Num mundo onde políticos frequentemente parecem viver em esferas à parte, uma simples viagem de autocarro em Londres revela um contraste gritante com a realidade política em Lisboa. A diferença não é apenas de meio de transporte; é um fosso que espelha o abismo entre governantes e governados em Portugal.
A caminho de casa após visitarmos a incrível exposição imersiva BBC Earth Experience, narrada por Sir David Attenborough, rumamos ao nosso bairro para mais um jantar de amigos, quando reparamos que no autocarro onde vamos, imediatamente ao nosso lado, está a actual ministra dos Negócios e Comércio do Reino Unido, Kemi Badenoch. O espanto para nós foi grande, mas para os restantes nem por isso – afinal de contas, estamos num país onde acaba por ser comum ver detentores de cargos públicos e políticos em geral utilizarem a rede de transportes públicos da cidade de Londres.
Eis que dou por mim a pensar no quão improvável (impossível?) isto seria no nosso país. Alguém no seu perfeito juízo acha realista vermos um – UM! – dos atuais ministros a usar transportes públicos em Lisboa? Imagina João Galamba a sair de casa e apanhar o metro ou o 28 para Campo de Ourique? Ou Eduardo Cabrita o 701 nas Laranjeiras, depois ir às compras no supermercado? Pois. Mas em muitos países, isto é bem mais frequente do que imagina.
Tenho para mim que os ministros portugueses – e, provavelmente, a maioria dos políticos nacionais – só anda de autocarro quando a) é Dia Europeu Sem Carros e as câmeras de televisão andam por perto, b) estão a inaugurar uma estação ou uma rota nova ou c) vão a caminho de algum jogo de futebol onde têm bilhetes VIP e a comitiva inclui transporte “por questões de segurança”. Caso contrário, a viagem é quase sempre feita em carro oficial ou do partido, com o motorista ao volante.
A questão central reside na lacuna palpável que separa os governantes portugueses do eleitorado a quem servem. Viajar de transporte público não é só um meio de transporte, mas também uma maneira de se imergir no dia-a-dia dos cidadãos e perceber as suas necessidades e preocupações. Em contraste, num país seguro e pacato como Portugal, é bastante comum Portugal ver figuras do governo a circular em veículos topo de gama, a alta velocidade, e protegidas por grupos de seguranças quando andam na rua, numa espécie de cápsula que os isola do mundo real.
O problema é que esta separação vai muito além do espaço físico e invade o território emocional e cognitivo. Num país marcado por desequilíbrios sociais e uma série de desafios ainda por resolver, esta falta de ligação ao mundo real apenas serve para alimentar um sentimento já existente de insatisfação e descrença nas entidades políticas — não é apenas uma falha de representação visual; é uma falha de sensibilidade e de contacto humano. Enquanto os líderes políticos portugueses se movem em automóveis de luxo com vidros fumados, permanecem alheios à vida daqueles que aguardam os transportes, que lutam com questões de acessibilidade ou que anseiam por um serviço mais eficaz e humano.
Em Inglaterra, Kemi Badenoch é reconhecidamente uma das ministras-estrela deste governo, muito “por culpa” da sua frontalidade em encarar o establishment do politicamente correcto, cada vez mais em voga por estas bandas. Nasceu em Wimbledon mas viveu a sua infância nos EUA e Nigéria – este último, casa da sua família. Conhece, na primeira, pessoa as injustiças de quem sofre por ter cor de pele preta, mas não deixa que o wokismo e o medo de se dizer aquilo em que acredita tomem conta da sua narrativa – e usa a experiência e sucesso pessoal como bandeira de proa anti-woke. Enquanto responsável pelas questões da Igualdade (cargo que acumula com o de ministra), a ministra provocou fúria à Esquerda e aplausos à Direita quando declarou que não existe racismo sistémico no Reino Unido, que é contra as casas-de-banho unissexo e que “eles [a Esquerda] afirmam ser a favor das mulheres e das minorias étnicas, mas se não aderires à sua causa vão detestar-te ainda mais do que detestam os homens brancos privilegiados.”. Ouch!
Se aliarmos a este contexto o facto de Badenoch viver num país onde nos últimos sete anos foram assassinados dois deputados, é de louvar o acto de sair à rua e apanhar o autocarro, abdicando de proteção policial.
O sangue latino impediu-me de estar calado e meter conversa, tendo inevitavelmente interpelado a senhora ministra com um elogio – afinal de contas, não é todos os dias que se renova a esperança nos políticos, sejam lá de que quadrante forem, e assistir na primeira pessoa quando fazem as coisas mais chatas da vida, como é apanhar aquele autocarro, tantas vezes apinhado de gente, como todo e qualquer transporte público em Londres a um Sábado à tarde.
Enquanto muitos políticos estão mais preocupados, talvez obcecados, em ganhar seguidores do que a confiança do povo, é um alívio saber que alguns ainda valorizam as coisas banais da vida.