Não é de hoje, nem de ontem. A assimilação do sionismo, ou mesmo do judaísmo, ao nacional-socialismo tem uma história longa. Basta recuar à célebre falsificação Os Protocolos dos Sábios de Sião, publicados em 1903, para encontrarmos o mecanismo da projecção a funcionar conscientemente. Ao atribuir fantasias de dominação mundial ao judaísmo, a polícia russa criou o exutório perfeito para os rancores acumulados inerentes às sociedades de grande diferenciação social e, por conseguinte, abstractas. Não é por acaso que o anti-semitismo, questões teológicas à parte, nasceu e medrou no solo ocidental; o entendimento do anti-semitismo como persistência do arcaico que o progresso eliminaria gradualmente assenta num erro de análise. Daí revestir-se de diferentes formas, com prevalência nas ideologias de esquerda; de Alphonse Toussenel, partidário do socialista utópico Fourier, com a obra Les Juifs, rois de l’époque: histoire de la féodalité financière, até ao hegeliano de esquerda Bruno Bauer, com o seu Das Judenthum in der Fremde ou a Wilhelm Marr, outro hegeliano de esquerda, autor de Der Sieg des Judenthums über das Germanenthum, a quem se credita por vezes, erradamente, a criação do próprio termo anti-semitismo. Neste sentido, mesmo as ideologias da direita contra-revolucionária – nas suas versões civilizadas – na medida em que defendem uma revolução em sentido contrário, comungam da mesma premissa moderna da esquerda, em roupagens burguesas; o nacionalismo nas suas formas mais virulentas pôde ser visto como a esquerda dos pequeno-burgueses em vias de proletarização. A geminação, aliás, estava presente no título da obra de Toussenel: a forma mais abstracta do valor, o dinheiro dos financeiros, reactualiza com meios modernos a forma social ultrapassada da sociedade de ordens. Por isso, o que importa ao anti-semitismo moderno é fazer o caminho inverso: criar uma nova forma social, concreta, cuja organicidade neutralize o poder abstracto e autonomizado do dinheiro.
Decorre daí que ambas as versões, tanto à esquerda como à direita, substituam a abstracção moderna pelo sucedâneo acusatório da concretude. Nele reencontram o sentido paranóico que não vivem na realidade. O delírio persecutório oferece-lhe um sistema inteligível onde se podem sentir em casa num mundo moderno de cujos benefícios nem em sonhos querem prescindir. Por isso a sobreposição projectiva de todas as características negativas, necessariamente contraditórias uma vez que são segregadas pelos diferentes grupos e por necessidades específicas mais ou menos contextuais, não é uma mera necessidade de propaganda, qual seja a de concentrar maniqueisticamente num só agente o mal; pelo contrário, é da natureza das coisas. Contrariamente ao anti-semitismo de cunho religioso, para o qual as acusações são sectoriais, fantástico-monstruosas ou directamente explicativas-causais (o rol é longo, mas, a título de ilustração, pode-se respigar três correspondentes àquelas acusações, o judeu assassino ritual de cristãos, o judeu do sexo masculino menstrua, o judeu envenena os poços e espalha a peste) em consequência da separação existente, isto é, presente nos costumes e juridicamente reconhecida, no corpo social, o anti-semitismo moderno, posterior à emancipação pós 1789, labora em condições difusas. O alvo já não está segregado mas vive misturado, sem marcas especificas, impostas, de reconhecimento, torna-se facilmente o significante flutuante, apto a receber todos os investimentos negativos, o que tem como condição prévia a consideração do judeu do ponto de vista racial e já não religioso.
