O encontro teve por palco a lisboeta livraria Buchholz e como pretexto o segundo volume da obra monumental que Francis Fukuyama, o cientista político que ganhou fama mundial com o seu “O Fim da História”, dedicou ao estudo da evolução da ordem política. O primeiro volume, “As Origens da Ordem Política, Dos Tempos Pré-Humanos até à Revolução Francesa”, foi publicado em 2012, o segundo, “Ordem Política e Decadência Política”, das edições Dom Quixote, acaba de chegar às livrarias. Foi ele o pretexto para um “Conversas à Quinta” que, pela primeira vez, foi a quatro. Os temas, os de sempre: o presente e o futuro da democracia, as suas dificuldades, os seus defeitos e as suas virtudes. Foi mais uma daquelas conversas que se podia prolongar por várias horas…
É sempre preferível ouvir – a nossa conversa foi em inglês mas está legendada – mas tem sempre como alternativa ler a transcrição integral deste diálogo a quatro, com Francis Fukuyama, Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto:
José Manuel Fernandes: Gostaria de dar início a esta conversa perguntando-lhe se, tendo em conta os temas recorrentes que vemos na sua obra, desde “O Fim da História” até “Confiança”, sentiu a necessidade de fazer valer a sua opinião de modo mais forte ou diferente?
Francis Fukuyama: Um pouco de ambos. 2014 marcou o 25.º aniversário do artigo original, intitulado “The End of History”, que foi escrito seis meses antes da queda do Muro de Berlim. Os meus últimos livros são, de certo modo, uma tentativa de reescrever essa história porque muitas coisas mudaram no mundo e eu também mudei — tenho opiniões diferentes sobre diferentes temas. Por exemplo, a questão da deterioração política não era um tema em “O Fim da História” mas é um tema neste livro porque considero que todos os sistemas políticos, incluindo os democráticos, são capazes de regredir e de progredir e isso é algo que eu não tinha discutido antes.
JMF: Sobre o seu primeiro livro, “O Fim da História”, diz-se que continha uma visão muito otimista do futuro e do mundo. Atualmente é um pouco mais pessimista.
FF: Em 2015, creio que é difícil não estar preocupado com certas tendências que vemos no mundo. Existem dois poderes totalitários – a Rússia e a China – muito confiantes e interventivos e também vemos a propagação do caos no Médio Oriente, a falta de ordem, e após a esperança trazida pela Primavera Árabe é difícil de fazer uma previsão para os próximos anos. Portanto creio haver razões de preocupação sobre o destino da democracia.
JMF: Creio que a questão que levantou sobre a Primavera Árabe dá-nos uma excelente oportunidade de passarmos para o Jaime Nogueira Pinto, cujo último livro trata do Islão e do Ocidente.
Jaime Nogueira Pinto: Quando foi criticado por algumas pessoas, no sentido de achar que a sua ideia de fim da história seria o fim do conflito, creio que colocou bem a questão quando afirmou que mais nenhum sistema iria enfrentar a democracia de mercados, no sentido em que após 1945 o fascismo desapareceu, de certa maneira, e que após 1989 o comunismo soviético desapareceu. Mesmo os países que não fossem democráticos, não diziam que não o eram. Por exemplo, a China não queria exportar o seu modelo ou monarquias teocráticas mais antigas, como os sauditas, não tinham interesse nisso. Creio que, a certo ponto, colocou essa questão quando estava a ser altamente criticado e eu concordo com a sua opinião. Hoje em dia creio que, nesse sentido, as coisas não mudaram mas o que eu vejo é que, no fim de contas, a democracia pluralista requer duas coisas de modo a poder ser posta em prática ou os resultados serão caóticos: nação e o que podemos chamar de sociedade civil. Outros aspetos como a vida, a religião e a economia são exteriores a isso. De outro modo, acontecerá como na África subsariana onde existem democracias fingidas, com, por vezes, centenas de partidos mas as pessoas não aceitam eleições e temos, hoje em dia, o mundo islâmico, o Médio Oriente que permanece caótico após as tentativas de levar a democracia a países como o Iraque, Líbia e Síria, podemos dizer que, em parte, por culpa do seus país, e acho que isso se torna muito difícil. No fim de contas, a democracia está a funcionar bem na Europa Ocidental, nos Estados Unidos, em alguns países da América do Sul… no fim de contas, nos sítios onde o cristianismo foi importante, a propriedade privada e outros aspetos semelhantes. Claro que na Ásia temos o exemplo da Índia mas creio que aí se deveu ao papel desempenhado pelo exército, que sempre agiu dentro da lei, tal como na Grã-Bretanha.
