A TAP está de volta aos jornais. Como uma chaga cíclica da qual não nos conseguimos libertar, voltámos a ouvir, pela enésima vez, os pormenores da odisseia e os argumentos para a sua privatização ou nacionalização. Esta semana, depois de ter sido disponibilizado à comunicação social o relatório da auditoria da Inspecção Geral das Finanças à TAP, o tema voltou à actualidade noticiosa. O relatório foi finalizado em Agosto, mas noticiado no dia em que o presidente executivo da Lufthansa veio a Lisboa para negociar a aquisição de cerca de 20% da companhia aérea. Não deixo de admirar a coincidência e deixo no ar a questão: será que ambos os factos estão relacionados? Como não tenho meios para investigar tal questão deixo-a aos devaneios do leitor e debruçar-me-ei sobre outros assuntos. Ainda que o relatório não tenha revelado nenhuma informação nova relativamente ao divulgado na Comissão Parlamentar de Inquérito e noutras auditorias, a comoção geral com o assunto dá que pensar.

A polémica em torno do relatório centrou-se em torno do processo de compra de David Neelman. Muito resumidamente, em 2015, a Atlantic Gateway, de David Neelman e Humberto Pedrosa, comprou 61% da TAP por 10 milhões de euros. Esse dinheiro não era da TAP. Se o leitor acha este valor irrisório para uma companhia aérea, lembre-se que, quando Neelman comprou a sua participação, a TAP estava com enormes dificuldades financeiras (a ponto de estar em risco de incumprimento perante a Airbus e os trabalhadores) e mais nenhum comprador credível apareceu. Após décadas de gestão pública, o Estado também não conseguiu resolver os problemas financeiros da empresa. Quando Neelman comprou a TAP, comprometeu-se a realizar uma capitalização na companhia aérea de cerca de 226 milhões de dólares. Este dinheiro foi injectado na TAP (e ficou na TAP) para que esta pudesse continuar a operar. Aqui reside a controvérsia. Para realizar essa capitalização, Neelman negociou directamente com a Airbus, cancelando os pedidos de 12 aeronaves A350 (demasiado grandes e pouco eficientes nas rotas da TAP), e realizou um novo contrato onde se comprometeu a comprar 53 aviões de outros modelos, aparentemente pagando um valor acima do valor de mercado. Este negócio de cancelamento da compra dos aviões e leasing de outros era, evidentemente, do interesse da Airbus, uma vez que assim pôde vender os A350 a outras companhias por um preço mais elevado e, ao mesmo tempo, garantir o leasing dos novos aviões à TAP por um preço vantajoso para o consórcio Europeu. Em troca, pela vantagem comercial que Neelman lhes proporcionou, a mesma Airbus emprestou 226 milhões de dólares a uma sociedade legal do empresário, que deu a TAP como garantia para realizar o empréstimo. Como não sou jurista, não sei avaliar a legalidade desta operação. Espero que os tribunais apurem os factos e decidam em conformidade com a lei, mas também que não apliquem a lei selectivamente por forma a satisfazer interesses políticos desta ou daquela facção.

Curiosamente, a opinião pública parece mais preocupada com uma entrada temporária de David Neelman na TAP, do que no investimento a fundo perdido superior a 3 mil milhões de euros do Estado Português, realizado nos últimos anos. A repulsa de tanta gente a David Neelman é interessante. Estrategicamente, o empresário teve um desempenho positivo na empresa, nomeadamente na abertura ao mercado norte-americano. Não conheço as suas práticas de negócio e admito perfeitamente que não seja um santo e que tenha agido nas fronteiras da legalidade. Mas o actual líder da oposição, putativo candidato a primeiro-ministro, accountable aos cidadãos portugueses, foi responsável por uma perda muito mais danosa para o Estado: os tais mais de 3 mil milhões de euros de dinheiro público que tudo indica não serão recuperados. E para quê? Para que é que se re-nacionalizou, investiu tanto dinheiro, para depois (agora) se re-privatizar novamente a TAP? É esta pergunta que tem de ser respondida: porque é que os portugueses investiram tanto dinheiro público, tão necessário noutras áreas como a saúde ou a habitação, na TAP? Continuo sem perceber nem obter nenhuma resposta séria a esta questão.

