Título: Poemas Canhotos
Autor: Herberto Helder
Editora: Porto Editora
Páginas: 50
Preço: 16,60€
É possível extrair de Poemas Canhotos um “ensino” (34) sobre o que pode ser um poema e sobre a sua aparição a quem o escreve ou o lê — e, central ao esboço de qualquer princípio de autoria, uma indagação sobre o que julgamos saber acerca dos poetas que lemos. Tal “ensino” não chega a constituir uma arte poética, nem respeita à maneira de Herberto, mas ao que significa existir enquanto autor ao longo de uma vida, vocação perante a qual um livro póstumo poderia parecer apenas a coda possível.
O poema final diz-nos que o que se escreve pode apenas aparentar a dignidade de uma autoria: “estes poemas que chegam / do meio da escuridão / de que ficamos incertos / se têem autor ou não / poemas às vezes perto / da nossa própria razão / que nos podem fazer ver / o dentro da nossa morte / as forças fora de nós / e a matéria da voz” (42). Será que isto é mesmo um poema? Será que é um poema meu? — são as perguntas centrais de Poemas Canhotos. Talvez estes “poemas que avançam”, de que não fica mais que “lápis papel e mão / e esta tremenda atenção / este nada” (43), mereçam uma “faminta ciência da paciência” (21). Apesar da incerteza quanto à autoria de poemas assinados por si, é em relação a esta reserva de paciência que se pode localizar a qualidade deste livro quando contrastada com o Herberto Helder de livros anteriores. Tal estranheza parece ser, no entanto, a que estes poemas lhe suscitaram, antes de ser a que suscitam aos seus leitores.
Podemos abandonar os nossos hábitos quotidianos, despedir-nos dos que partiram, não podendo porém impedir-nos dos nossos humores para com os trabalhos que a despedida de tudo nos merece (abandonar até aquilo que sai da mão, mas não a mão, o rosto que barbear, o próprio corpo morrendo noutro), pois não está em aberto rejeitarmos o que não passa no teste de saber quanto do que escrevemos nos pertence, muito menos rejeitar o trabalho que nos coube, e ao qual as nossas interjeições pouco acrescentam: “que interessa fazer a barba se é tudo para cremar, / desde as unhas dos pés aos espelhos soberanos —” (16), lê-se em versos sobre o conflito entre os actos e os humores da despedida.
Perceber a cada poema se o que se escreve é um poema nosso, se é um poema de todo, é aquilo de que não existe fuga possível, como não existe modo de escapar de, tão à beira do fim, fantasiar sobre deixar de escrever, como no jovial devaneio sobre deixar de escrever do poema da página 20 (“escrever, / deixar de escrever, / escrever ou não escrever não é acabar assim tão depressa quanto se pensava”). À beira do fim, apenas se parece saber quão à beira da renúncia sempre se esteve. Estes são, nesta medida, poemas sobre o que é um livro de poemas; e são ainda um exercício sobre aquilo que não sabemos se tem autor.
É por esta razão que o último poema de Poemas Canhotos ([estes poemas que chegam]) — e, não exagerando, o próprio livro — ganha em ser lido como um poema sobre o que temos diante de nós ao abrirmos um livro, o que nos deixa em suspenso quanto a sabermos se o que nos é dado a ler em Poemas Canhotos foi ou não tomado à “escuridão”. Poderíamos, mudando Gertrude Stein (“a rose is a rose is a rose et coetera”, 21), arriscar que ‘um poema não é um poema não é um poema’ — nem sequer, sem explicações adicionais, um poema da autoria de quem o redige. Muito menos certo é então que Poemas Canhotos, ou qualquer outro livro de poemas, pertença seja a quem for.
É, no entanto, ainda a um nome civil que parecemos poder imputar algumas paixões e humores de Poemas Canhotos: o “amador ao rés das águas” (7); o que desistiu de artes poéticas (“em boa verdade houve tempo em que tive / uma ou duas artes poéticas, / agora não tenho nada: / sento-me, abro um caderno, pego numa esferográfica / e traço meia dúzia de linhas”, 18); o de “adjectivos longínquos, / tudo tão prodigioso que se não entende nada” (21) — tudo isto nos lembra o que julgávamos saber sobre Herberto Helder; o mesmo que presumimos ter conhecido Ramos Rosa, cuja morte é evocada na página 39: “e então morreu todo / fundo e completo de uma só vez” (39); o que se exaspera com versos de outros (“esfolo-te vivo, vadio, se me trazes outra vez versos desses”, 13) — o que julgamos ter lido ao longo de décadas.
A publicação destes últimos poemas sob o nome de Herberto Helder não coincide com a resolução da ambivalência entre a voz incerta e o relativo consenso quanto a esse nome, muito menos com a confirmação, por parte de quem o assina, de que o que gerou lhe pertence. Talvez até um último livro se possa publicar mantendo esta dúvida em aberto. Mas então quanto do que se publica em Poemas Canhotos são poemas, e porque não?, poemas de Herberto? Este livro póstumo aclara a forma como ler seja que livro for pode não ser uma via evidente de resposta a esta pergunta, por mais que teimemos em procurar os seus autores no que publicam, e nos seus últimos livros para lá de em todos os outros, cotejá-los com o seu passado, com um hábito que apenas a nós nos pertence.
Esperarmos que Poemas Canhotos seja o último livro do poeta conhecido por Herberto Helder é talvez uma limitação nossa. Por outras palavras, esperamos (possivelmente em vão) que o que lemos seja o que lhe pareceu pertencer-lhe. Tal não passa porém de um modo de desejarmos que nos pertença o que dele tenha restado, que Herberto Helder nos pertença. O que nos traz de volta às perplexidades suscitadas por este livro: como saber, diante de Poemas Canhotos, ou de qualquer livro de Herberto (ou de qualquer outro poeta), que estamos realmente perante poemas? Como se sabe, antes de sabermos o que significa um poema ser de alguém, se esses poemas são de alguém?
Djaimilia Pereira de Almeida (Luanda, 1982) estudou Teoria da Literatura na Universidade de Lisboa. Fundou e dirige a revista on-line “Forma de Vida”.