Se existir um único tema subjacente ao livro é que a parte difícil do desenvolvimento político é a de passar de um estado patrimonial, como Max Weber lhe chamou, para um estado moderno.
JMF: Voltemos atrás, a algo que foi referido. Jaime Nogueira Pinto referiu os aspetos de nação e sociedade civil, mas há outros autores e estudiosos que referem outros aspetos como as instituições, cultura, tradição e capacidade de ter um estado moderno. Você não escolhe nenhum destes aspetos. Talvez não tenha uma opinião clara neste tema ou a opinião de que não exista apenas uma razão.
FF: No meu enquadramento, de modo a ter uma ordem política moderna, são necessários três elementos: um estado que seja moderno, Estado de Direito e uma forma de responsabilidade democrática. Estes três elementos estão em conflito entre si porque o estado gera poder e o Estado de Direito e a democracia limitam o poder, ou contêm-no, e é necessário um certo equilíbrio. Creio que se existir um único tema subjacente ao livro é que a parte difícil do desenvolvimento político é a de passar de um estado patrimonial, como Max Weber lhe chamou, para um estado moderno. Um estado patrimonial é, basicamente, um estado onde a elite política vê os políticos como uma forma de enriquecerem, de fazerem dinheiro e de obterem ganhos privados. Um estado moderno é impessoal, procura defender o interesse público e tratar os seus cidadãos com algum grau de imparcialidade e, na minha opinião, a grande falha em quase todos estes casos não é, na verdade, o fracasso da democracia mas sim o fracasso na criação de um estado moderno.
JNP: Porque são eles que criam o estado, no final de contas. No início todos os países eram um estado patrimonial.
FF: Sem dúvida. No entanto, essa transição de um estado patrimonial altamente corrupto para um estado moderno é uma transição muito mais difícil
JNP: No caso de Portugal, levou séculos.
FF: É uma transição muito mais difícil do que transitar para a democracia que, na minha opinião, é relativamente fácil de organizar.
JMF: Jaime Gama, a sua experiência é vasta, especialmente em África quando lidou, enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros, com as novas democracias ou novos estados que tiveram origem no velho império português. É da opinião que nesses países ainda existem estados patrimoniais?
Jaime Gama: O problema em África é muito complexo. Houve uma primeira vaga de independência, depois a implementação de modelos comunistas da China juntamente com modelos autoritários do terceiro mundo, fossem eles civis ou militares e depois, a certo momento, acendeu-se o rastilho da ideia, estimulada por alguns dos seus livros e pela ideologia pós queda do Muro de Berlim, que seria fácil exportar facilmente a democracia parlamentar para o continente africano. Por exemplo, lembro-me Konaré do Mali era um herói da democracia e também Museveni, eles eram os modelos.
JMF: Até Mugabe.
