colaborativos, pelas dinâmicas de inovação social inclusiva e o desenvolvimento do chamado 4º setor, pela smartificação dos territórios e sua inteligência coletiva, pelas políticas de abertura e livre acesso de dados e segurança privada. A teoria dos bens comuns e a partilha de responsabilidade que algumas destas áreas implicam serão, sem dúvida, um bom pretexto para experimentar o governo dos comuns colaborativos.

Notas Finais

No tempo de Karl Polanyi (1944) o drama dos limites, a tragédia dos comuns e a noção de risco moral não tinham o alcance e a amplitude que têm hoje. Além disso, o progresso e a utopia estavam à sua frente, hoje, à nossa frente, parece estar uma mistura acre de ansiedade e distopia. Por isso, e em face desta tripla transição, as minhas interrogações são as seguintes:

Será que, perante o drama dos limites e a tragédia dos comuns, a transição ecológica contribuirá para repolitizar o nosso tempo, recolocando a equação do tempo no registo certo?

Será que a transição e a adição digitais contribuirão para despolitizar as nossas relações pessoais e sociais, tornadas cada vez mais egoístas e narcísicas?

Será que o medo, a ansiedade e a insegurança transformarão a esfera pública num espaço de transação de inúmeros riscos e perigos que ameaçam constantemente a nossa reputação, uma espécie de grande irmandade entre o Big Data e o Big Brother?

Será que os principais protagonistas da política contemporânea têm consciência, em toda a sua amplitude, da força transformadora da sua convergência e da força destruidora da sua divergência?

Como não tenho respostas para estas interrogações e como também não tenho a certeza sobre se se trata apenas de uma conjunção infeliz de protagonistas ou se, pelo contrário, estamos a assistir ao “condicionamento de uma política do medo” que interessa a imensas corporações e grupos de interesse, deixo aqui alguns tópicos para reflexão futura, se quisermos, vários “pontos de singularidade” que, de resto, já nos acompanham há algum tempo.

  • Estamos claramente colocados entre a fragmentação geopolítica e geoestratégica, a sair do multilateralismo do pós-guerra e a entrar numa nova era de equilíbrio de poderes e áreas de influência.
  • A corrida ao ciberespaço e as várias encenações cibernéticas em redor da segurança e da insegurança serão um dos principais scripts do próximo futuro,
  • Os episódios e as ocorrências climatéricas graves e severas tornar-se-ão mais intensas e mais frequentes minando a confiança e a reputação dos estados e das organizações,
  • As guerras por procuração, os refugiados ambientais, a fome e as epidemias, o colapso dos mercados de trabalho e da ajuda internacional estarão na origem de grandes fluxos migratórios,
  • As democracias iliberais, a crise da representação política e os fascismos de várias colorações tomarão conta da ocorrência em muitos países, praticando uma política do condicionamento e do medo,
  • A transição ecológica será uma das primeiras vitimas desta nova geopolítica e geostratégia das áreas de influência, a outra vítima serão as políticas migratórias e o acolhimento dos fluxos migratórios,
  • O progresso da inteligência artificial e a singularidade transumanista acontecerão inelutavelmente, à mistura com uma despolitização generalizada por via da alienação e adição digitais.

Enquanto tudo isto acontece, as democracias liberais e participativas, a sociedade do conhecimento, a economia das multidões e das plataformas colaborativas preparam os próximos combates contra os nacionalismos, os populismos, os autoritarismos, os racismos e o regresso em força dos fascismos mais variados. O próximo combate, já anunciado, acontecerá a propósito e por causa de diversas jurisdições e regulações em matéria de proteção de dados pessoais (diretiva da União Europeia).

A terminar, e para que fique registado, o governo francês criou dois ministérios designados, respetivamente, ministério da transição ecológica e solidariedade e ministério da coesão territorial.

Universidade do Algarve