Diziam os Antigos que um pequeno erro no princípio significa um grande erro no fim (parvus error in principio magnus est in fine). Errar seria muito fácil, bastaria para tal que houvesse trabalho, ou seja, pensamento. Referiam-se eles aos princípios que devem presidir às ciências na busca da verdade, mas a noção depressa transitou do domínio teórico para o domínio prático. O erro acabaria mesmo por constituir uma categoria antropológica. E, neste sentido, muito discutiriam se, por exemplo, ele poderia ser atribuído à natureza humana – sendo-lhe traço essencial – ou se a ignorância poderia justificar de algum modo a nossa não-imputabilidade. Mas é claro, avisaria prontamente Aristóteles, uma coisa é “errar”, outra coisa é “crer e sentir-se enganado”. Num golpe de síntese, Boaventura de Bagnoregio (1217-1274) dirá que “onde não há dúvidas” também “não pode haver mérito”.
Hoje passamos por formas diferenciadas de desagregação e de cerceamento de possibilidades efetivas de autossustentação. Um elemento reflexivo a fazer notar neste ano que ora finda é sem dúvida um acúmulo de agressividade entre as esferas de poder, infundindo-se e disseminando-se depois entre os indivíduos em geral (sociedade). Patenteia-se uma rispidez e aspereza prontas a soltar-se à primeiríssima prova de vida de cada um.
Aristóteles, filósofo que viveu entre 384 e 322 a. C., examinou, entre muitas outras coisas, como é que a manipulação dos sentimentos e a espiritualização das emoções podem servir aos grandes interesses do poder. Conta a lenda que o início da retórica remonta às disputas legais pela pertença de terras na Sicília nos alvores do século V antes de Cristo. Mas Aristóteles é quem pela primeira vez a pensa filosoficamente, dedicando-lhe mesmo uma das suas principais obras, a Retórica. Ela (rhetorike) é desde então definida como arte do discurso. Ocupa-se dos argumentos que se opõem na comunicação entre os homens, em função de situações e objetivos distintos, sempre “com o fim de persuadir”. Distingue-se das demais “artes e ciências” (medicina, geometria, aritmética…), porque pretende descobrir meios de persuasão sobre qualquer questão dada, e não apenas sobre a respetiva área de competência. Nessa obra, Aristóteles dedica uma atenção particular às “paixões” (pathe), enumerando cartoze (raiva, calma, terror, confiança, cobiça, impudência, amor, ódio, vergonha, emulação, compaixão, generosidade, indignação e desprezo). Todas elas modificam e produzem diferenças nos nossos juízos, implicando prazer e dor. A raiva, ira, cólera (orge), é “um desejo acompanhdo de dor [lupe, perturbação, dor, aflição] que nos incita a exercer vingança explícita por causa de um desdém manifestado contra nós, ou contra pessoas da nossa convivência social” (trad. port., INCM, p. 107). A pessoa com raiva fica assim como que transtornada, por se sentir tratada com desrespeito e desinteresse.
Na mesma obra, Retórica, o Autor alerta para o que muitos outros mais tarde apelidarão “ditadura da palavra”, vendo neste facto a morte da própria retórica. O grande filósofo distingue então dois tipos de “provas de persuasão”. Aquelas que não são produzidas por nós e já existem antes, tais como testemunhos, confissões, documentos escritos e que poderemos denominar com propriedade “factos”. E aquelas que, pelo contrário, dependem inteiramente de nós, sendo sempre, por isso mesmo, “inventadas”. Nestas, cabe distinguir três elementos fundamentais. São eles: o ethos (quem fala?), o logos (qual é o argugmento apresentado?) e o pathos (a quem se drige?). Aristóteles sublinha assim a importância conjunta de três aspetos: a confiabilidade e a reputação do orador (deve ser digno de fé), o discurso enquanto tal (o conhecimento não é uma derivação da opinião) e a disposição afetiva dos ouvintes (os juízos são sempre permeáveis às emoções). O sucesso de qualquer argumentação dependerá sempre da articulação desses três elementos, seja no plano “deliberativo”, seja ao nível “judicial”, seja no que respeita ao “discurso epidíctico”. É segundo este discurso que a retórica mais se assemelha à política, ou mais se “cobre com a figura da política”. Tal discurso deve então ser feito no registo do presente (nunca no do passado, nem no do futuro) e ser dirigido ao público (i.é., à sociedade em geral). Indica como e o que se deve elogiar e aconselhar, felicitar e censurar ou, como hoje diríamos, como se deve maximizar o positivo e minimizar o negativo.