JG: E houve algo que foi feito. Provavelmente não de modo direto, mas com inspiração indireta, houve um período em que a democracia, ou a comunidade da democracia, era a agenda das Nações Unidas. Ou mesmo o lançamento da União Africana, como um modelo de União Europeia em África guiado por princípios puramente democrático, embora o resultado não tenha sido muito eficaz. Provavelmente, o resultado tem sido positivo na transição da África do Sul, muito acompanhada e apoiada e bem-sucedida, pelo menos até agora, não é possível adivinhar o que acontecerá no futuro. No entanto, noutros casos, observámos o fracasso de todos esses aspetos e mesmo o fracasso dos conceitos operacionais das Nações Unidas porque não são produtivos e não são implementados conforme são propostos porque, nesse aspeto, tudo falhou. Além disso, as Nações Unidas não conseguiram acompanhar essas transições. Durante um longo período, as Nações Unidas dedicaram-se a teorias de descolonização, a transferência de poder dos colonizadores para um sistema monopartidário, não tendo em consideração as questões das instituições democráticas. Após isso, as Nações Unidas não foram capazes de conceber um modelo estável para os países, sociedades e regimes políticos africanos e estes têm estado a viver de um modo caótico.
FF: Terei de discordar. Na minha opinião, o registo dos últimos 15 anos, desde o fim da década de 90, em África, tem sido muito mais positivo do que isso. A taxa agregada de crescimento da África subsariana nesse período tem sido entre 5 a 6 %. Existem cerca de 16 países com democracias funcionais…
JNG: 16 países num total de 54.
Não sou da opinião de que a democracia seja um fracasso total e acho que existe um enquadramento político em países africanos suficientes que sustente a emergência de uma classe média, certamente houve muitas pessoas a saírem da pobreza.
FF: Sim mas não acho que o cenário seja assim tão negro. Mesmo num país como a Nigéria – dediquei um capítulo inteiro à Nigéria onde descrevo que o problema central está numa coalição de ricos que tem como objetivo distribuir receitas do petróleo e, portanto, existe este problema muito profundo relacionado com a corrupção. No entanto, mesmo neste país, parece-me que a recente eleição de Buhari é, no mínimo, um sinal de esperança que, num país onde o governo extremamente displicente e corrupto de Goodluck Jonathan que não conseguia lidar com o Boko Haram e com os outros grandes problemas, fez alguma diferença pois agora há um novo líder e foi uma passagem de poder pacífica. Não sabemos se o novo presidente irá conseguir lidar com estes problemas mas é assim que a responsabilidade deve funcionar. Não sou da opinião de que a democracia seja um fracasso total e acho que existe um enquadramento político em países africanos suficientes que sustente a emergência de uma classe média, certamente houve muitas pessoas a saírem da pobreza. Em termos de outros indicadores de desenvolvimento como a mortalidade infatil e saúde maternal, o continente tem tido muitos bons resultados nos últimos 20 anos e não acho que o cenário seja assim tão negro.
JNG: Creio que o problema grave atual em África veio do modelo de descolonização porque a maioria dos países na Europa e na América lutaram pela independência e em África essa independência foi concedida pelo colonizador para sua própria vontagem, falando de modo realista. É muito interessante que nos países onde a população local teve de lutar pela independência, como por exemplo dois países lusófonos, Angola e Moçambique, e a transição na África do Sul porque, no fim de contas, foram pressões internas, estão a ter melhores resultados em termos políticos e estão a ter mais unidade política porque, na minha opinião, estão a seguir o padrão que nós seguimos: lutaram pela independência, tiveram guerras civis e o vencedor implementou a paz. Por exemplo, a destribalização é um facto em Angola e em Moçambique, os outros países seguem linhas tribais e religiosas, o estado é menos importante do que outros aspetos e creio que esta é uma das questões com a qual temos de lidar em África. Eu concordo plenamente consigo, as estatísticas económicas são boas mas os problemas de segurança estão a emergir outra vez de um modo muito grave e podem pôr as coisas em causa.
