O noticiado aumento de pessoas sem abrigo ou a viverem em condições de precaridade habitacional é a prova de que estamos a atravessar um período crítico que afecta, sobeja e inegavelmente, a dignidade das pessoas envolvidas.
É inegável que as condições habitacionais indignas têm um peso incomensurável e transversal na vida das pessoas que nelas estão imbuídas, sendo que também é inegável que esta indignidade acaba por vir a traduzir-se num peso incomportável para a sociedade, na sua generalidade, que no que respeita a esta problemática simplesmente não pode ficar indiferente.
Existem várias narrativas para tentar explicar a situação aflitiva com que hoje o país se confronta. Uma dessas narrativas poderá ceder à tentação de associar a escassez habitacional portuguesa a uma suposta ganância dos proprietários e senhorios, mas tal pressuposto não parece ter estado na origem do problema de falta de habitação de Portugal, parecendo ser mais verosímil associar a crise habitacional, a título de exemplo, a um profundo marasmo ao nível das escolhas políticas que neste âmbito foram sendo feitas nos últimos anos, por inúmeros intervenientes. Esse dito marasmo e inexistência de reformas substanciais nesta área traduz-se agora numa crise habitacional que fustiga os mais vulneráveis, mas também a dita classe média, que tem agora uma dificuldade crescente no cumprimento dos seus encargos, devido sobretudo ao aumento desenfreado da inflação que acentuou problemas de clara insuficiência de rendimentos. E se num passado recente o perfil de um sem abrigo se resumia, maioritariamente, a indivíduos, especialmente do sexo masculino, com alguma dependência associada ou então com alguma debilidade em termos psiquiátricos, actualmente o fenómeno alastrou-se a casais e famílias cuja vulnerabilidade económica passou a ser o único móbil atendível para estarem a fazer da rua a sua casa.
A oferta habitacional existente no mercado tem vindo a tornar-se inalcançável para a maioria dos portugueses, sendo que o parque de habitação público, esse, não consegue de forma alguma suprir as carências existentes e às quais urge fazer frente encontrando conveniente solução.
A crise habitacional transformou-se num fenómeno de enorme complexidade que exigirá um esforço conjunto por parte de vários intervenientes, recorrendo para tal à adopção de várias estratégias e recursos.
Esse esforço já foi iniciado pela larga maioria dos municípios que já procederam à elaboração da sua Estratégia Local de Habitação, o que denota que já possuem um diagnóstico global da situação habitacional concelhia que, no quadro do programa Primeiro Direito, implica que poderão usufruir de apoios financeiros, com o propósito de promover soluções habitacionais vocacionadas para pessoas que vivam em situações tidas como indignas. No entanto, no que respeita aos intervenientes locais, é necessário que se entenda a importância que assiste à conveniente elaboração de um outro documento estratégico: A Carta Municipal da Habitação.
A Carta Municipal da Habitação tem como intenção a territorialização da dita Estratégia Local de Habitação, relacionando-a com o território onde vai ser implementada. Considerada como o principal instrumento de planeamento e ordenamento territorial, de acordo o descrito na Lei de Bases da Habitação, este documento articula-se com o Plano Director Municipal (PDM), bem como com outros instrumentos de gestão do território e estratégias previstas e aprovadas para os concelhos em causa.
A existência de uma Carta Municipal de Habitação implica que seja expectável que, numa lógica anual, a Câmara Municipal submeta à apreciação da Assembleia Municipal um Relatório que demonstre a execução da política local de habitação, o qual poderá até mesmo vir a implicar, eventualmente e em determinadas situações, a revisão da referida Carta.
Uma autarquia verdadeiramente comprometida com o cumprimento de políticas habitacionais ajustadas à população e ao território que lhe está adstrito intentará ainda esforços para a criação de um Conselho Local de Habitação, órgão consultivo ao qual caberá a emissão de pareceres sobre a Carta Municipal da Habitação, bem como acerca dos já referidos Relatórios Municipais de Habitação, assegurando ainda a possibilidade de existência de propostas de medidas e apresentação de sugestões.
Todos os municípios deveriam almejar elaborar a Carta Municipal de Habitação visto que, sendo o passo que se segue à elaboração da Estratégia Local de Habitação, requisito obrigatório para aceder a fundos comunitários, será unicamente através deste instrumento de planeamento e ordenamento territorial que será possível ambicionar proporcionar à população acesso a habitação condigna, actuando assim de forma activa na luta contra a pobreza, impulsionando positiva e determinantemente a área da acção social.
A elaboração da Carta Municipal de Habitação preconiza uma forte mudança de atitude e orientação política por parte dos executivos municipais. Este instrumento afigura-se como imprescindível no alavancar de uma política de habitação que não se resuma, unicamente, a uma lógica de obras públicas, mas, ao invés, corresponda a um sistema bem oleado, onde o sector privado também possa vir a intervir, coexistindo e actuando numa parceria conjunta, dinâmica, com o sector público, parceria essa que tenha como objectivo primordial beneficiar realmente as pessoas e os seus intentos de poder ter uma casa para morar e que continue a funcionar mesmo depois de terem terminado as verbas do PRR.