Mariya estava ensopada entre as pernas, tinha o coração descompassado, a respiração ofegante. Tremia de frio. Ia dar à luz o seu primeiro filho, naquela habitação escura para onde a tinham arrojado. Não via nada. Não tinha Yosef a seu lado, para lhe dar a mão, nem o simples bafo de um animal que lhe acalorasse a pele. Apenas o medo escondido no breu daquele buraco e uma oração nos lábios:

– כִּי אַתָּה אֲדֹנָי צוּרִי וְגוֹאֲלִי, אֱלֹהַי אֶבְטַח בָּךְ – Pois Tu, Senhor, és a minha rocha e o meu redentor; tu és o meu Deus, em quem confio.”

Dia 7 de Outubro de 2023. Era uma vulgar manhã no moshav de Netiv HaAsara. Estava inquieta na cama. O marido prometera voltar cedo para casa, e ainda não tinha chegado. Trabalhara de noite na Torre de Observação junto à fronteira com a Faixa de Gaza, uma zona de segurança com barricadas duplas e fronteiras cercadas com muros metálicos. Acordara sobressaltada com o barulho de explosões e um anormal clamor de gentes pelas ruas. Grávida, preferira continuar deitada, não estava em condições de fugir para lado nenhum. Yosef estaria a chegar, ele lhe diria o que se passava e o que teriam de fazer. Mas o barulho das gentes era cada vez mais próximo e inquietante, havia som de disparos e gritos, muitos gritos. Escutava o som de carros e o estridente barulho de algumas motos. Não aguentou mais, ergueu­-se nervosa. Colocou os pés descalços no chão, endireitou as costas e colocou a mão sobre o ventre – como que para acalmar o filho que crescia dentro de si. Sentiu então que alguém procurava abrir a porta de casa.

– Yosef, és tu? – gritou ela, esperançosa.

Não, não era. Uma rajada de tiros destruiu a fechadura e a porta abriu-se com estrondo. Entraram dois homens armados, com um barrete negro que lhes tapava o rosto, deixando apenas uns buracos para os olhos e para a boca. Tinham uma faixa verde na cabeça com inscrições árabes. Percebeu que era um comando terrorista do outro lado da fronteira, temeu o pior. Em desespero, como louca, gritou por socorro. Um dos homens aproximou-se e deu-lhe um soco no rosto. Caiu para trás, estirada na cama, sem sentidos, silenciosa.

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Quando recobrou os sentidos, deu por si aos solavancos na carroceria aberta de uma carrinha, com duas outras mulheres, amarradas e ensanguentadas. Uma delas estava semi-despida, com o corpo sujo, quase desfigurada. Estremeceu e gritou de novo, mas um dos homens que seguia na viatura, de rosto coberto, apontou-lhe a arma e colocou um dedo sobre o lugar da boca, indicando-lhe que se calasse. Mariya engoliu o choro e sufocou os gritos a medo. Tinha a boca ensanguentada e dorida, mas era a única das mulheres que não estava amarrada, colocou as mãos sobre o ventre e rezou. Olhou em redor e viu como por todo o lado, havia mortos pelo chão, os homens gritavam e disparavam tiros como loucos. Havia foguetes pelos ares e ouviam-se detonar mais longe. Era cedo ainda, mas o calor já se fazia sentir. Transpirava. A poeira dos ares agarrava-se-lhe ao rosto. Sentia-se suja, mas naquele momento, era o que menos a preocupava. Esfregou de novo as mãos pelo ventre e, entre soluços, tentou cantar uma canção de embalar.  … – ה’ הוא שומרך… – O Senhor é o seu guarda, Ele vai te proteger!

Passaram em velocidade junto a uma das torres de vigilância – estava destruída. Pediu a Deus que não fosse a torre onde trabalhava Yosef, e que ele estivesse bem. Os homens clamavam:  الله أكبر. Ela não falava árabe, mas conhecia aquela expressão: “Deus é grande!”

A carrinha contornou os escombros, até junto de uma retroescavadeira que rasgava o muro ferro que servia de fronteira. Passaram por entre uma vedação derrubada e aceleraram terreno fora, levantando uma cortina de poeira. Seguiam para Gaza.