JG: Eu não concordo com a versão idílica que apresenta sobre o crescimento em África porque se aprofundar a avaliação da composição do produto interno e das exportações verá que o crescimento é muito estimulado pelas exportações como o petróleo, gás, matérias-primas, bens de agricultura mas impulsionado pelas importações de outros, nomeadamente a implementação chinesa na economia africana. Isso não se traduz em crescimento, não representa capacidade de fabrico, capacidade de melhoria do nível de consumo da população que é melhor e maior nas cidades mas se for 1 km para fora da cidade irá testemunhar fome como no século XIX. Não há mudanças reais. E no campo da segurança, vemos todas as linhas de fratura. O Islão radical está a destabilizar não só a Somália e o Corno de África mas também todo o Golfo da Guiné e antigas colónias francesas da África Ocidental. As questões tribais estão a criar grandes problemas para manter a estabilidade de uma entidade política intitulada de estado, que desapareceu, e por outro lado, não se prevê nenhuma capacidade para criar uma coproração regional ou, digamos, uma visão africana como era o caso antes. Portanto, não podemos apenas avaliar a situação através do produto interno gerado pelas importações ou por outros, um novo tipo de colonialismo na era moderna, adicionando a China ao terreno difícil que é África. Temos de ir mais a fundo e avaliar a grande falta de oportunidades para a população e grandes conflitos potenciais. Olhemos para o Congo, onde não há estabilidade, que desempenha um papel crucial na instabilidade dos países vizinhos. E a Nigéria não é um bom modelo. Eu compreendo que na visão anglo saxónica surjam sempre a Nigéria e a África do Sul como os principais fatores que trouxeram estrutura e segurança para África. Bem, a Nigéria fracassou completamente em dar segurança aos seus vizinhos e a si mesma.
JMF: Gostaria de mudar de assunto. Há algo que mencionou e que é um aspeto importante dos seus livros – a importância da classe média. É possível concordar que em África a classe média, geralmente, não está muito desenvolvida e talvez esse seja um dos problemas mas a questão que eu gostaria de colocar é outra. As classes médias na Europa e nos Estados Unidos, com todos os direitos que elas têm, podem ser um problema agora? Após terem sido a base da democracia podem agora constituir um problema, a lutarem nos tribunais, dando destaque a estes partidos com agendas pequenas e muito focadas quando não temos o mesmo tipo de crescimento que vimos nas últimas décadas?
FF: Na minha opinião, esse é um grande problema. Creio que as razões pelas quais as previsões marxistas para a industrialização nunca se tenham concretizado estão relacionadas com o facto de a industrialização da Europa e dos Estados Unidos ter espalhado a riqueza por uma classe média em crescimento, o que deslocou a classe operária, que de certo modo é a classe dominante na sociedade, e essa é a razão pela qual a democracia se propagou e não uma forma de comunismo. No entanto, acho que isso está sob ameaça dos avanços tecnológicos e da globalização pois o problema subjacente… Sim, existe este problema dos direitos e um estado social criado que as pessoas esperava que fosse estável mas acho que, mais importante do que isso, tem havido uma erosão contínua dos salários da classe média, resultado de máquinas inteligentes a substituírem os seres humanos nos seus postos de trabalho e este processo tem sido incessante, o que explica a concentração crescente no topo da pirâmide institucional. E não vejo nenhum político que tenha aparecido com uma resposta particularmente boa a este problema de longo prazo.
JMF: Mas concorda com este tipo de análises que discutimos muito na FLAD no ano passado, como a análise de Piketty, que consideram que existe uma maior concentração de riqueza ou que é um número mais misto?
Tem sido muito interessante observar, na Turquia e no Brasil, estas grandes manifestações nos últimos anos contra a corrupção e contra determinadas formas de práticas autoritárias
FF: Não. Empiricamente, não existem dúvidas de que tem havido uma crescente concentração de riqueza. Pikety afirma que isto é algo inerente ao próprio capitalismo e que tem acontecido nos últimos 200 anos. Para responder a essa questão temos de esperar por análises de dados porque existem razões para eu pensar que essa pode não ser a análise correta mas, certamente, como um resultado de avanços tecnológicos e, em especial, avanços no campo das tecnologias de informação, acho que existe um problema mais recente relacionado com a desigualdade e com esta concentração de riqueza.
