Esta semana, ficámos a saber de mais alguns avanços extraordinários em relação ao novo aeroporto de Lisboa. Que a “comissão técnica” que ficou de apresentar a proposta da nova localização ainda nem sequer conseguiu contratar os “técnicos” de que precisa para funcionar. Que, de qualquer maneira, a “comissão técnica” não serve para nada porque a decisão será “política”. E que a “política” será, na verdade, a indecisão do costume porque, na mesma semana em que dois governantes decidiram pronunciar-se sobre a questão sem que ninguém lhes tivesse perguntado, decidiram logo fazê-lo com opiniões diametralmente opostas: Santarém é um sítio óptimo para fazer um aeroporto vs. Santarém é um sítio péssimo para fazer um aeroporto.

Se dependesse da “elite” que nos governa, Vasco da Gama ainda estava parado a comer pastéis de Belém, à espera de autorização para içar velas e ir descobrir o caminho marítimo para a Índia, e Nuno Álvares Pereira reformado do exército antes de o governo ter decidido a melhor localização para a Batalha de Aljubarrota. Camões teria sido talvez um poeta satírico, em vez de lírico e épico, e ao menos para ler essa obra poderia valer a pena ter tido a má fortuna de viver nesta época.

Não acredito, é claro que já não acredito. A discussão sobre a necessidade de relocalizar o aeroporto de Lisboa começou em 1969, o ano em que a Humanidade chegou à Lua. E ainda vai chegar a Marte antes de haver novo aeroporto em/de/para Lisboa. Leram aqui primeiro. De modo que já só queria pedir uma coisa, uma coisa muito ambiciosa: quando fizerem o aeroporto, lá onde quiserem, será que podia ter uma livraria? Ou melhor, porque, nessa altura, pelo andar da carruagem, as dioptrias podem já não me permitir: enquanto esperamos, será que podia haver uma livraria neste aeroporto de Lisboa? E noutros pelo país, se não for muito extravagante pedir?

Os aeroportos são lugares de espera, em qualquer parte do mundo. Terras de ninguém anódinas, deliberadamente descaracterizados, pontos de ligação feitos de códigos universalmente reconhecíveis e normas de segurança e circulação. Apesar dos pesares, são um dos últimos lugares de leitura, os aeroportos e as horas no interior compacto do avião que se segue. Quantas pessoas levam livros para as férias? Para qualquer viagem? E quando nos esquecemos desse livro? E quando, afinal, não é aquele que nos apetece ler? E quando o acabamos mais cedo porque o check-in ainda não abriu, o voo atrasou, a mala perdeu-se, o comandante aguarda ordem de descolagem, o tempo mudou, o pessoal de terra entrou em greve, a fila para o passaporte dava para ir e a vir a Santarém?

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Dizemos, sem pestanejar, que somos um país de poetas, mas, depois, vendemo-nos como qualquer coisa entalada entre a camisola do Ronaldo e o pastel de nata. Os nossos duty free consistem num combo muito específico de chocolates, cigarros, perfumes e álcool, muito álcool. E, no resto dos aeroportos, é possível comprar roupa, malas de viagem (nunca percebi. Diria que é assunto que se resolveu, na pior das hipóteses, antes de ir para ali) e sandes de frango pré-feitas ao preço de lavagante fresquíssimo. Não seria uma ideia catita, lá num cantinho livre (que existe) abrir uma livraria? Não estou a falar dum escaparate da Fnac nem duma papelaria nas chegadas com a variedade de títulos da estação de serviço da Mealhada (com o devido respeito pelos irmãos da Mealhada). Estou a falar duma livraria mesmo, com uma selecção de novidades e clássicos, edições pelo menos em português e inglês, literatura e viagens, best-sellers internacionais, consagrados e novos autores portugueses, que ajudassem quem chega a conhecer a cultura do país e, mais importante, a levá-la.

Para os cépticos que estejam a pensar que já-ninguém-lê e que está-tudo-agarrado-ao-telemóvel, pois vale a pena dizer que, a nível mundial, as vendas de livros em aeroportos continuam a aumentar (nem que seja pelo simples facto de haver cada vez mais voos e, portanto, os aeroportos serem lugares cada vez mais frequentados. Mesmo que descesse a percentagem de viajantes leitores, os números continuariam estratosféricos).

Em toda a parte do mundo, há aeroportos com livrarias. Nos Estados Unidos, país para cujo povo muito europeu e muito português, em particular, gosta de olhar com sobranceria intelectual, há cadeias de livrarias especializadas só em aeroportos (a Hudson é líder de mercado. Só no aeroporto de Seattle-Tacoma tem três livrarias. Três). É célebre a versão da mítica Book Soup, de Sunset Boulevard, do aeroporto de Los Angeles. E, no Milwaukee, há quem vá especificamente ao aeroporto, não para viajar, mas para fazer compras na Renaissance Books. Deste lado do mundo, a WHSmith abriu a sua maior livraria no aeroporto de Gatwick, em 2019, incluindo uma secção chamada “Read Around the World Shelves”, dedicada a livros dos países de destino das suas rotas. E a oriente, e de lá para o mundo inteiro, a ByteDance, dona do TikTok, percebeu que os livros são um negócio tão grande que criou, recentemente, a sua própria editora, para publicar os autores mais populares da plataforma, nos géneros mais procurados.

Pensem nisso com carinho. Ou algum empreendedor-founder-startup-CEO-tech-dreamer que se aventure ao negócio. É que, para mais, as livrarias oferecem-se como abrigo de humanidade e civilização em locais onde, frequentemente, elas parecem ausentes e os nossos direitos enquanto cidadãos temporariamente suspensos, sem que ninguém explique muito bem como ou porquê. Há muitos artigos por essa net afora a falar do “discreto charme” das livrarias de aeroporto e do “privilégio distinto” de fazer compras nelas, a testemunhar que o futuro, neste capítulo, é muito mais do que o plano geral de resignação à estupidificação com que, amiúde, nos tentam adormecer em Portugal.

Afinal, por aqui, tudo o que nos querem dar para ler é um relatório de uma comissão de inquérito onde explicam, em 200 páginas, que não aconteceu nada do que vimos que aconteceu, não ouvimos, não se sabe, não é importante. E eu preciso, já que é de aviões que falamos, de um lugar onde encontrar mais literatura desta senhora Ana Paula Bernardo, antes que o nome dela voe de volta para a mesma irrelevância de onde saiu.