António era marmorista. É o primeiro entrevistado de Maria de Fátima Bivar Velho da Costa, em Português, Trabalhador, Doente Mental. A escritora conta que entrou no Hospital Miguel Bombarda, pela primeira vez, na Primavera de 1972. Diante da realidade com que se deparou, “só subsistiu a vivência talvez do escritor… profissional da vulnerabilidade controlada, de uma certa desprevenção no ver e no julgar”.
Leio as entrevistas aí reunidas a par das imagens que o médico José Fontes fez no Miguel Bombarda, em 1968. Distam poucos anos. António, 27 anos, Arlete, 45 anos, Eugénia, 35 anos, Graciete, 19 anos, Jesuina, 26 anos, Maria de Lourdes, 57 anos, todos tratam a escritora por senhora doutora, e estariam à sua frente de pijama, como as figuras das fotografias de José Fontes.
O fio da conversa entre Maria Velho da Costa e os pacientes é o trabalho que tinham antes de serem internados. O “pior mal” dos pacientes é, segundo afirma, “a sua incapacidade de vender a sua força de trabalho”. Quase todos eram operários. Contam o que faziam até ao momento do seu internamento. Parecem esquecidos há muito, senão de escassos pormenores. António lembra-se do seu primeiro “ataque de nervos”, por não ter sido capaz de socorrer um amigo na frente de batalha, na Guiné. “Lembro-me que nesse combate morreu um camarada meu… O rapaz pediu-me para eu o socorrer e eu peguei no rapaz a ver se o podia socorrer, mas não o pude socorrer…” Arlete lembra que, em menina, gostava da escola e de fazer ditados. Jesuina recorda que vivia numa barraca sem água.
Nas fotografias de José Fontes, os internados, de pijama, lembram reclusos. Conversam atrás das grades, descalços e sentados no chão, alguns deitados, em agonia. Consigo ouvir os murmúrios, nos corredores. Fontes fotografou o som: no refeitório, onde os pacientes comem “com uma mesma colher de zinco (com os garfos podem arrancar-se olhos, ali)”, escreveu Maria Velho da Costa; o momento em que são medicados, e se metem com o enfermeiro, reclamando, talvez, da medicação do dia. Numa imagem, um homem descasca batatas. Noutra, quatro mulheres fazem tricot. Não há silêncio, apesar da atitude meditativa ou alienada de muitos pacientes, metidos consigo, ainda que rodeados de pessoas que dão gargalhadas. A Maria Velho da Costa interessou o modo como, encerrados numa gaiola, os pacientes do Miguel Bombarda revelavam a inabilidade alienante do estado e das organizações, que importava pôr em questão num momento em que a sociedade portuguesa se transformava.
O futuro de ambos divergiu poucos anos depois. Maria de Fátima Bivar Velho da Costa, então funcionária do Ministério da Indústria e Tecnologia, tornou-se Maria Velho da Costa. José Fontes tornou-se depois radiologista.
A voz gaguejante de António, Arlete, Eugénia, Graciete, Jesuina e Maria de Lourdes permanece nas páginas de Português, Trabalhador, Doente Mental. Não imagino que o seu futuro tenha sido surpreendente. “Internados vitaliciamente” são, contudo, pessoas que “não expiraram”. “Estão lá”, afirma Maria Velho da Costa. Li com interesse, no Expresso, a entrevista a Deborah Aluh, investigadora do uso de coerção em serviços psiquiátricos portugueses, no Instituto de Saúde Mental Global de Lisboa. “Em Portugal, muitos doentes psiquiátricos ainda são obrigados a estar de pijama o dia inteiro”, declarou, como exemplo de práticas desumanizadoras.
Espanta a longevidade do “Estão lá” de Velho da Costa, à medida que vamos caminhando para uma nova era do estigma a respeito das doenças mentais: a democratização da sua aceitação e, porventura, a vulgarização concomitante, ou a sua reentrada no discurso popular e no espaço público, quer como prioridade quer como lugar comum. Maria Velho da Costa e José Fontes repararam nos pacientes do Hospital Miguel Bombarda nas horas de expediente, sublinhando a forma como era a sua exclusão enquanto força de trabalho que determinava as condições desumanas do encarceramento. Num mise en abyme, José Fontes fotografou uma gaiola de periquitos, imagem sem pessoas, em que os ouvimos cantar para ninguém.