JMF: E os pontos fortes da classe média noutras partes do mundo, nomeadamente na China, podem criar democracia? Porque não estão a ser democráticos na China.
FF: Temos de separar estes casos diferentes. Por exemplo, acho que tem sido muito interessante observar, na Turquia e no Brasil, estas grandes manifestações nos últimos anos contra a corrupção e contra determinadas formas de práticas autoritárias, na Turquia, todas levadas a cabo pela classe média. Na Índia, vemos uma classe média em crescimento que está farta da corrupção da classe política indiana. Portanto, o objeto não é tanto a desigualdade mas sim os maus governos.
O problema na China é que a classe média alcançou bons resultados sob o regime comunista, eles foram os principais beneficiários do crescimento económico chinês, não têm razão para estarem incomodados.
JMF: Mas a classe média no Egito, como também indica no seu livro, escolheu voltar à ditadura.
FF: Sim. Não há dúvidas que a classe média, inevitavelmente, apoie a democracia. Foi o caso na América Latina nos anos 60, eles apoiaram muitos governos militares. No entanto, há uma base para a mudança política e esta emergência da classe média… Acho que o problema na China é que a classe média alcançou bons resultados sob o regime comunista, eles foram os principais beneficiários do crescimento económico chinês, não têm razão para estarem incomodados. No entanto, quando esse crescimento parar o problema irá aparecer e o crescimento vai parar a certo ponto. A China está a abrandar neste momento e assim que os filhos dessa classe média não tiverem oportunidades de emprego então a questão será sobre o que vai acontecer em termos políticos.
JNG: Estava a pensar em algo. Em termos históricos, o que referiu sobre a China aconteceu, por exemplo, na Alemanha. Os estudos sobre a transferência eleitoral nos anos 30 demonstram que a maioria do voto nacional socialista veio exatamente dos partidos do centro. É muito interessante porque, tradicionalmente, havia a explicação marxista sobre os grandes negócios e afins. Depois, houve outras explicações sobre o trabalho… Não, não. E na Europa, a classe média apoiou regimes autoritários, exatamente, porque, no fim de contas, eles viram nesses regimes, de certo modo, os seus representantes contra os super ricos e contra o medo que tinham do comunismo.
JMF: Jaime Gama, não sente que um dos problemas enfrentados pelos sistemas políticos tradicionais na Europa consistem em lidar com a classe média?
JG: Sim e em alguns países, além de lidarem com as aspirações da classe média, têm de se confrontar com a falta de uma classe média, que é algo essencial como fator de monitorização das instituições e da vida política. Algo que eu aprecio muito nestes livros são as reformas políticas como objetivo. Não é o fim da democracia mas, digamos, uma má gestão da democracia e você aponta para elementos onde deteta um tipo de revolta para proteger valores para haver um estado correto, instituições corretas e adequadas, Estado de Direito justo, independência da justiça e, provavelmente acima de tudo o resto, a monitorização da qualidade da vida política que é crucial. E é crucial que haja uma classificação a vários níveis de modo a comparar e a fazer avançar. Há uma base de opinião pública para dar responsabilidade às instituições que é essencial no que vemos na Índia, no Brasil e também em alguns países europeus. É o grande problema. Aqui não está se está a enfrentar o fim da democracia mas um tumulto nos direitos internacionais e é por essa razão que regressou a estes assuntos de ordem política. E em relação à grande aspiração aos valores, você introduz, de maneira muito apropriada, esta dimensão das reformas, seja nos Estados Unidos seja noutros países e continentes.
Estes livros são muito estimulantes para os que têm responsabilidades na vida política, mas também os formadores de opinião e cidadãos no geral, acompanharem a evolução da história contemporânea recente.
O grande tema na altura do colapso do comunismo não é, provavelmente, o mesmo tema dos dias de hoje e você está a levantar questões muito interessantes, nomeadamente esta questão da capacidade, ou incapacidade, do nosso sistema político em reformar-se a si mesmo e em integrar estes movimentos que exigem mais escrutínio, responsabilidade e transparência. Esta é a nova era em que vivemos.
