Estamos em plena campanha eleitoral, mas este não parece ser o tempo dos políticos, mas sim, o tempo desmesurado dos comentadores televisivos que, do alto da sua cátedra, influenciam a política e a opinião pública. Mas com um pormenor: não se sujeitam ao veredito popular – são as opiniões sem mandato. Na ‘Comentocracia’, a voz dos comentadores ecoa mais alto do que a voz dos próprios políticos, procurando assim moldar as narrativas e os debates da sociedade. Este impacto televisivo, prefigura uma mudança significativa na estrutura de poder e influência, dentro das sociedades contemporâneas. Tradicionalmente, a esfera política era dominada pela voz dos políticos e dos líderes eleitos. Eram estes que ajustavam a narrativa e os debates públicos, por meio dos seus discursos e acções políticas. Contudo, este advento da sociedade da informação imediatista, levou à ascensão de uma nova classe dominante, de comentaristas e analistas na esfera pública. Porque esse poder lhes é dado, os comentadores possuem um tempo de antena sem igual, e arrogam-se uma autoridade extraordinária para interpretarem tudo o que acontece sem qualquer pejo ou acanhamento. Os comentadores profissionais sabem como o país está e devia estar, o que os políticos são e deviam ser, o que dizem, o que pensam, o que sentem, e também o que deveriam ser, dizer e sentir. Os políticos tornaram-se, assim, figuras secundárias de um mero ‘reality show’. Importantes, mesmo, são os doutos comentadores da televisão.

À política espectáculo, o espectáculo dos comentadores em overdose.

Como o eleitor deve ser ignorante por natureza, nem nos deixam respirar, tentar ter ideias próprias. A cada espirro dos políticos, cada canal de televisão oferece imediatamente quatro horas de semiótica e uma avalanche de cinquenta mil comentários contraditórios. E se os debates entre políticos são confusos e barulhentos, que dizer dos debates sobre os debates? Serão eles mais esclarecedores? Serão mais elucidativos? Ou apenas acrescentam ruídos e contradições? Alguém sai mais informado do ‘debate de comentadores’, ou com mais vontade de ir votar? Eu creio que não. Acredito que apenas desalentam ainda mais os indecisos e os descontentes com este sistema político, aumentando a abstenção.

Enquanto os políticos estão acorrentados às vontades dos seus eleitores, às agendas dos seus partidos, as forças internas e externas, às pressões emocionais, às variáveis da opinião pública e às contingências das forças externas que alteram os equilíbrios políticos, alguns comentadores vagueiam qual virgens puras nos vastos prados da liberdade de opinião, sem amarras ou compromissos. Assim é fácil. Apresentam-se como os grandes oráculos da sabedoria contemporânea, os árbitros supremos do que é certo e errado na política, na economia e até na escolha das gravatas. À política espectáculo, o espectáculo dos comentadores em overdose.

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Mas quem são muitos deles, e qual o seu papel? Apresentam-se como as vozes imparciais da razão, como paladinos da verdade num mundo cheios de impostores. Mas, serão mesmo? Terão mesmo essa superioridade moral? Ou como actores de um teatro absurdo, por trás da sua fachada de imparcialidade e sabedoria, muitos procuram manipular a opinião pública como qualquer político maquiavélico? E com que fins? E ao serviço de quem? Sabem que as suas intervenções moldam as mentes dos cidadãos, influenciam a percepção que os eleitores têm dos debates, dos discursos, das personalidades políticas, e não escondem as suas agendas – muitas vezes, colocam mesmo a debate, temas e assuntos como se fossem eles próprios, políticos activos e intervenientes na contenda eleitoral. É um exagero e, por vezes, raia o absurdo. Enquanto os políticos lutam por cada voto, sujeitando-se ao escrutínio implacável dos eleitores, os comentadores pairam acima deste frenesim democrático, intocáveis e livres do veredito popular.

A importância do comentário político na era da política espectáculo

Ainda que resultado de um cansaço, é preciso sublinhar, que esta não é uma crítica generalizada e que eu defendo o comentário político. Obviamente, que defendo o comentário político. Há pessoas que não perco a oportunidade de escutar, oiço com muita atenção e são-me úteis para formular o meu pensamento. Defendo aquela pessoa informada que pode ajudar a clarificar o discurso político, que acrescenta informações importantes para contextualizar acontecimentos específicos, que aporta os saberes experimentados de quem vive a política de perto e conhece os seus actores. Igualmente, defendo aquela pessoa que, situada politicamente, defende claramente um ponto de vista que é o seu, e da área política que representa, ajudando-nos a ver as questões por outra perspectiva a enriquecendo a análise.

Os comentários políticos independentes e didácticos, são importantes. Desempenham um papel crucial na promoção da democracia ao fornecer análises imparciais, ao esclarecer conceitos mais complexos, ao explicar as ramificações de decisões políticas e, em consequência, ao capacitar o cidadão para uma esclarecida tomada de decisão. Também contribuem para a promoção da diversidade de opiniões na esfera pública, enriquecendo o debate político e acrescentado vozes diferenciadas, que alargam a gama de perspectivas com que a política é observada. Os comentários políticos independentes, também actuam na própria política: ao exporem inconsistências, falhas e abusos de poder, ajudam a manter os políticos e as instituições mais responsáveis perante o público, contribuindo assim para uma maior integridade e transparência.

Mas, é preciso dizer que, o que assistimos nos últimos tempos vai muito além disto. Diria mesmo, que os exageros de muitos painéis levam mesmo num sentido contrário. A televisão está tomada por uma parafernália de comentadores “residentes” que só acrescentam dissonâncias, ruídos e balbúrdias, que discutem entre eles numa esquizofrenia de egos, e que nada ajudam à democracia portuguesa. Nos painéis, recheados de comentadores crónicos, alguns mostram a vacuidade dos seus comentários e deixam revelar o seu forte engajamento ideológico, e um papel político activo que não devia ser o seu – pelo menos naquelas funções.

Pobre do eleitor que, na sua crescente iliteracia política, já tinha dificuldade em entender a trivialização da política, a superficialidade do debate público em que o circo mediático se sobrepôs ao conteúdo, já tinha dificuldade em lidar com as fake news das redes sociais, e ainda tem agora de sobreviver a este verdadeiro atordoamento, imposto por uma cacofonia galopante da “Comentocracia”, quando se comemoram os 50 anos do “25 de Abril” e desta Democracia que, apesar da idade, tarda em amadurecer. Que este meu “comentário” seja apenas motivo para uma reflexão critica ao exagero que vivemos.    

Nota: Este artigo também pode servir para o Futebol, mas esse é outro campeonato!