No entanto, a tentativa de extermínio do povo judeu introduziu um elemento novo. O crime perfeito, por definição, não é crime. O malogro do empreendimento inscreveu na história uma culpa irremível. A imagem do poder ambicionado, mas totalmente abstracto que projectaram nos judeus é-lhes devolvida na forma de um crime imprescritível e inscrito indelevelmente na memória. No discurso de 4 de Outubro de 1943, na cidade de Posen, Heinrich Himmler, refere-se ao extermínio dos judeus – os cadáveres amontoados por 100, 500 ou aos 1000 – levado a cabo pelos SS, que, apesar disso, permaneceram pessoas decentes como uma «página gloriosa, que não está escrita e nunca será escrita, da nossa história». O segredo do extermínio, que esses homens de excepção deveriam guardar para sempre, fazendo-o assim desaparecer da História e consumando o crime perfeito – aquele de que não há indícios nem memória –, esse segredo que desaparecerá com os seus portadores é o exacto contrário da comunhão na violência. Intelectualizado até ao limite, é o sacrifício de si, gélido, do sado-masoquista. Põe-se então o problema de como lidar com essa memória numa situação que, ao mesmo tempo, veda o exercício direto da violência. A solução, obedecendo a uma lógica férrea, ontológica, consiste em imputar a culpa aos próprios judeus. Os judeus cometem os mesmos crimes, proclama-se e, dessa forma, é lhes retirado o estatuto de vítimas inocentes, além de, o mais importante, diluir o crime na injustiça geral do mundo, onde todos os gatos são pardos. A compulsão de identificar vítimas e carrascos, a projecção paranóica, é de tal forma imperiosa, que leva a uma entorse intelectual que, fosse outro o contexto, seria considerada sans phrases um caso psiquiátrico; num episódio recente, mas mera repetição de tantos, foi exibido numa manifestação o cartaz: «Um Holocausto não justifica outro». Trata-se de uma primeira forma de culpabilização dos próprios judeus, mas numa forma que caiu em desuso, et pour cause: pressupõe ainda que os judeus foram vítimas de um Holocausto ou de um genocídio. O primeiro termo foi aplicado como conceito político – isto é, adquiriu o sentido que hoje é o seu na linguagem corrente – precisamente ao extermínio de seis milhões de judeus; o segundo, genocídio, foi cunhado pelo jurista polaco-americano Raphael Lemkin, ainda durante a guerra, para caracterizar o assassínio industrial dos judeus. A apropriação da linguagem em que se articulava uma experiência totalmente nova na humanidade, apesar de ser um primeiro passo para a confusão entre vítima a carrasco, mantinha um canal aberto para a realidade – uma memória – tolhendo o carácter sistemático e totalizante da projecção paranóica. E nessa memória conserva-se ainda uma experiência negativa que dá a medida de um mundo objectivo não ainda diluído na imanência. Contra esse estado de coisa reage a identificação selectiva, incidindo apenas mal, inocentando assim a restante humanidade. É assim que aparece o composto, que também não é uma novidade, do «nazi-sionismo». Cauciona-se assim a identificação total dos dois males num só, salvando a pureza própria num delírio paranóico: assim como o nazismo é o verdugo dos judeus, o sionismo é um nazismo para os palestinianos. Monstruosa na realidade dos factos, uma tal analogia é o conceito operatório que impõe a distorção da memória, permitindo assim que o crime sofrido (pelos judeus) chegue à consciência apenas sob a forma de crime cometido (pelos sionistas). Na medida em que é impossível desfazer o passado e erradicar a história, as acusações a Israel, a «entidade sionista», entenda-se criminosa, têm de poder acompanhar todas representações da memória do crime primeiro – e todas as ocorrências daquelas palavras primeiras: genocídio e holocausto –, para sempre associado ao nascimento do Estado israelita. E tal como foi no Tribunal de Nuremberga que o crime contra a humanidade assumiu as suas feições definitivas, é a humanidade no seu conjunto a depositária daquela memória. Não é, pois, de estranhar que no sistema mundial, muito mais diferenciado e abstracto do que qualquer Estado nacional, o sionismo desempenhe o mesmo papel que cabia ao judeu nas diferentes nações. Trata-se agora de o proscrever e suprimir à escala mundial na sua figura estatal: Israel. O passo inicial, o preço a que se compra a boa consciência, consiste no delírio dissociativo do mundo – na confusão das palavras.