Que povo somos nós? Que povo já fomos? Em que nos transformámos? Perscrutando os anais dos Descobrimentos portugueses e mirando-me agora ao espelho, a imagem por mim reflectida está assaz desfocada e algo baça.

Não que em tempos de antanho fossemos modelos imaculados de virtudes celestiais, ou genuínos paradigmas da perfeição humana. Ridículo seria pensar assim. Não, de todo. Raramente o maniqueísmo integra a hermenêutica histórica.

Mas gostávamos da aventura, do mar, de arriscar, de negociar mais do que ocupar, de conhecer, de inovar, mesmo sabendo que muitas vezes o preço poderia ser a própria vida. Íamos, mesmo sabendo que provavelmente não mais viríamos. Claro, foi-o muito por necessidade, por se perceber que neste rectângulo não se conseguia providenciar sustento para todos. Por estado de necessidade, mas íamos.

Só que, muitas vezes, inversamente, esse mesmo estado de necessidade conduz antes ao amorfismo, à indolência e ao conformismo, enfim, à cinérea vulgaridade. Sim, a imagem reflectida no meu lusitano lustro é de mera e bafienta vulgaridade. Sim, é precisamente o autocolante da vulgaridade que se me gruda agora tão bem. Sim, como povo somos, agora, banais, vulgares. Detesto, mas é o engulhoso eflúvio que me invade inapelavelmente as narículas, açoitando-as, açoitando-as, açoitando-as…

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Não, não somos os melhores do mundo. Aliás, esta frase repetida ad nauseam constitui a maior prova de que nos entregámos às maiores profundezas do pântano da vulgaridade. Submergimos demoradamente enquanto agitamos, enérgica e desesperadamente, os braços, rugindo que somos os melhores do mundo e…arredores. Regidos, como não podia deixar de ser, por governantes e políticos… vulgares. Os frutos nunca caem muito longe da árvore.

É a vulgaridade que conduz à tentação do revisionismo histórico: só os vulgares invejam os outros, os melhores que eles, os que os ofuscam, os que fugiram à vulgaridade. Só os vulgares anseiam por destruir todos os referenciais que fazem deles, por comparação, pessoas… vulgares.

Só os vulgares querem apagar a memória do que fomos e somos. Só os vulgares querem rasurar os Descobrimentos, destruir os brasões e os símbolos de locais que frequentámos, arrasar os monumentos que não lhes pertencem, censurar ideias de museus, esquecer o suor que outros derramaram e demolir os alicerces em que nos fundámos. Só os vulgares não se sobressaltam com tão notável vulgaridade.

Só os vulgares querem descontextualizar a escravatura – horrível, sim – e desrespeitar todos os milhares de Portugueses que estiveram nas duras guerras africanas, quer fossem pretos, indianos, às riscas, aos quadradinhos ou simplesmente proto-brancos – seja lá o que isso for. São, antes, os vulgares que deveriam pedir perdão pela sua vulgaridade.

Só os vulgares querem continuar de mão estendida, como pedintes de lugar cativo em estações de metropolitano por onde passa a vanguarda do desenvolvimento europeu. Só os vulgares fustigam a mão germânico-frugal que há muito lhes dá de comer e paga os salários dos seus ilustres políticos. Sim, só os vulgares menosprezam a mão de quem lhes dá esmola.

Só os vulgares toleram que os seus políticos sem-vergonha atrevam a auto-classificar-se de prioritários na longa bicha das vacinações, perante os seus velhos que morrem todos os dias. Só os vulgares se acotovelam para passar à frente nessa mesma fiada de vaccinus, aproveitando-se dos seus elevados cargos públicos na hierarquia do Estado – na realidade, só os vulgares se acham indispensáveis. Só os políticos indecorosamente vulgares berram, então, sem pudor o adjectivo populista, ensaiando ferir os outros políticos que não se quiseram vacinar, que não quiseram ser vulgares. Tentam, medrosamente, desviar a atenção do opróbrio com que se enfeitaram. Sim, só os vulgares imaginam que nunca vão morrer.

Só os vulgares aprovam leis de morte enquanto copiosas e rítmicas massas anónimas dos seus velhos morrem todos os dias. Só para os vulgares a velhice é insuportável.

Só os vulgares são desprovidos de almas com vontade: adormeceram-nas na viscosidade peganhosa da sua vulgar existência. Obviamente que pretendem também adormecer as dos outros.

Esquecem-se, os vulgares, que um dia os filhos de revisionistas também apagarão a memória dos seus pais. Há já há muito, que Piaget e outros asseveram que a capacidade da criança de imitar as acções dos outros é um mecanismo importante para a aprendizagem social. Pois. Deus queira que sim! Insha’Allah!

Na estrofe 138 do Canto III dos Lusíadas, Camões alude a D.Fernando advertindo que “O fraco rei faz fraca a forte gente”. Bom, também não devo descontextualizar o poeta. Mas a forte gente nunca é vulgar. Bom seria que o meu espelho desembaciasse e que a mediocridade despertasse da modorra com que se vai vivendo. A história não espera por nós e a humanidade irá sempre percorrendo o seu inapelável rumo. E nesse percurso nunca existiu indulgência para quem ficou para trás. Os vulgares, aliás, deixam de poder escrever as páginas daquela história. São capítulos que se encerram para sempre. De facto, nunca existiu paciência para a vulgaridade.

Ou mudamos, ou morremos.