Nas três décadas e meia que precederam a pandemia de Covid 19, a economia mundial globalizou-se: pautas aduaneiras foram reduzidas, novos países aderiram a espaços económicos integrados, novos países aderiram às regras da Organização Mundial de Comércio, os antigos países do Comecon entraram nos circuitos e mercados internacionais crescendo a sua presença na economia global, a China foi-se abrindo economicamente, e cresceu a liberdade de circulação de capitais, pessoas e de estabelecimento. O Mundo tornou-se mais pequeno, por vontade política e interesse económico, ambos facilitados pelo progresso nas tecnologias de transporte e comunicação. Em resultado, assistiu-se a um forte ritmo de crescimento e muitas centenas de milhões de seres humanos foram retirados da pobreza, sobretudo na Ásia, mas também noutros continentes.

Esta mudança trouxe uma grande maioria de ganhadores mas, como em todos os processos de transformação, originou também perdedores, sobretudo nas áreas que anteriormente beneficiavam da protecção de uma menor concorrência.  Muitas dessas bolsas de perdedores estavam (e ainda  estão) na Europa e nos Estados Unidos e foram recentemente alvo de aproveitamento político, como sempre ocorreu na história, com o aparecimento de várias plataformas promovendo formas diversas de proteccionismo comercial.  Desde a crise financeira de 2008 que os dados mostram que o comercio internacional deixou de crescer ao ritmo anterior e o impulso para maior globalização desvaneceu. A pandemia de Covid 19 revelou de forma muito clara alguns dos trade offs que uma maior globalização implica: ganhos económicos globais mas perda de autonomia de decisão ao nível de muitos estados e uma importante vulnerabilidade a certo tipo de choques, simétricos ou assimétricos.  Implica, também, quando falha a visão de longo prazo, potenciais debilidades geoestratégicas.  A recente invasão russa da Ucrânia tornou muito óbvia uma delas: a dependência da União Europeia (e de alguns dos seus Estados-membros, em particular) face à energia produzida por um rival belicista. A eclosão deste conflito, quando a pandemia ainda não acabou e num momento em que se torna evidente a importância que a autonomia no acesso a matérias-primas e produtos essenciais tem para os diferentes blocos económicos, não deixará de ter consequências sobre o processo de globalização nesta década e, porventura, nas seguintes.

Não é que os princípios económicos subjacentes à globalização se tenham revelado errados. O que se torna claro para muitos decisores e para grande parte da opinião pública é que a globalização, um fenómeno económico na sua génese, tem consequências muito para além do plano económico e, portanto, tem de ser analisado e decidido sob essa perspectiva.  Mas a ciência económica não mudou por muito que a retórica possa parecer indicar o contrário. Ainda no passado dia 3, e em reacção ao pacote de sanções dos países ocidentais e do Japão, o presidente russo afirmava que, no final, a Rússia sairia a ganhar, pois irá desenvolver internamente competências que lhe permitam substituir as importações de bens que deixa de poder fazer. Este é um argumento proteccionista, que a muitos parecerá intuitivo, mas que está errado. Admito mesmo que outros, porventura alguns adversários da Rússia, pensem ou venham a proclamar o mesmo. Tal não tornará o argumento menos incorrecto. Sabemos que a auto-suficiência das nações é uma situação inferior, no plano económico. A nossa secular predisposição à troca comercial entre estados e entre regiões mostra a nossa preferência revelada pela especialização com recurso ao comércio, por forma a melhorar o bem-estar geral.  A Rússia (e o Ocidente, ainda que em menor grau) perderão com as restrições ao comércio agora impostas, mesmo que tal gere maior autonomia.

Esta constatação não implica que os países não venham a decidir, como antecipo, algum recuo no processo de globalização, internalizando cadeias de valor que até hoje se desenvolveram por vários continentes, decidindo ter maior controlo sobre a produção de bens que considerem essenciais. Ou seja, e concluindo, provavelmente vamos decidir limitar o processo “natural” de globalização que se acelerou desde os anos 80. As razões poderão ser atendíveis e eu, se estivesse na posição de decidir, levá-las-ia certamente em conta e ajustaria a estratégia em conformidade, assumindo a evolução para uma nova ordem, em que factores não económicos seriam mais ponderados. Não nos esqueçamos, porém, que tal terá um preço: menos crescimento e bem-estar global face a um cenário contra factual em que aceitávamos como válidos e perenes os pressupostos das últimas décadas.

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