As respostas que obtenho são desonestas ou irracionais. Começo pelas desonestas. O argumento de que o Estado tinha de intervir na TAP por causa da pandemia. Em primeiro lugar, a re-nacionalização da TAP ocorreu logo no início da governação de António Costa, muito antes de 2020. Em segundo lugar, a pandemia foi, naturalmente, um episódio catastrófico para a indústria de aviação, afectando companhias aéreas em todos os países. Noutros países, de facto, o Estado concedeu uma ajuda temporária às companhias aéreas. No entanto, em países como a Alemanha, a forma de ajuda não foi uma capitalização irracional a fundo perdido, mas sim um empréstimo que a companhia repagou ao Estado quando a pandemia acabou e a aviação voltou ao normal. Porque é que o Estado Português injectou dinheiro a fundo perdido na TAP, em vez de lhe conceder um empréstimo, que teria sido muito menos prejudicial para todos nós? Esta pergunta não foi respondida.

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Resta-nos, então, as respostas irracionais. De facto, para grande parte da classe política e da opinião pública portuguesa a TAP é, acima de tudo, uma questão emocional. Para alguns, é um símbolo de uma promessa não cumprida de um modelo de intervenção no Estado na economia que tanto desejam. Eu não sou, naturalmente, contra toda a intervenção do Estado na economia. O Estado desempenha papéis importantíssimos de investimento social e assistência social, bem como de garantia do bem comum em áreas onde os mercados não são suficientes. Noto, no entanto, que a intervenção do Estado na economia não é nem universalmente boa nem universalmente má, apesar das narrativas simples e fáceis que tantos desejam. Noto também que os países mais ricos do mundo, com os Estados Sociais mais desenvolvidos do mundo, onde os cidadãos têm uma qualidade de vida muito superior à dos portugueses, não têm companhias aéreas públicas e não estão no negócio da aviação. Se outros Estados Europeus, incluindo os Escandinavos, a Alemanha, a França ou a Espanha, não têm uma companhia aérea pública, porque é que Portugal há-de ter? Para além de sermos mais pobres do que esses países, qual é a especificidade nacional que exige uma companhia aérea estatal, mesmo que a muito custo para os contribuintes portugueses?

A resposta, quase sempre, desagua na nossa vocação Atlântica, pós-colonial, global e universalista. Chamemos-lhe síndrome Expo-98: uma nação cuja vocação é dar novos mundos ao mundo, uma nação mais voltada para o exterior (através da língua e da migração) que outros países Europeus. Todos conhecemos esta narrativa nacional, que aprendemos desde a escola primária e continuamos a ouvir nos discursos retóricos em idade adulta, um pouco por todo o lado. Claro que outros países europeus também têm línguas faladas por todo o mundo, antigos impérios coloniais maiores que o nosso, movimentos migratórios (para dentro ou para fora) iguais ou superiores aos nossos. Mas o que é que isso interessa perante uma vocação tão profunda como a nossa? Nós somos incomparáveis e especiais. E é por isso que a TAP é, na psique colectiva, uma questão emocional.

De facto, assistimos a muito menos comoção pública e reflexão sobre o negócio ruinoso da TAP no Brasil (investimento na VEM Brasil, que levou a perdas de 900 milhões de euros) do que a respeito de Neelman. A mesma auditoria divulgada afirma que tal negócio da TAP no Brasil não teve qualquer “racionalidade económica”. Então porque se fez? E porque é que esta parte do negócio é tão facilmente desculpada por todos e pela opinião pública? Porque a nossa ligação ao Brasil (ou a África ou à diáspora) faz parte da tal vocação nacional global, profundamente emocional. Para a realização desta vocação colectiva tudo é desculpado e continuar-se-ão a desculpar outras irracionalidades. Pelo caminho, algumas elites rentistas nacionais vão fazendo negociatas, profundamente prejudiciais para o bem comum, sob capa de um discurso emocional que todos gostam de ouvir e acarinhar.

Portugal não existe para dar novos mundos aos mundos. Os países não têm grandes destinos ou vocações. E já é hora de nós, portugueses, ganharmos juízo e acabarmos com ilusões de grandeza. Lisboa tem o terceiro maior aeroporto da Península Ibérica (a par de Palma de Maiorca), mas todos falam como se fosse um dos maiores hubs da Europa. O aeroporto de Lisboa é um hub de dimensão média a nível europeu. A TAP é uma companhia aérea de dimensão média e com dificuldades financeiras há décadas. O país já tentou durante muitos anos realizar a sua vocação colectiva através da TAP e, até hoje, ainda não correu bem. Em vez de cairmos na sunk cost fallacy, será altura de seguirmos em frente. A irracionalidade do discurso político e a utilização de emoções para dominar o processo de decisão — nesta e noutras matérias — acabam, na maioria das vezes, por nos custar uma vida melhor. Essa, sim, é a nossa maior chaga.