Para quem gosta de comer bem é fácil desenvolver uma relação de amor-ódio com os inúmeros utilizadores de redes sociais que se dedicam exclusivamente a colocar boas fotografias de comida nos seus perfis. É bonito? É. Apetece ver? Apetece. Provoca inveja? Provoca.
Ana Gil, ilustradora lisboeta, podia ser uma dessas pessoas. Afinal, sentido estético não lhe falta e apetite também não. Mas Ana não se limita a fotografar o que vai comendo aqui e ali. Quando a comida chega, abre-se o caderno diário que acompanha a artista e a sua mão esquerda faz o resto. “Comecei a fazer ilustração das minhas garfadas diárias para me entreter enquanto fazia as refeições sozinha”, explica. O resultado é depois colocado na sua conta de Instagram para inveja, perdão, para apreciação, dos seus quase 11 mil seguidores.
Formada em arquitetura mas dedicada à ilustração, Ana Gil conta que durante 16 horas do seu dia só pensa em “desenhar, desenhar, desenhar”. É, por isso, natural que quando o apetite mais ordena, se junte a fome à vontade de criar. Por vezes, são indispensáveis alguns cuidados especiais. “Com companhia, é preciso ter atenção! Caso não me apresse irá sobrar muito pouco que comer no final. Já aconteceu. Ainda hoje não sei o que são percebes…” conta Ana, que deixou escapar a oportunidade de provar o bicho enquanto desenhava a mariscada correspondente.
Por vezes, o problema é outro: enquanto desenha a comida vai arrefecendo. Com algumas exceções, claro. “Das poucas comidas com as quais me posso alongar sem receio de arrefecimento é o sushi. Há tempo!”
Todos os desenhos de Ana acontecem por sua iniciativa. Ou seja, os restaurantes não lhe oferecem refeições para que as desenhe. “Mas já aconteceu fazer trocas e desafios do momento. O teu melhor cocktail por um desenho meu.”
O que também não é importante é o sítio em que a arte acontece. O importante é a vontade de desenhar o que vai comer e não onde o vai fazer, seja no Eleven ou num qualquer café de beira de estrada. “Pode acontecer tanto num restaurante estrelado como numa taberna, lá em casa ou num bar, no país ou em qualquer lugar do mundo”, diz.
Cada fotografia das ilustrações vem acompanhada de versos ou citações. Muitas vezes parece não haver uma relação imediata das palavras com os traços. É mesmo assim. “Escolho por impulso, pelo facto de o desenho me sugerir algo por palavras. Que podem não ser literais ao tema da ilustração”
Para já, Ana não planeia fazer destes desenhos uma série de diários gráficos gastronómicos. E explica porquê. “Gosto de publicar os desenhos que quero. Os meus desenhos não são todos para mostrar, mas principalmente para eu saber um pouco mais de mim, diariamente.” Muitos deles servem posteriormente como inspiração para outros trabalhos da ilustradora, esses sim já publicados.
Apesar de estarem acessíveis ao mundo, há um lado pessoal bem vincado nestes desenhos. O que a move, então?
“Os meus percursos. As coisas boas que saboreio. E não esquecer. Desenhar para não mais esquecer que estive, comi e vivi aqui. São para mim.” Felizmente, para quem está deste lado, também são para todos.