Na Faixa de Gaza, era uma invulgar manhã de Outubro. Dando seguimento a dezenas de anos de conflitos, um grupo de militantes islâmicos do Hamas, tinha atacado Israel – a operação Al-Aqsa Flood[1].Os ataques tinham começado bem cedo, com o lançamento de centenas e centenas de foguetes e posteriores incursões de veículos e motorizadas no território. Dizia-se que centenas e centenas de civis israelitas tinham perdido a vida, assim como muitos soldados e polícias; que cerca de duzentas pessoas tinham sido tomadas como reféns e arrastadas para a Faixa de Gaza, incluindo mulheres grávidas e crianças. Havia histerismo pelas ruas, e ouviam-se tiros para o ar. الله أكبر – gritavam.

A jovem Maryam estava cansada da guerra, das mortes. Queria concentrar-se no amor pelo marido e na criança que trazia no ventre, mas não conseguia. Toda ela estremecia, por dentro e por fora – pressentia a guerra. Sabia que Israel iria ripostar e vingar aquele ataque. Sabia que a morte estaria a chegar dos céus. Não se enganou: os bombardeamentos começaram uma destruição cega. Os rockets israelitas explodiam as casas, provocando ondas de poeira e fogo. Estava mergulhada no inferno.

– Youssef, onde estás? – gritava ela, em aflição.

Estava sozinha, o seu homem não lhe acudia no desespero. Não veio na primeira noite, nem na segunda, nem na terceira… Não havia comunicações, só  الله – Allah saberia do seu paradeiro. Não tinha luz, água, comida. O filho por dentro dela mostrava-se irrequieto, como se os estilhaços da guerra lhe chegassem ao ventre. Devia pressentir o seu medo e ter também medo da morte antes de nascer. Em desespero, Maryam saiu de casa a caminho do hospital. Com dificuldade, com a sua enorme barriga, andou por entre os escombros de casas derrubadas, onde se viam corpos soterrados, gente desesperada, e se ouviam gritos, aulidos de dor. As sirenes ecoavam por todos os lados, misturadas com gritos e mais gritos. Ouviam-se um coro de crianças dispersas a chorar o mesmo horror, acompanhadas pelo uivar dos cães. A cidade estava cinzenta, com camadas de pó e cinza. Sobejavam disformes esqueletos de betão e ferro, tudo o resto eram paredes arruinadas como o futuro…

Vendo o seu estado, alguns populares pegaram nela ao colo, levaram-na até uma ambulância do Crescente Vermelho[2] que a transportou ao hospital mais próximo para ali receber cuidados. Teve direito a uma maca, uma malga de leite, pouco mais. Ali faltavam medicamentos, água limpa, e por vezes a própria energia. Sem combustível, os geradores também iam parando, um a um. Quando os bombardeamentos atingiram o hospital, agarraram-na em braços e transportaram-na para os subterrâneos escuros. Levaram-na para uma divisória fria e húmida, sem mobílias, apenas um tapete no chão onde a colocaram à pressa e a deixaram às escuras. Não se via absolutamente nada. Os homens partiram por entre o som de rebentamentos que tudo faziam estremecer. Quando o coração acalmou um pouco, percebeu os gemidos de outra mulher ao seu lado. A custo, Maryam movimentou-se na sua direcção e agarrou-se a ela em desespero, procurando afago, calor, proteção, vida… as duas mulheres abraçaram-se em desespero e choraram juntas.

[3]אלוהים עלינו ישמור – disse a mulher a que se abraçava.

Estremeceu. Percebeu que era judia. O coração acelerou-se de novo no peito, mas foi incapaz de se deslaçar dela. Respondeu apenas:

[4] الله حفظنا

Sentiu o estremecimento do outro lado. Ainda assim, permaneceram abraçadas naquele lugar sombrio, chorando em silêncio, um silêncio tão forte como as deflagrações das bombas que sentiam rebentar no edifício.

