Na primeira década deste século desloquei-me várias vezes à Polónia, por motivos profissionais. Em longas viagens por estrada entre Varsóvia, Cracóvia, Katowice, Wroclaw e outras cidades, fui acompanhado por um jurista, K., que era um excelente contador de histórias sobre a vida no seu país antes da queda do muro. Esta foi uma das histórias que K. contou, uma road trip do lado de lá da Cortina de Ferro.

Os pais de K. eram ambos engenheiros numa fábrica próxima de Cracóvia. Viviam num apartamento que o regime atribuía a casais com um filho, hoje conhecidas como “casas comunistas”, pelo seu minimalismo, área reduzida e reconhecida falta de qualidade na construção. A família de K., ao fim de alguns anos de espera, recebera finalmente o sonhado carro, um Polski Fiat 126, cuja alcunha carinhosa era “Maluch”, que significa “bébé”.

Mais, tinham conseguido, finalmente, a possibilidade de passar uma semana de férias na costa do Mar Negro, o que aconteceria no Verão seguinte. K. com cerca de 18 anos, estava entusiasmado com a ideia de conhecer um país diferente e de, finalmente, poder ver o mar.

Tudo corria bem à família até ao dia em que o pai de K. cometeu um erro. Viviam-se os primeiros anos da década de 80 e aquele foi o primeiro e único grande erro da sua carreira. A possibilidade de uma promoção para a direção da fábrica onde trabalhava implicava ser membro do PZPR, o Partido Operário Unificado Polaco. O pai de K. recusou o convite, respondeu que não queria ser membro do partido e que preferia ficar longe da política. A consequência fez-se sentir de imediato: nem promoção, nem as desejadas férias. O regime castigava os hesitantes. A família foi informada que a vaga para férias que lhes tinha sido comunicada não estava disponível e tudo não tinha passado de um lamentável engano administrativo.

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O desgosto de K. foi enorme. Sonhava com uma viagem de férias há anos, mas ainda não era desta vez que iria sair da Polónia. Uma ideia começou então a germinar na cabeça do pai de K. E se arriscassem fazer a viagem sozinhos, sem usar a agência de viagens oficial? Seria possível? Porque não tentar? Nos meses seguintes, trabalharam com um só objetivo: uma viagem em família, de carro, às costas do Mar Negro, a mais de 1500Km de distância, atravessando a Checoslováquia e a Hungria.

A tarefa não era fácil. Precisavam de várias autorizações, de vistos, de passaportes, de coroas checoslovacas, de florins húngaros e de leus romenos. Ou, melhor ainda, de dólares americanos ou de marcos alemães. Dormiriam no carro, ou, se possível, em quintas ao lado da estrada. Acampariam onde fosse permitido.

O entusiasmo da família era compartilhado pelos amigos, que tentavam ajudar como podiam – com informações, principalmente. Camionistas ensinaram-lhes onde estavam as estações de serviço onde poderiam comer e comprar comida. Amigos deram-lhes contactos de familiares ou conhecidos que viviam nesses países, para usar em caso de necessidade. K., que além de estudante universitário era guia em excursões a Auschwitz, começou a pedir jeans usadas aos visitantes e conseguiu, nesses meses, umas dezenas. Serviriam para comprar “estadias”, ao longo da viagem.

Só ao fim de três anos conseguiram reunir as condições para a viagem. Com todas as autorizações e carregados de expectativas e sentido de aventura, um dia do mês de Julho em que começavam as férias, puseram-se a caminho. À frente, o pai e a mãe, no banco de trás, K., entre duas pilhas de jeans. Pequenas malas e uma tenda de campismo ocupavam todo o espaço disponível na pequena bagageira do minúsculo 126.

O grande contratempo aconteceu logo na fronteira com a Checoslováquia. Os zelosos guardas da fronteira desconfiaram dos documentos apresentados e quiseram confirmação. A família esperou dia e meio dentro do carro, até que, após muita insistência e muitos telefonemas, um “ok” chegou via telefone.

Por terras checoslovacas, húngaras e romenas, dormiram em casas rurais, com famílias a quem pediam alojamento em troca dos jeans. A surpresa dos residentes que viviam ao longo das estradas por verem uma família polaca a viajar num pequeno carro, a curiosidade e os sobrevalorizados jeans, abriram portas com muito mais facilidade do que eles imaginavam. E depois de 3 dias inteiros de viagem, chegaram finalmente a Constança com dois dias de atraso em relação ao que previam. Restavam-lhes cinco dias de campismo.

Contava K. que ao passearem à noite pela zona ribeirinha da cidade, o pai mostrava-se estupefacto com a quantidade de turistas que enchiam os restaurantes. Os preços de um jantar para uma família eram equivalentes ao salário de um mês de um engenheiro na Polónia. E perguntava, quem eram aquelas pessoas que se podiam dar ao luxo de pagar em moeda forte aqueles preços. Desconfiavam dos políticos, que os estariam a enganar, fazendo vida de luxo.

K. não sabia, mas algumas dessas pessoas eram, provavelmente, portugueses e espanhóis. No início dos anos 80, as agências de viagens começaram a incluir nos seus catálogos as praias do mar negro na Roménia, com voos promovidos pela companhia aérea romena TAROM. Eram as viagens mais acessíveis que estavam à disposição dos empobrecidos portugueses, que conseguiam uma semana de praia na Roménia por metade do preço de qualquer outra alternativa. Possivelmente, os “milionários” que a família de K. via encher os restaurantes de Constança eram remediados portugueses que viajavam até ao único destino de férias no estrangeiro que conseguiam suportar.

O regresso teve outra história. Nos anos 70, a televisão polaca transmitia uma série de capa e espada, uma espécie de versão local dos Três Mosqueteiros, cuja ação era passada em Timisoara. Por esse motivo resolveram desviar-se um pouco do caminho para conhecer a cidade. Contou K. que entraram na cidade, cinzenta, feia, sem pessoas nas ruas, sem lojas, sem anúncios. Atravessaram o centro da cidade sem cor em silêncio, a baixa velocidade, e como entraram saíram. Nunca mais falaram do assunto.

Após o regresso, por algum tempo a família da K. foi uma estrela em Cracóvia. Todos queriam visitá-los, todos queriam ouvir histórias da grande aventura. Os amigos convidavam-nos para jantar ou faziam-se convidados, honrando a tradição de levar a sua própria comida, para não dilapidar o produto das senhas de racionamento da outra família.

Dizia K. que o pai, a pouco e pouco começou a apimentar a história, com muita criatividade e sentido de humor, uma espécie de realidade aumentada que encantava os amigos. A cada conto, acrescentava um ponto. Até os chefes locais do Partido quiseram ouvir a história da grande aventura.

Poucos anos depois caía o muro e o aquele mundo despareceu. As viagens passaram a ser corriqueiras e só então milhões de polacos perceberam que tinham sido enganados e que o mundo exterior nada tinha a ver com as histórias que lhes contavam.