Emmanuel Macron tornou-se motivo de escândalo quando, no regresso da China, quebrou a unidade da cruzada das democracias e da NATO, ao afirmar que, no caso de Taiwan, a Europa devia ter uma política própria: “A autonomia estratégica deve ser o combate da Europa”, foram as palavras que usou.

Referindo-se aos malefícios do alinhamento incondicional com os Estados Unidos e da consequente falta de autonomia estratégica da Europa, o Presidente francês sublinhou que a Europa não podia cair “na armadilha” de chegar tarde “à clarificação da sua posição estratégica”, sob pena de ser “apanhada por um desregulamento do mundo” e enredada em crises alheias.

Para Macron, a França não deve entrar numa lógica de blocos – República Popular da China versus Estados Unidos da América – e deve mesmo evitar ser atirada para o confronto amarrada à América. Mais: para não ficarem “fora da História”, a França e a Europa terão de criar entre a América e a China um terceiro polo.

As declarações do Presidente francês levantaram desde logo reacções adversas na Alemanha, na República Checa e noutros países da Aliança. Nos Estados Unidos, como seria de esperar, também não foram bem recebidas. Apesar do silêncio apaziguador da Casa Branca, políticos republicanos, como Marco Rubio, não pouparam o Presidente francês, e a imprensa conservadora, nomeadamente o Wall Street Journal, fez duras críticas ao que Donald Trump resumiu como “Macron’s kissing Xi’s ass in China”.

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Além das especulações, explicações e justificações em que Macron, o Eliseu e o Quai d’Orsay têm sido generosos, o mais importante, como sublinhou Ted Snider em The American Conservative, está no comunicado conjunto, em que a China e a França se declaram empenhadas em “fortalecer o sistema internacional multilateral, sob a égide das Nações Unidas num modo multipolar”.

Paris demarca-se assim da “ordem liberal internacional” e da solidariedade transatlântica, para passar ao reconhecimento de uma “ordem multipolar”. Talvez até seja já essa a realidade, mas do ponto de vista da frente UE-NATO é uma quebra grave.

Quando a França desce à rua

Estará o Presidente francês a recorrer à política externa para salvar a situação interna? Macron está a viver uma grave crise, com a resistência sindical e popular à mudança do regime geral da idade da reforma dos trabalhadores, embora os números e as condições objectivas pareçam justificar a razoabilidade da passagem da idade da reforma dos 62 para os 64 anos.

Quando o sistema foi instituído, nos anos do pós-guerra, a expectativa de vida dos franceses, que é agora de 83 anos, andava pelos 66 anos; e se hoje, por cada reformado, não chega a haver dois trabalhadores activos (1/1,7) na altura o ratio era 1 para 4. A França tem uma dívida pública de três triliões de Euros, equivalente a 113% do PNB, o orçamento geral do Estado é de quase 60% desse PNB e 14% vão para as pensões. Comparativamente, a idade da reforma em França é também das mais baixas da União Europeia. Assim, a reforma do governo Macron – Élizabeth Borne, parece até razoável.

Mas para os sindicatos e para uma larga fatia da opinião pública é tudo menos razoável. Porquê? Talvez porque os franceses não precisem de muito para descer à rua. É uma tradição que vem dos tempos da Fronda, entre 1648 e 1653, quando os parisienses vinham para as ruas contra Mazarino e o jovem Luis XIV, levando o Rei, logo que pôde, a mudar a corte para Versalhes. Depois, vieram as revoluções – de 1789, de 1830 e de 1848. E no século XX, sobretudo nos anos 30, o Quartier Latin assistia às arruadas de comunistas, socialistas, monárquicos, nacionalistas e fascistas, que por vezes envolviam pancadaria, quase sempre contra a Polícia, com mortos e feridos. Depois da Segunda Guerra, a tradição continuaria a cumprir-se: nos anos 50, foram as manifestações contra e a favor da Argélia Francesa, e nos anos 60, o Maio de 68. Desaparecidas as colónias e as paixões políticas extremas, foi o tempo das “reformas sociais” e das “questões fracturantes”. Em Novembro de 1995, o Plano Juppé para a reforma da Segurança Social mobilizou os sindicatos da função pública e deu origem às maiores manifestações multitudinárias desde o Maio de 68. Seguiram-se, mais próximas, as paradas arco-iris, das pró LGBT às MANIF POUR TOUS.

