Social-democrata toda a vida, ou adepto do nacional-socialismo quando jovem adulto? Essa é a grande questão que está a assombrar a Alemanha. Afinal, estamos a falar de um homem adorado por uma grande parte do povo alemão, que exerceu cargos importantes governamentais depois da II Guerra Mundial, nomeadamente o de primeiro-ministro da Alemanha Ocidental entre 1974 e 1982. E tudo por causa de um livro — “Helmut Schmidt e a guerra miserável”, escrito por Sabine Pamperrien –, que sugere que Schmidt, enquanto jovem militar do exército nazi, tinha um “comportamento nacional-socialista impecável”, conta o Telegraph.
Schmidt nunca escondeu, nem podia esconder, a sua passagem no Wehrmacht, o exército alemão, tendo combatido na frente Leste, e reconheceu que esteve exposto aos ideais exaltados por Adolf Hitler, mas que rapidamente se desencantou pelos mesmos e que até se tornou num opositor. No livro publicado na próxima semana, Pamperrien afirma que essa versão é falsa. Depois de investigar documentos inéditos nos arquivos da Wehrmacht, em Friburgo, a autora descobriu notas e comentários que se referiam a Schmidt como alguém com “um comportamento nacional-socialista impecável”. Outras descobertas dão conta de que o jovem Schmidt terá sido enviado para dar palestras pelo país, pois explicava bem os princípios da causa e era capaz de transmitir esses ideais. Mais tarde, seria condecorado com a cruz de ferro pelos serviços prestados durante a II Guerra Mundial.
Helmut Schmidt, 95 anos, ainda não reagiu, mas o debate promete agitar o território alemão. É que falamos de alguém que está intimamente ligado ao “milagre económico” que transformou a Alemanha na grande potência europeia. Schmidt foi ministro da Defesa (1969-1972), da Economia (entre julho e dezembro de 1972) e das Finanças (1972-1974) daquele país.
Schmidt, como contava o New York Times em dezembro de 2013, é respeitado na Alemanha pelo pulso firme e tenacidade que demonstrou perante o domínio soviético da antiga República Democrática da Alemanha (RDA). O alemão, natural de Hamburgo, foi também a peça chave na decisão da NATO para responder à intenção soviética de instalar mísseis SS-20 no leste da Europa. Esse tema seria, aliás, decisivo para a sua queda, em 1982. A década de 70 foi marcada também por diversas ações terroristas levadas por extremistas com ligações à Alemanha de Leste, ações que tiveram em Schmidt uma valente oposição, lembra o mesmo artigo do NYT. A criação do G8, o grupo das oito potências mundiais, teve também o dedo deste homem, que agora está debaixo dos holofotes da interrogação.
“Devemos evitar um papel de liderança alemã”, aconselhou, sobre a política europeia
Aos 14 anos, soube que o pai era filho ilegítimo de um banqueiro judeu, segredo esse com que viveu até 1981, data da morte do pai. Schmidt casou com Loki em 1942, com quem esteve casado 68 anos. Quase sete décadas. O amor, contudo, voltou a bater à porta deste homem que sabe ser implacável no tom. Schmidt apaixonou-se aos 93 anos por Ruth Luah, uma mulher 15 anos mais nova. Em entrevista ao Daily Mail, em agosto de 2012, disse que não iam viver juntos porque “complicaria” as coisas. Questionado se era feliz com a nova relação, Schmidt foi quase tão frio como a Guerra Fria que segurou com firmeza: “A felicidade é relativa. Próxima pergunta.” Outra paixão deste homem é o tabaco. Em dezembro de 2013, o Guardian contou, entre muitas outras coisas, que havia rumores de que o alemão teria na sua posse qualquer coisa como 30 mil cigarros de mentol, pois temia uma suspensão ou a proibição do produto. “Não acredite em tudo o que lê nos jornais”, disse então a Larry Elliott, o editor de economia do diário inglês.
Voltemos à política. Schmidt, em dezembro de 2012, deixou uns recados e deu umas bicadas a Angela Merkel, a atual chanceler alemã, dizendo que se tratava apenas da opinião de um velho. “O que falta [na política europeia] é liderança”, escreveu Schmidt no Die Zeit, citado neste artigo do The Local. “Só uma parceria franco-alemã pode assumir a liderança na Europa. Devemos evitar um papel de liderança alemã. Não se pode fazer nada sem a França”, defendeu. O antigo governante lembrou ainda a responsabilidade dos líderes europeus, que não devem escolher a solidariedade, a principal razão por trás da União Europeia, disse.
O passado histórico deste homem que ajudou a sarar as feridas de um país dividido e arruinado é pesado, mas o que o livro de Sabine Pamperrien promete revelar poderá ser mais ainda. A autora diz ter descoberto que Schmidt, confesso social-democrata, terá tido um comportamento nacional-socialista “impecável”, como quem aplaude e respira os ideais do nazismo, uma ideologia que dividiu o mundo e foi responsável pelo Holocausto, que matou cerca de seis milhões de judeus. O livro sai na próxima segunda-feira.