Morreu o poeta Ernesto Melo e Castro. Este covilhanense era poeta e homem de corpo inteiro. Mas visitei-lhe os olhos quando o fui visitar na sua casa, em São Paulo, em Setembro do ano passado. Apenas os olhos, como quando se entra numa casa enorme, mas nos sentamos a conversar apenas numa das suas divisões. Ernesto Melo e Castro foi sempre uma enorme casa da poesia, uma casa aberta, não lhe cheguei a conhecer todos os cómodos, pois havia muito a percorrer entre o alpendre e o desvão. Fiquei-me por ali, a indagar-lhe os olhos.
Vivia no Brasil há mais de duas décadas, tão longe da nossa terra, Covilhã, tão perto de tudo o resto, que o mundo é onde estamos. Visitei-lhe os olhos vivos com que olhou a realidade e a descobriu tão diferentes de como todos a víamos. Os olhos envelhecem, não o olhar.
Ernesto Manuel de Melo e Castro afirmou-se como um nome sagrado na poesia visual e experimental, quer em Portugal, quer no Brasil onde publicou uma série considerável de livros engenhosos, cheios de poemas, de infopoemas, ideogramas, traços e letras selvagens, desordeiras….
Recebeu-me no seu escritório feito de livros, de muitos livros. “Cerca de cinco mil livros. É o meu universo.” A biblioteca de uma vida feita de letras, de leitura, de viagens página a página. “Li o seu romance. Há muito que não lia um romance…” Teceu elogios. Encantou-se pela novela “Céu do Mar” — agradeci. Falámos de escritas, de leituras, e eu pregado nos seus olhos vivos de onde a poesia brotou para serigrafias, com uma presença gráfica, visual, forte. A imaginar que aquelas suas longas barbas seriam uma cascata de letras, uma cachoeira de caracteres tipográficos a contarem as suas memórias.
O corpo estava já quebradiço pelas maleitas do tempo, 87 anos na altura. Dizia que tinha medo de viajar para Portugal que a viagem era longa. “Da última vez senti-me mal!”. Também não pareceu muito saudoso de um país que nem sempre o acarinhou. “Recebi das críticas mais insultuosas em Portugal, recebi o esquecimento de alguns colegas que eu tanto estimava, vi aqueles que eu mais estimava, como o António Ramos Rosa, morrer quase no anonimato injusto”, disse um dia, para quem quis ouvir, quando o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, veio a São Paulo e lhe outorgou a Ordem do Infante Dom Henrique.
Apresentou-se com um rosto tranquilo, uma figura helénica, com aquele carisma que sempre o caracterizou. Persistia-lhe aquela cintilação nos olhos que insiste em negar e esconder a fragilidade do resto do corpo. Naquela casa sentia-se em paz, forte entre os livros. Deixou-se banhar pela luz natural que vinha da janela, e continuou a inspirar e expirar poemas.
Confidenciou-me que continuava a escrever à mão; escrevia à mão e virava as folhas ao contrário para ninguém ver. “Não gosta que o leiam”, comenta a Elza, a sua esposa, outra apaixonada das letras, que o complementou na vida, que o amparou com ternura. Também lhe brilham os olhos na cumplicidade.
Com voz cândida, cheia de palavras amigas, Ernesto Melo e Castro falou da minha escrita, da Covilhã, dos têxteis, da universidade… e eu, que nunca me encontrei com ele nesta terra de bons panos que é a nossa, fui apertar-lhe a mão lá no Brasil, porque a admiração não tem fronteiras e nos faz bem sair do caminho, para nos perdermos num abraço… despedimo-nos com um “até à próxima na Covilhã”. Agora que o seu corpo partiu, parece difícil, mas o mundo que nós vemos não é igual ao que ele sempre viu, e por certo encontrará uma outra ‘Covilhã’ num outro universo qualquer, onde nos poderemos encontrar para falar de literatura… Em mim, os seus olhos vão continuar a brilhar!