Os documentos internos do Instituto de Segurança Social, a que o Observador teve acesso, mostram que o caos na regularização das dívidas à Segurança Social, desencadeada pela centralização do sistema, levou o Estado, em dezembro de 2007, a decidir não fazer novas notificações de dívida relativas ao período em falta que ainda não tinham prescrito.
A decisão foi tomada depois de terem sido enviadas, entre março e julho de 2007, as primeiras 112.377 notificações para quem não tinha feito os descontos entre 2002 e 2004. Dessas notificações, a Segurança Social recebeu 30.911 reclamações, levando o Instituto a criar três grupos de trabalho para analisar o processo e a elaborar um parecer sobre a necessidade, ou não, de proceder a uma “prescrição oficiosa das notificações” – expressão usada num documento do ISS, datado de dezembro de 2007.
Precisamente a 21 de dezembro, ocorre uma reunião entre o Secretário de Estado da Segurança Social (na época, Pedro Marques), a vice-presidente da Segurança Social (Luísa Guimarães) e os responsáveis pelo Instituto de Informática e o Instituto de Gestão Financeira. Segundo um mail enviado depois por Luísa Guimarães, nessa reunião tomaram-se duas decisões relativamente aos trabalhadores independentes em dívida: “Participação (aos serviços) para prescrição” das dívidas anteriores a 2002 (já tinham passado cinco anos sobre o prazo dessa prescrição); e não fazer nova “intervenção sobre este período” relativo às dívidas de 2002 a 2006.
A razão para esta última decisão explica-se no mesmo documento da Segurança Social: pela “fragilidade da informação disponível” no sistema; e pela “impossibilidade de demonstrar a existência de qualquer diligência administrativa que interrompa” a prescrição.
Oito centros não deram dados
A verdade é que, em janeiro de 2006, apenas 10 dos 18 centros distritais fizeram a migração dos respetivos dados para o novo sistema central, que o Governo de José Sócrates implementou nessa altura. A ideia era colocar tudo num único sistema, de modo a agilizar a cobrança de dívidas. Mas alguns dos maiores centros distritais acabaram por não mandar boa parte dos dados, por não os terem ainda informatizados, nem os meios adequados para o fazer. Estavam nessa situação Lisboa e Porto, bem como Beja, Braga, Évora, Faro, Leiria e Santarém. Lisboa era, de resto, o centro onde estava inscrito o agora primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho.
A disparidade da informação que chegou à Segurança Social, assim como as reclamações em massa, colocaram um dilema a quem tinha a responsabilidade de gerir o sistema: para uns trabalhadores era possível reconstituir a conta corrente inteira; para outros isso não era possível.
Foi assim que, no final de 2007, a Segurança Social deu o parecer para uma decisão:
“Reconhece-se não fazer sentido, nem tão pouco ser vantajoso em termos de custo-benefício, nomeadamente pela qualidade da informação residente no sistema, reconstituir a conta-corrente de todas as contribuições, relativamente às quais decorreu o prazo de prescrição.”
Dito de outra: abdicou-se de recuperar os dados que não estavam no sistema.
“Considerando a realidade existente, não se reconstitui a conta-corrente integralmente” dos beneficiários dos oito centros distritais que ficaram em falta, lê-se no mesmo documento.
Ficou mesmo assim decidido aceitar “o pagamento voluntário das contribuições como cumprimento de uma obrigação natural”.
278 mil não pagaram
Com a polémica sobre Pedro Passos Coelho a ganhar contornos de bomba mediática, a Segurança Social foi agora reconstituir como se passou todo o processo e fazer contas. Segundo esses cálculos, existem ainda hoje 278.756 trabalhadores independentes que não pagaram uma dívida que totaliza 324 milhões de euros relativas ao período de 2002 a 2004 (aquele que Passos pagou agora).
Quando no final de 2007 a Segurança Social decide nada fazer sobre as dívidas ainda em falta, estavam em causa (segundo estes dados) 525 milhões de euros, relativos a 373 mil trabalhadores independentes.
E depois de 2007?
Segundo os dados consultados pelo Observador, a Segurança Social procedeu em 2008 a uma nova vaga de notificações, por carta, a 76 mil trabalhadores independentes, relativamente a dívidas entre janeiro de 2006 e agosto de 2007 – recebendo de novo 29,9% de reclamações.
Nos três anos seguintes não terão existido novas notificações, até que em janeiro de 2011, ainda com José Sócrates no Governo, se avança para cobranças coercivas – ou seja, por carta registada. Estas incluíam dívidas de fevereiro de 2006 a dezembro de 2010. Mesmo assim, com um critério novo: apenas abranger dívidas acima de 4 mil euros. Receberam estas notificações 29.855 pessoas.