JMF: Exatamente. Algumas das questões relativas à vossa deteriorização política é a paralisação no congresso norte-americano. Alguns afirmam que é a democracia em exagero nos Estados Unidos que leva a esta paralisação do Congresso. Na Europa, estamos a lidar com diferentes tipos de problemas. Estamos a lidar com os problemas da Grécia há 3 meses sem fim à vista. Temos alguns países que se espera há mais de um ano um novo governo. E, neste caso, as pessoas dizem que há falta de democracia. Falta de responsabilização. Mas todos nós do mundo ocidental estamos a viver exatamente onde a democracia nasceu. Pode comparar estas duas situações diferentes?
FF: Acho que mesmo na Europa os problemas são bastante diferentes de país para país. Os problemas da Grécia e da Itália não são os da Alemanha ou da Escandinávia. Acho que na Europa do Norte têm uma instituição democrática bastante funcional que lidam com a necessidade de reforma e assim todos aqueles países — a Alemanha, Suécia, Dinamarca, Países Baixos — reformaram os mercados laborais nos últimos 10 a 15 anos. Introduziram uma maior flexibilidade de maneira a que se possa despedir funcionários e transferi-los para cargos mais produtivos. E não foram capazes de fazer isso na Itália ou França. Assim, acho que a questão é muito contextual, dependendo bastante do país a que nos referimos. Nos EUA, temos…
JMF: Também falava na UE.
FF: Acho que a UE é um animal diferente. Na UE há defeitos de design. Há o déficit democrático de que todos têm consciência. A parte diretamente eleita não tem poder suficiente. As pessoas acham que não têm participação suficiente no voto das eleições europeias. E depois os poderes estão mal distribuídos. As áreas com maior poder são as menos importantes, como a rotulagem alimentar. Por outro lado, não tem poder suficiente onde realmente interessa em termos do BCE ou da política fiscal unificada. Assim, tivemos a crise da Europa fruto desta capacidade inadequada de, p. ex., formular orçamentos controlados.
JMF: Concorda que nos EUA como dizem, p.ex., que o poder está a deslocar-se do congresso, até do Presidente, da Casa Branca para os tribunais?
FF: Nos EUA temos uma tradição profunda de recurso judicial e sempre usámos os tribunais para resolver lítigios políticos.
JMF: Mas hoje em dia é mais do que isso.
FF: E tem aumentado e acho que os tribunais em si são mais politizados. Acho que é possível que tenham demasiado Estado de Direito. Acho que nos EUA, p. ex, uma das razões para não podermos fazer grandes projetos infraestruturais rapidamente é de que há demasiado contencioso.
Se há 60 anos se falássemos, entre nós, sobre o que é um bom homem em qualquer uma das nossas sociedades, um homem de direita ou de esquerda, a definição seria a mesma. Hoje em dia mudou completamente.
JNP: Sim, gostaria que comentasse alguns aspetos. As instituições, desde o início, foram principalmente — claro que nos EUA ou até na Grã-Bretanha — ligadas a algum tipo de clima cultural que desapareceu. Durante muito tempo, foi a religião e depois até, num sentido ligeiro, a virtude. E hoje em dia já não existe com a comunicação em massa. Não podemos falar de valores no sentido de continuidade de valores. Por exemplo, há 60 anos se falássemos, entre nós, sobre o que é um bom homem em qualquer uma das nossas sociedades, um homem de direita ou de esquerda, a definição seria a mesma. Hoje em dia mudou completamente. Este é um aspeto que gostaria que comentasse. O segundo aspeto é o de que a democracia tem um sentido ambíguo. Num sentido a democracia é a lei da maioria. Mas noutro sentido, talvez na tradição anglo-saxónica, é acima de tudo a protecção das minorias. E, por vezes, quando as pessoas falam, principalmente os políticos e a comunicação social, misturam os dois conceitos. E lidam com os mesmos como se fossem sinónimos. Assim, na democracia, o governo, o poder político, não tem poder sobre as pessoas. Mas têm muito poder sobre o dinheiro das pessoas. E este é um dos problemas que levanta no seu livro sobre o mau funcionamento da democracia.