Dito isto, é evidente que, sublinha ainda o filósofo, todo aquele que for capaz de teorizar sobre os caracteres, sobre as virtudes e sobre as paixões, pode facilmente obter provas de persuasão acerca de qualquer assunto. E ser-lhe-á ainda mais fácil, por falta de educação, por jactância ou por outras razões inerentes à natureza humana. Por outras palavras, onde a opinião for omnipotente, haverá facilmente manipulação e criação de sentimentos e, desta maneira, todas as formas de poder derivarão simplesmente da persuasão. Comprová-lo-á aliás a História, com o exemplo de “grandes oradores” que venceram – e vencem – eleições, independentemente do conteúdo veritativo e da articulação de caráter nesses discursos. Significa isso que os nossos comportamentos são facilmente determinados pelas intermitências do coração, além de precisarmos de ficções para nossa tranquilidade.
Se formos tratados com desdém, emergirá em nós “um prazer acompahado de dor”, e então passaremos a viver “na ideia de vingança” , que vai crescendo nos nossos corações mais do que o mel destilado. Neste sentido, a fragilidade essencial representa a ameaça maior de acessso dos cidadãos ao direito e à comunidade política. É o que acontece com os “pobres” e com os “doentes”, por exemplo, pois são eles os que mais frequentemente são menosprezados por aqueles que poderiam alterar a sua situação. E assim, perante danos sofridos, nascem estados de espírito propensos à raiva. É claro que a nossa margem de liberdade depende da nossa capacidade de distinguir as coisas e agir por convicção, não por medo. Debaixo do pânico obedecemos aos sentimentos mais imediatos, agimos em função de um mal que pressentimos como iminente, ruinoso ou penoso. Tememos o ódio, a raiva e a injustiça de quem tem o poder de nos fazer mal. Sentimos esse medo sempre que pensamos poder vir a sofrer algum mal. Mas a convicção resiste a todo o medo, gerando antes a confiança que é acompanhada da esperança de que as coisas que estão próximas podem salvar-nos, enquanto as que inspiram medo estão longe ou não existem. Se, portanto, o medo ocasiona o ressentimento, a confiança produz e estimula o reconhecimento. Se o ressentimento pressupõe atitudes meramente reativas, aderindo cegamente a modalidades discursivas, o reconhecimento, pelo contrário, vive de comportamentos reflexivos e mutuamante partilhados. Será assim o reconhecimento, sempre sustentando na confiança, que poderá – deverá! – em verdade legitimar todos os poderes, aqui destituídos da capacidade de fragilizar a existência humana em todos os seus patamares, na comunidade dos afetos, das necessidades e dos interesses, e das decisões que informam todo o agir coletivo.
Os gregos extraíram a democracia da retórica. Os tiranos e os oligarcas mandavam pela força. Na democracia o poder obtinha-se pela palavra convincente nas assembleias. Pelo que a desqualificação da retórica levará consigo necessariamente uma desfiguração da própria democracia. Segundo Paul Ricoeur, um dos grandes fundadores da hermenêutica como disciplina científica, o óbito da retórica terá ocorrido em meados do século XIX, ao deixar de figurar nos curricula académicos. A partir de então ela passou ser vista apenas em função da sua capacidade persuasiva, recaindo exclusivamente nas emoções. É sabido que qualquer poder por definição pretende dirigir comportamentos. As emoções constituem a via mais fácil. Serei eu, governante, tanto mais forte quanto mais amado for por uns e odiado por outros? A resposta é, enfaticamente, determinantemente, objetivamente, negativa. O tempo pode até curar a raiva, mas o ódio é incurável e procura sempre fazer mal. Além de que as coisas que causam maiores males são igualmente as menos sensívies. A injustiça e a loucura são disso mesmo exemplo. A presença do mal não lhes causa pena. Aproxima-se uma fase eleitoral. Resta saber como seremos tratados.