Na política, como na justiça, pequenos snapshots de vitória podem corresponder a décadas perdidas. Num estalar de dedos — o mesmo que arruinou a carreira de muitos políticos entretanto absolvidos — a justiça portuguesa deitou abaixo um chefe de governo em funções com maioria absoluta. Democracias há em que mil acusações do maior partido da oposição não valem o poder mágico de uma (não-)acusação judicial.

Para o regime, o fim do costismo não significa apenas a queda do governo, o fim de um ciclo político, ou até o de uma geração política que, longa como foi, acumulou muitos vícios. Esta crise política ocorre num momento em que o terceiro maior partido da assembleia é simultaneamente o partido mais anti-regime e aquele que mais fez da corrupção a sua bandeira ideológica. Ventura já nos acautelou para não ler na sua reação um pedido de eleições antecipadas: um deslize freudiano que revela que já percebeu que crise é sinónimo de oportunidade. Ficámos logo mais descansados.

No outro extremo do espectro, querendo referir-se à dissolução do parlamento, o líder do PCP expressou, num lapsos linguae cheio de simbolismo, o zeitgeist da nação: ‘dissolução da República’. Nem mais. O país atravessa uma guerra civil entre o partido do regime e o sector mais poderoso do estado. O socialismo encontrou finalmente o espelho partido de todas as suas patologias: a justiça portuguesa. Como é que chegámos aqui?

Há uns meses atribuía a enorme resiliência de Costa à sua capacidade de manobrar o tempo histórico a seu favor. Chamei-lhe o ‘barão do tempo’. Capaz de mobilizar os momentos críticos – a prisão de Sócrates, a austeridade, a pandemia, a guerra, o Galambagate – para obter o efeito desejado: manipular o Presidente, esvaziar ideologicamente a esquerda, e entalar o PSD no abismo programático entre a austeridade ‘europeia’ (que o PS abraçou) e o populismo anti-sistema mais à direita.

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Como alertei então, só por implosão poderia o costismo terminar antes do fim da legislatura – o que julgava, contudo, improvável. A eternização do PS no poder parecia garantida, não tanto pela maioria absoluta, pelo génio tático de Costa, ou pelo estado moribundo do centro-direita, mas pela certeza que Marcelo nunca dissolveria o parlamento arriscando conduzir a extrema direita ao poder. Estava convicto de que a interrupção do costismo, a acontecer, só ocorreria a partir de dentro, pela mão do próprio primeiro ministro.

Externamente, Costa teve sempre as costas quentes: um regime que é por definição, desenho e desígnio, anti-fascista, está estruturalmente formatado para protelar no poder todas as forças políticas que impeçam a direita radical de chegar ao governo. A hesitação do PSD nessa frente transformou o PS (ainda mais) no partido do regime. Com a célebre proclamação da separação entre política e justiça – acompanhado do justicialismo economicista das contas certas – Costa procurou arrumar o legado socrático e conquistar parte da direita – incluindo o próprio Marcelo.

Mas a frase tinha outro significado. Costa estava na verdade a dizer-nos que, depois de Sócrates,  reformar a obtusa e obscura senhora de olhos vendados seria agora suspeito. Com a propensão para a inércia e a falta de coragem que lhe conhecemos, Costa manteve intocado o sector do estado que mais distingue as democracias das ditaduras. Este ‘irreformismo’ matou o costismo, mas durante a governação foi o maior garante de estabilidade que Marcelo podia sonhar.

Agora, e ao contrário do que muitos têm afirmado, Marcelo está perdido. Confrontado com a ausência do seu irritante pupilo, o presidente jurista já terá percebido o sarilho em que está o regime. Os inábeis executivos que tentou presidencializar – com um paternalismo que Costa soube sempre meter no bolso – ajudavam, apesar de tudo, a retardar uma alternativa ainda pior: a de um governo PSD com o (apoio do) Chega. Essa estratégia frágil resultou. Até agora.

E agora? Se à frente do PSD tivéssemos um líder capaz de anular a extrema direita, Marcelo tudo faria pela obtenção de uma maioria absoluta social-democrata em eleições antecipadas, ou uma possível coligação com aquele partido adolescente que ainda acredita que o liberalismo é possível em Portugal. Mas como Montenegro não é capaz de jurar o distanciamento necessário face ao Chega, o presidente está de mãos atadas: nem uma traquitana manca do PSD com a IL, nem uma fénix renascida à esquerda, oferecem as mesmas garantias de estabilidade do costismo.

Por outro lado, um governo de coligação entre PS e PSD, ou um cenário em que o principal vencido deixe o vencedor governar através de sucessivas abstenções no parlamento,  duraria apenas alguns meses. O mesmo se aplica à bizarra hipótese, que já vi aventada, de um governo de iniciativa presidencial à italiana – qual paradigma de boa governação.

Marcelo sabe que qualquer um destes cenários iria acicatar ainda mais a polarização política no parlamento, nos sindicatos, na rua e em sectores chave do estado. Portanto, resta a Marcelo fazer o que Costa fazia melhor: empatar. Não dissolver. Manter a maioria. Indicar um nome que a consiga suster mais algum tempo. Só assim conseguirá evitar a aproximação ao poder de um partido que cavalga como ninguém a agenda do ressentimento justiceiro, na esperança que até ao fim do mandato presidencial o Chega se auto-destrua em guerras intestinas (pouco visíveis para já).

Se, pelo contrário, Marcelo convocar eleições, viverá o resto dos seus dias a tentar conter o contágio populista de um governo de direita. Precipitará assim a diluição de um dos cimentos mais cruciais da democracia portuguesa desde a revolução: o da exclusão da direita radical do poder. Uma muralha histórica que o presidente não quer ser o primeiro a esburacar.

A afirmação da direita radical na última década abriu uma caixa de pandora que Costa não inventou mas aproveitou enquanto pôde. Paradoxalmente, a ameaça do Chega trouxe consigo a estabilidade de uma maioria absoluta. Mas esses dias acabaram. Se houver eleições a extrema-direita irá cavalgar o justicialismo (para já inconsequente) do ministério público contra os ‘políticos’ e engolir o PSD num piscar de olhos, inquinando de vez a democracia parlamentar.

Por isso, a crise é de regime. As eleições não irão tirar a direita moderada do coma em que está, nem cicatrizar a ferida profunda do partido socialista, agora reaberta; irão, isso sim, fortalecer a sede de protagonismo da nemesis do PS, o ministério público, e acelerar a judicialização da política que como sabemos redunda sempre na politização da justiça.

A fotogenia de Marcelo dificilmente o ajudará a promover o tão necessário auto-retrato da justiça portuguesa. Mas ainda vai a tempo de evitar o maior mal. Seria irónico, mas sobretudo trágico, que a ‘República’ perecesse no colo do presidente enquanto este celebra os 50 anos do 25 de Abril. Seria a primeira selfie de Marcelo abraçado a um fantasma. E a última. Seria a morte do regime.