FF: Acho que trouxe para a discussão várias questões. A questão dos valores é provavelmente certa, mas há uma maior diversidade, emigração, movimento de ideias culturais transfronteiriço de uma forma que não existia no passado. A outra questão é que há uma crise geral de autoridade. O mundo estava repleto destas estruturas hierárquicas: igrejas, organizações sindicais, corporações, governos; nos quais as pessoas estavam, em grande medida, disponíveis para aceitarem a autoridade de algumas instituições. Agora com a educação, a Internet, as pessoas estarem mais bem informadas, já não estão disponíveis para tal. Num determinado sentido, é excelente. As pessoas pensam por elas mesmas e não vão aceitar instruções de alguém que é socialmente superior às mesmas.
JNP: Vão buscar isso à Internet.
FF: Sim, vão buscar à Internet; mas isso também quer dizer que é mais complicado tomar decisões, chegar a consensos, e por aí adiante. Não tenho a certeza de que há um tipo de democracia anglo-saxónica. Porque o sistema político maioritário na Europa é o sistema Westminster britânico no qual a mera pluralidade dos votantes pode mudar o que quiserem e ninguém os pode parar. E isso é o oposto do sistema americano no qual temos vários controlos e equilíbrios para proteger os interesses das minorias. Na minha visão, os alemães e outros sistemas parlamentares que estão situados entre a Inglaterra e a América equilibram a proteção da maioria dos interesses contra as minorias de uma forma ligeiramente melhor.
JMF: Jaime Gama, não sei se quer comentar.
JG: Estamos a voltar a temas e a uma filosofia hegeliana. Há uma grande contradição com a fenomenologia do espírito de Hegel. A ideia de ser substancial e não vazio era de que a relação entre a liberdade e o estado era que o estado era a objetificação da liberdade ou a liberdade era a real objetivação do estado? A imagem do Napoleão a cavalo é a objetificação da liberdade, pelo menos, para o ângulo revolucionário face à destruição do estado prussiano. Mas, hoje em dia, se voltarmos para aquelas ideais; os problemas que detetou com o fim da história, a objetificação da liberdade na queda do muro de Berlim, e o último homem, agora estamos a colocar o último homem numa situação paradoxal no qual o último homem é algo que advém do estado desestruturado e da incompleta liberdade. Essa é a particulariedade dos tempos de hoje.
FF: Acho que tal é correto. O que acrescentaria é que o estado pensado por Hegel era o estado universal. Era basicamente o governo burocrático prusso-alemão do século XIX é muito raro no mundo. No sentido de que tudo estava a avançar nessa direcção e de que Napoleão representava um tipo de vitória desse tipo de estado. Mas se olharmos para o mundo de hoje, existe em alguns sítios. Os chineses têm uma versão desse estado. É um dos pilares do seu sucesso. E noutros países asiáticos. Mas a grande maioria do mundo desenvolvido estão muito longe desse estado moderno.
JG: Se me permite, o que é muito interessante na China é que estão numa trasição lenta entre marxismo-maoísmo e o confucionismo. O confucionismo como um tipo de uma doutrina moral abrangente para a educação de pessoas, os líderes e a elite num tipo de autorestrição sobre a utilização do poder. Os bons imperadores seriam os automoderados; os inspirados pelos ideais do bem, de autorestrição, e a inclusão de outros por mérito académico, a seleção da elite pelas universidades. As universidades como a nova escola de nível avançado do confucionismo para a seleção dos funcionários da função pública e governantes do país. Como uma alternativa à democracia com base em voto.
