Texto de João Pedro Fonseca e Filipe Gouveia, correspondente em Caracas

A inacabada Torre David, em Caracas, conhecida como o maior gueto em altura do mundo, celebrizada na série “Homeland”, vai ser evacuada totalmente até ao final do ano.

Alguns milhares dos seus habitantes vão ser realojados em habitação social oferecida pelo Governo de Nicolás Maduro e muitos irão para casas construídas pela construtora de Leiria, Lena.

A Torre David, ocupada pelos pobres de Caracas em 2007, continua ainda hoje a ter a fama de espaço usado como refúgio para gangues, para sequestros, homicídios, tráfico de droga e de armas, prostituição. Mas nada disso parece existir no arranha-céus visitado pela equipa de reportagem da Lusa.

Tentar perceber a viabilidade de uma visita à torre revela-se por si só um processo de terror. Cada interlocutor faz o seu “filme” e ouvem-se descrições aterrorizantes.

Na verdade, para entrar e visitar a torre basta ultrapassar o único portão aberto. Vários elementos da segurança do prédio estão sentados em cadeiras de plástico. Não se veem armas.

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Uma rapariga de uns 14 anos indica o caminho até ao “escritório”, um primeiro andar numa das seis torres que formam o complexo da Torre David. Uma funcionária refere que é preciso falar com o presidente do condomínio. Chama-se Elvis Marchan e está a tomar banho, é preciso esperar.

Elvis vê com bons olhos a entrada de uma equipa de reportagem no edifício, mas não tem disponibilidade. Pega no telemóvel e liga a Alfredo Zambrano, o técnico de audiovisual e realizador que vive no prédio há cinco anos e está a preparar um grande documentário sobre a vida na Torre David.

Um arranha-céus de 45 andares que não tem elevadores, nem corrimões, pisos sem paredes nem janelas pode ser assustador mas não se vê o ambiente de crime e delinquência de que muita gente fala em Caracas.

Um grupo de miúdos joga num pequeno campo no rés-do-chão, veem-se pessoas a subir e a descer as escadas.

Alfredo Zambrano explica que foi morar para a torre precisamente porque morava perto e ouvia falar de coisas horríveis e não acreditava: “Há um mito que está muito entranhado na sociedade, que aqui se vende droga, que há casas de prostituição, que se violam as mulheres, que as atiram dos pisos para baixo”, explica.

Esta fama deixava o realizador inquieto. “Eu era vizinho, morava muito perto, ouvia tudo isto e não acreditava. Como documentalista sempre quis mostrar a realidade. Fiz um trabalho de perguntar, perguntar… Entrei na torre e a surpresa é que nada era como se dizia, pelo contrário“, conta Alfredo.

A Torre David é hoje um prédio tranquilo onde habitam cerca de 300 famílias, pouco mais de mil pessoas, num regime organizado.

Os “condóminos” do prédio, que atualmente só ocupam apartamentos improvisados até ao 13.º piso, pagam à cooperativa 250 bolívares (1,00 euro no mercado de câmbios paralelo) por mês e com isso têm direito a água canalizada, eletricidade, limpeza dos espaços comuns e até segurança.

Alfredo Zambrano sublinha que a água e a luz são pagas às companhias respetivas. Admite que em tempos houve puxadas que eram um roubo à companhia, hoje nada disso acontece, está tudo legal.

Na fase de maior ocupação, até ao final de 2014, chegaram a habitar o prédio cerca de 1.200 famílias, mais de cinco mil pessoas.

O que se sente hoje entre os moradores da torre é alguma tristeza. A maioria habituou-se a viver ali, já dispõe das condições mínimas, está no centro da cidade. A única grande falha do edifício é mesmo o elevador.

Atualmente, já só se habita até ao piso 13, e como há acesso por moto ou carro até ao piso 10, não é grave. Para coisas mais pesadas basta subir dois ou três pisos pelas escadas. “Imagine quem vivia no piso 28”, lembra Zambrano, lamentando o “esforço incrível das pessoas mais velhas, doentes, crianças”.

Sobre os mitos da torre, Alfredo admite que possa ter acontecido um pouco de tudo no início da ocupação.

Que sim, “é verdade que houve um sequestro”, em que a polícia meteu mais de mil agentes no prédio. Morreram pessoas nessa operação.

Que sim, terá havido prostituição e tráfico de droga, mas “as pessoas boas acabaram por afastar as más”.

E sim, caíram pessoas dos andares mais altos. Caiu uma criança de 3 anos que estava a brincar e encostou-se a uma janela mal fixada. Caiu um jovem com problemas, não se sabe se foi suicídio. E caiu um carro do parque estacionamento com três pessoas lá dentro, morreu uma, duas sobreviveram, “um milagre”.

Se terão falecido cinco pessoas na torre durante estes anos é muito“, lembra Alfredo para concluir que a torre não é nenhum paraíso comparando com a realidade de Caracas onde, recorda, “se mata um miúdo na rua para lhe roubar os ténis”.