Mariya estava ensopada entre as pernas, tinha o coração descompassado, a respiração ofegante. Tremia de frio. Ia dar à luz, naquela habitação escura para onde a tinham arrojado. Não via nada. Não tinha Yosef a seu lado, para lhe dar a mão, nem o simples bafo de um animal que lhe acalorasse a pele. Apenas uma mulher árabe, que apertava com mais força sempre que uma explosão parecia fazer ruir tudo à sua volta. Nesse aperto apercebeu-se que também ela estava grávida. Passou-lhe as mãos pelo ventre, acariciou-a. Sentiu que a criança se agitava e, no seu instinto de mãe, com os lábios fechados, começou a entoar a canção de embalar que cantava para o seu próprio filho. Lábios fechados, um som gutural, sem palavras. Só uma melodia calma, para acalmar a mãe e o filho.

Sem perderem o abraço, ao som da canção, foram ondeando os corpos como num embalo, e ali permaneceram longos minutos, numa dança que as alheava do mundo, do terror da guerra, dos ódios. Duas mães, duas crianças, na escuridão onde não havia cores, nem mapas com fronteiras, nem peles diferentes. Nem Deus as podia distinguir, nem elas podiam ver qualquer diferença em Deus. Quando as contrações chegaram, quando as dores tomaram conta delas, partilharam os medos, dividiram os gritos, fincaram os dedos na pele uma da outra. Eram jovens, inexperientes, temerosas, ainda assim tinham-se uma à outra. Maryam ajudou a nascer uma criança. Mariya ajudou a nascer outra criança. Na escuridão, o choro de uma criança judia não se distinguiu do choro de uma criança islamita, era choro apenas, como o de todos recém-nascidos que despertavam para o mundo. Não tinham como cortar o cordão umbilical, permaneceram com as crias encostadas à pele para que recebessem o calor dos corpos, ajeitaram as roupas para que as cobrissem, e assim permaneceram os quatro, a respirar silêncio, naquela sombria gruta da natividade.

Não houve uma estrela no céu, apenas rockets a riscar o firmamento. Não vieram pastores adorar os meninos, amedrontados que estavam entre as ruínas, tentando sobreviver. Não vieram reis e ninguém trouxe presentes, nem ouro, nem incenso, nem mirra. Ainda assim, na negritude de um buraco escondido na terra, tinham nascido dois salvadores – pois o milagre da esperança renasce em cada criança, e todas as crianças são messias, todas são as esperadas, todas são ungidas por Deus.

O silêncio foi quebrado pela chegada das tropas israelitas que chegavam para resgatar os reféns e combater os guerrilheiros do Hamas. Estes arrombaram a porta e deixaram entrar um rasgo de luz. As mulheres olharam-se pela primeira vez e sorriram, um sorriso limpo sem mácula. Entraram três soldados, que se ajoelharam perante elas. Abriram a mala de primeiros socorros, cortaram os cordões umbilicais, limparam e embrulharam as crias em mantas, cuidaram das mães. “Temos dois rapazes”, alguém disse. Depois, elas e as crianças seguiram caminhos diferentes, para nunca mais se verem, já que o mundo dos homens é feito de bifurcações, fronteiras e lonjuras. Disseram algo uma à outra, que nenhuma entendeu, mas sorriram em paz, que o sorriso é universal.

Quando mais tarde lhe entregaram a criança, pela tez escura, Mariya percebeu que aquele não era o seu filho. Mas, nada disse. Quando colocaram a criança no colo de Maryam, a sua pele e os cabelos claros, denunciaram que aquele não era o seu filho. Mas, nada disse. Tinham a memória de um sorriso limpo, sem mácula, de mães que amavam os seus filhos. Seriam cuidados. Talvez um dia eles se reencontrassem. E um israelita entendesse melhor um palestiniano e vice-versa, porque na verdade, eles eram vice-versa, num milagre de Natal. E eram os ungidos de Deus, pois o milagre da esperança renasce em cada criança, e todas as crianças são messias.

[1] Operação Dilúvio; em árabe: عملية طوفان الأقصى, translit. ʿamaliyyat ṭūfān al-ʾAqṣā)
[2] Equivalente à Cruz Vermelha – é um movimento internacional humanitário, neutro e imparcial, não vinculado a qualquer Estado, sem carácter religioso ou significado político.

[3] “Que Deus nos proteja!”

[4] “Que Deus nos proteja!”