Título: Tratado sobre a Tolerância
Autor: Voltaire (tradução de Augusto Joaquim)
Editora: Relógio de Água
Páginas: 160
Preço: 14,00€
‘Não é preciso uma grande arte, uma eloquência muito rebuscada, para demonstrar que os cristãos se devem tolerar mutuamente. Vou mais longe: digo-vos que é preciso encarar todos os homens como nossos irmãos. O quê! Meu irmão, o turco? Meu irmão, o chinês? O judeu? O siamês? Sim, sem hesitação: não somos todos nós filhos do mesmo pai e criaturas do mesmo Deus?’ – escreveu Voltaire neste Tratado sobre a tolerância, por ocasião da morte de Jean Calas.
Quem lho disputará? Mas acontece que ele só vagamente acreditava no Deus que invoca e é indispensável ao seu argumento: conta-se que no leito de morte, instado a renegar Satanás por um padre bem-intencionado, recusou, no melhor estilo voltairiano, ‘Não estou em altura de fazer mais inimigos’. E ressalta claramente neste Tratado que para o próprio autor, entre os filhos de Deus – há filhos e há enteados. Voltaire tem, por outro lado, a originalidade ainda hoje moderna de chamar em favor da tolerância argumentos práticos, económicos e de ordem pública – para além dos impulsos generosos do seu espírito. Em nome disso tem o Tratado um capítulo sobre os casos em que a intolerância é um ‘direito humano’. O que é ser tolerante? Tudo está na definição dos termos e em quem os define. Voltaire usa um artifício retórico ainda hoje muito usado, o de sustentar melifluamente que é melhor para a saúde do que detestamos aquilo que nós recomendamos e não o que pensam os próprios (vejam-se as abundantes recomendações à Igreja Católica, para Seu bem, dos que não são católicos nem gostam da religião cristã). É sempre mais fácil, diga-se de passagem, defender os direitos dos inocentes injustiçados do que os dos culpados.
Voltaire viveu no século dezoito e viveu muito, oitenta e três anos. Nascido em fins do século dezassete, sob Luís XIV, o Rei Sol, morreu em 1778. Viveu quase o suficiente para assistir ao triunfo da Revolução que tanto lhe devia, e que também, pela boca de um ‘amigo do povo’, Marat, lhe chamou todos os nomes. Amou e desamou senhoras da alta sociedade, nobres e pelo menos um Rei absoluto, Frederico II da Prússia. Foi caridoso com muitos desgraçados. Morreu rico: não queria, confessa, ser mais um de ‘tantos homens de letras que vi pobres e desprezados’ (di-lo nas Mémoires, citadas por Charles Dantzig, no seu ‘Dicionário egoísta da literatura francesa’, um manancial). Foi contemporâneo do nosso grande terremoto de 1755, que figura na sua obra provavelmente mais conhecida, o Cândido ou o optimismo, um ‘conto filosófico’ que várias vezes tem sido publicado em português, caso raro, pois pouquíssimas obras deste autor mereceram a atenção dos nossos editores ou, é facto, dos leitores franceses. Há o Candide e mais uns quantos contos – de entre uma produção vastíssima que na edição das Obras Completas de Voltaire pela Universidade de Oxford (mas no francês original) ocupa dezenas de volumes. Escrevia no tempo em que outro famoso partidário das Luzes, o nosso querido Marquês de Pombal, submetia a tortura os seus inimigos políticos e esquartejava no Terreiro do Paço famílias inteiras sem precisar de um processo tão elaborado como o que foi usado na negregada França absolutista para supliciar o pobre Jean Calas (os ‘interrogatórios’ judiciais, na França desse tempo, incluíam também – diga-se em abono da verdade – ’técnicas agressivas’, como partir à paulada todos os ossos do interpelado).
Este Tratado sobre a tolerância, que eu saiba, é editado pela segunda vez entre nós nos últimos anos (a outra edição é da Antígona). É um panfleto de polémica circunstancial, suscitado pela tortura e condenação à morte de um protestante acusado injustamente de matar o filho por este se ter convertido ao catolicismo. Quem quiser ter uma ideia mais objetiva e mais pormenorizada do caso judicial de Calas tem na internet um excelente trabalho do advogado e ensaísta Dominique Inchauspé. O Tratado é uma brilhante peça literária, escrito na língua límpida e clássica que Voltaire manejava com mestria e se lê como se fosse escrito hoje – cobrindo com o manto diáfano do seu estilo lapidar a má-fé que o polemista não desdenhava usar nos seus argumentos. Mas chega-nos agora, sobretudo, arrastado pela renovada popularidade que tem tido em França depois dos recentes episódios terroristas. O Tratado contra a ‘intolerância’ religiosa está na moda: a revista Le Magazine Littéraire consagra-lhe a capa de um dos seus últimos números, com um toquezinho habilidoso de actualidade: Je suis Voltaire. Como se fosse a religião a fonte de todos os males – ou não estivessem os últimos cem e tal anos pejados dos cadáveres imolados a ídolos que num século e pouco sacrificaram mais gente do que as guerras e conflitos do resto da história da humanidade.
‘Não é preciso uma grande arte …’, dizia Voltaire. É falsa modéstia do autor. Arte, eloquência, espírito, eram coisas que não faltavam a François-Marie Arouet, dito Voltaire. Nem razões. Faltava-lhe, às vezes, paradoxalmente, razão.