JMF: Estamos a chegar ao final do programa e, assim, gostaria de avançar exatamente nessa direção apontando para algumas das reflexões feitas sobre a evolução do estado na Europa ou nos EUA. Podemos talvez afirmar que os programas de TV como o House of Cards são um pouco exagerados mas também temos na Europa, não sei se estão familiarizados com o programa de TV, Borgen sobre a democracia na Dinamarca. É a opinião de muitos que estamos talvez a avançar para algo mais semelhante à Singapura e para o tipo de meritrocracia que funciona na Singapura em linha exatamente com o que Jaime Gama disse. Acha possível misturar dois modelos para reformar a democracia ocidental europeia com este tipo de experiência: inspirarmo-nos no confucionismo para introduzir algo no nosso sistema político.
FF: Acho que a ideia de uma burocracia com base na educação meritocrática é uma ideia europeia. Quando Max Weber fala-nos de burocracia moderna era isto que descrevia exatamente. Era o sistema alemão ou francês. A École Nationale d’Administration alimenta uma burocracia de elite de tecnocratas altamente treinados que regem o governo. Não acho que essa ideia foi inventada em Singapura.
JMF: Mas lá está a funcionar melhor.
JNP: E a Singapura é pequena. Acho que a dimensão do território do Estado é também muito importante.
JMF: A Dinamarca também é pequena.
O que afirmo no meu livro é que os EUA foram sempre relutantes em estabelecer este tipo de forma de governo burocrático de alta qualidade, e na medida em que o fez foi rapidamente desmantelado.
FF: Sim. Mas essa tradição já existia na Europa. Porém, concorre contra a incitação democrática à participação; contra a sociedade de massa em que as expectativas das pessoas em relação ao governo são extremamente elevadas e têm mecanismos que podem usar para controlar o governo de uma forma em que não podem na Singapura nem ainda menos na China. Acho que a questão na Europa é: é possível preservar este tipo de governo burocrática fabiana no centro de uma democracia responsabilizável ou tal é mais provável que se deteriore ao longo do tempo? Acho que esse é o desafio. O que afirmo no meu livro é que os EUA foram sempre relutantes em estabelecer este tipo de forma de governo burocrático de alta qualidade, e na medida em que o fez foi rapidamente desmantelado.
JG: Os países da Europa do Norte são bem-sucedidos no mercado laboral. Será que foram demasiados protectores? Ou será que aplicaram um sistema de segurança social demasiado abrangente? Evoluíram mas para uma avaliação global da política laboral desses países deve-se incluir a política de migração como uma dimensão da política laboral na medida em que não é bem-sucedida. E as consequências desses dois caminhos da política laboral para os cidadãos nacionais e para os migrantes forçados não foi resolvida. E foi muito eficaz na introdução de agendas rejecionistas, na agenda polítia desses países, que contribui em muito para a fomentação do tumulto atual desses sociedades.
JNP: Uma pergunta maldosa para terminarmos. Acho que sou um grande leitor de ficção científica e nunca vi em nenhum livro utópico de ficção científica um modelo democrático. Porquê?
FF: Acho que é porque é demasiado aborrecido.
JNP: Exatamente. É uma boa resposta.
JMF: Pode comentar este problema da imigração e a forma como as democracias estão a lidar com a entrada de pessoas de diferentes culturas e a integração das mesmas?
FF: Nessa perspetiva, os EUA continuam a ser o país que tem sido o mais bem-sucedido na construção de uma identidade nacional em volta de determinados ideais políticos, como a constituição, Estado de Direito e democracia, que não estão enraizados na etnicidade ou na religião.
JNP: E a força dos porta-aviões.
FF: Faz parte.
JNP: E o FBI.
FF: E de uma certa forma, a Índia, é um exemplo de um país incrivelmente diversificado que tem sido relativamente bem-sucedido na integração dessa diversidade nesse ambiente democrático. Acho que a Europa tem problemas maiores nesse ponto e, na verdade, o meu país preferido, a Dinamarca, é um bom exemplo no qual há um elevado consenso social, mas agora está posto em causa devido à imigração.