Desta vez, quem está na linha da frente são as centrais sindicais das várias famílias político-ideológicas. Porém, na vanguarda da escalada da violência, perfila-se o líder da La France Insoumise, Jean-Luc Mélenchon, que parece querer suscitar uma “revolução social”, num regresso nostálgico aos bons velhos tempos de juventude, ou ao tempo em que cerrava fileiras com dois saudosos amigos e companheiros de caminho, Fidel de Castro e Hugo Chávez:

É preciso não só conquistar o poder, mas exercê-lo de forma revolucionária. A conquista da hegemonia política tem um preâmbulo: é preciso transformar tudo em conflito” – dizia, já em 2012.

É com esta radicalização que a Nova Esquerda – convencida da verdade e da razão absolutas dos seus valores e princípios e ciente de que, através do voto popular, não chegará nunca ao poder – declara o sistema como destituído de legitimidade.

Um dos seus grupos, os Black Blocs (ecologistas radicais que actuam com a cabeça tapada por cagulas) tem vindo a misturar-se nas manifestações multitudinárias. São os Black Blocs, conjuntamente com outros grupos radicais, os principais responsáveis pela deriva violenta a que temos vindo a assistir em Paris e noutras cidades francesas. Foi a este propósito que, com a sua habitual independência, a RTP traduziu em legenda “extrème-gauche” e a “ultra-gauche” (a cuja violência se referia claríssima e inequivocamente o Ministro do Interior francês, Gérald Darmanin) por “extrema-direita” e “ultra-direita”. A ignorância poderá ser grande, e tende a sê-lo, mas dificilmente chegará a tanto…

Por um relógio de pulso

De qualquer modo, e independentemente da razoabilidade da lei da reforma, Macron parece conseguir, como ninguém, encarnar a ideia de um poder desligado do povo, excitando o fenómeno de repulsa popular pelas elites prepotentes e alienadas.

Um episódio anedótico mostra-o bem: numa entrevista televisiva, transmitida pela TF1 e pela France 2 em 22 de Março, o Presidente retirou do pulso o relógio, sendo imediatamente acusado nas redes sociais de usar um objecto de luxo de 80 mil Euros. O Eliseu desmentiu a história como fake news, acrescentando que o relógio de Macron era um simples relógio de 2.400 Euros, ou seja, um gadget ao alcance da bolsa do comum cidadão de classe média.

Macron foi eleito por duas vezes em segunda volta contra Marine Le Pen, em 2017 e 2022, obrigando uma esquerda contrariada a juntar-se ao centrão e aos liberais para “parar o fascismo”. Só que, aparentemente, as coisas começam agora a ficar diferentes.

Em 2022 Marine Le Pen teve 41,5% dos votos contra os 58,5% do vencedor. Menos de um ano depois da eleição, segundo uma sondagem da IPSOS publicada por Le Point, Macron tem a opinião desfavorável de 69% dos franceses. Pior que ele, só a sua Primeiro-ministro, Élisabeth Borne, que não consegue mais do que 23% de popularidade. Como os líderes da esquerda, com Jean-Luc Mélenchon à cabeça, permanecem estáveis, os únicos vencedores desta crise parecem ser Marine Le Pen e o seu Rassemblement National.

Quando, logo a seguir à decisão favorável do Conselho Constitucional, presidido por Laurent Fabius, Macron promulgou a lei das reformas, Marine não perdeu tempo:

Ao decidir promulgar a injusta lei das reformas às 3 horas e 28 minutos da madrugada, Emmanuel Macron provocou pela enésima vez os franceses […] É um pirómano”.

Ao mesmo tempo, uma sondagem da ELABE, com os mesmos candidatos de 2022, dava Marine como vencedora à primeira volta, com 31% dos votos, Macron com 23% e Mélenchon com 18,5%; só que, à segunda volta, Marine teria já 55%, contra os 45% de Macron.

Mas podem os antifascistas permanecer calmos, que ainda faltam quatro anos para 2027.