Em Portugal frequentemente comentamos “não estás a ver o filme” quando, por exemplo, descrevemos algo fora do normal que nos aconteceu. Implícito fica que o filme é o que precisamos de ver para saber lidar com a realidade, seja ela mais ou menos extraordinária. Já pensaram no que isto diz sobre o impacto do cinema nas nossas vidas? Um dos modos de saber interpretá-las é precisamente o de contemplá-las como filmes. Vivemos filmes que se dão a ser vistos por nós próprios e pelos outros. O filme é a vida, no fundo, e a vida é o filme.

É ruim quando vemos mal o filme. É sinal, afinal, de que a existência nos está a passar ao lado. Daí que boa parte do nosso esforço seja ver o filme, compreender a acção, chegar até aos créditos finais. Nós, que quando reparámos já estávamos dentro do filme que é a nossa própria vida, somos como actores que, estando já contratados, tentam descortinar a direção do enredo que já protagonizamos. O que é a vida senão essa mesma sobreposição de planos em que os intérpretes da história tentam sobreviver-lhe por via da compreensão mas não só?

À medida que fomos descrendo de que ver o filme exigia reconhecer em Deus o realizador, ficámos actores em busca de auto-realização das cenas. Sentimo-nos na responsabilidade de nos orientarmos a nós próprios e a toda a equipa técnica da película. Tentamos saber o momento quando gritar “acção” e quando gritar “corta”. Queremos inícios e fins que nos ajudem a editar mentalmente o filme no qual já nos envolvemos ainda antes de saber se estamos a gostar dele tanto assim. Ficamos num dilema, entre o filme que estamos a fazer e o filme que nos está a ser feito.

O teólogo John Frame demonstra que um dos erros do nosso tempo se dá precisamente nos equívocos típicos de saber ver o filme. A questão não é como o que acontece mostra o filme, mas mais como o filme acontece só por algo ser mostrado. Vou tentar explicar melhor. Quer tenhamos religião ou não, persistimos no vício de tentar extrair sentido do que nos acontece (a teleologia é uma droga tramada de largar). Irremediavelmente, estamos sempre a tentar ver o filme. Mas Frame mete tudo ao contrário: o sentido não está dependente do que acontece, mas o que acontece é que está dependente do sentido.

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Para quem não for tão ignorante de alguma história religiosa, poderá cheirar o calvinismo no que escrevo. Em grande parte, todos esgravatamos nos acontecimentos para interpretar o mundo, convictos de que o mundo acontece para ser interpretado. Mas John Frame, teólogo de facto calvinista, sugere que o mundo é que acontece por causa da interpretação. A ordem certa não é: o mundo primeiro, e a interpretação depois. A ordem certa é: a interpretação primeiro, e depois o mundo.

Leiamos as palavras de Frame: “Deus pré-interpretou todas as coisas e todos os acontecimentos (…) A interpretação dos factos precede os factos (…) Entre os seres humanos a interpretação não é o trabalho de avaliar pela primeira vez a importância de factos não interpretados. Antes, o nosso trabalho é fazer uma interpretação secundária; é a obra de interpretar a interpretação de Deus.” Saber ver o filme é, portanto, demitir-nos da realização que nunca foi nossa. Reparem que isso não pede menos empenho da nossa parte, pelo contrário.

Muitas vezes eu mesmo não estou a ver o filme onde fui metido. Aliás, estou a ser demasiado optimista. Será mais rigoroso dizer que volta e meia sinto-me a ver o filme. Não duvido do filme, mas duvido muito de o saber estar a ver. Que o cinema acontece, não há dúvida (o meu calvinismo também vem daqui, de não ser possível o cinema não acontecer). Mas o melhor de ver o filme, creio, está também além dele—e, sim, sei que acabo na metafísica com esta confissão e com este credo. Na quantidade rara de ocasiões em que me sinto a ver o filme, sinto-me acompanhado pelo autor de um texto que não decorei mas que vai sendo dito. Não me deram o guião, mas que alguma coisa se está a escrever, está.