O Tribunal da Relação de Lisboa aceitou que as gravações das entrevistas dadas à auditora PricewaterhouseCoopers (PWC) pelos antigos gestores da Portugal Telecom, envolvidos no caso PT/GES, sirvam de prova na investigação. Em causa estão as entrevistas feitas no âmbito da auditoria que foi pedida (pela própria PT) para saber de quem foi a responsabilidade do investimento na Rioforte, que se revelou ruinoso para a empresa.
Os envolvidos nessas gravações, até hoje mantidas secretas, são Henrique Granadeiro (ex-chairman da Portugal Telecom), Zeinal Bava (ex-CEO da PT), Luis Pacheco de Melo (ex-CFO da PT), Rafael Mora (ex-administrador da PT) , Joaquim Goes (ex-administrador da PT e do BES), João Melo Franco (enquanto líder da Comissão de Auditoria da PT), Mário Gomes (membro da Comissão de Auditoria ) e pelos altos funcionários João Loureiro, Aldina Marques, Cristina Pinto, Carlos Cruz, Alexandra Carmo, Bruno Saldanha e Ana Figueiredo. A partir daqui, elas podem ser usadas pelo Ministério Público (MP) durante a investigação criminal em curso ao referido investimento de 897 milhões de euros em papel comercial da Rio Forte.
Estas gravações, que constam de um saco de prova da Polícia Judiciária nas mãos do MP, permitirão ao Ministério Público (MP) perceber, por exemplo, se Zeinal Bava deu mais informação aos auditores do que à Comissão Parlamentar de Inquérito ao caso GES/BES – e perceber contradições de outros alvos da PwC que também estiveram no Parlamento. O depoimento do ex-CEO da PT aos deputados foi marcado por falhas permanentes de memória sobre os 897 milhões de euros investidos em papel comercial da Rio Forte (empresa do GES) que ficaram na história dos trabalhos.
Ao entender num acórdão inédito, a que o Observador teve acesso, que é legal a utilização dos DVD audio apreendidos na sede da PwC, a Relação de Lisboa abriu novos horizontes à investigação no combate ao crime económico. Anteriormente, o mesmo tribunal já tinha validado gravações privadas de conversas telefónicas realizadas por vítimas de violência doméstica, mas nunca na criminalidade económico-financeira.
Se antes o direito à palavra (das pessoas sob suspeita) se sobrepunha de forma quase absoluta ao interesse público da investigação criminal, a partir de agora as decisões dos tribunais podem mudar e a utilização penal de gravações audio (ou até mesmo de videos) que não tenham sido feitas por autoridades judiciárias pode passar a ser regular. Trata-se de um método que é legal em muitos sistemas penais do mundo democrático mas que, em Portugal, sempre foi censurada nos tribunais numa leitura restritiva da lei, nomeadamente com base na inviolabilidade do direito à palavra. Isto é, “o direito a decidir sobre o círculo de pessoas a quem a palavra se pode transmitir”, tal como a PwC argumentou no seu recurso a que a Relação de Lisboa não deu provimento.
A questão central da decisão da Relação resume-se de forma simples: as gravações foram autorizadas por todos os entrevistados e o seu conteúdo é exclusivamente profissional. Não se tratam, portanto, de gravações sobre conversas privadas que devassem a vida íntima dos entrevistados.
Uma ponte para o caso BES/GES
Esta decisão da 9.ª secção da Relação de Lisboa abre um caminho para que as gravações do Conselho Superior do BES/GES possam também ser um elemento de prova nos diversos inquéritos-crime que correm no Departamento Central de Investigação e Acção Penal contra os ex-administradores do grupo liderado por Ricardo Salgado. Na verdade, as mediáticas gravações já estão na posse do MP desde há algum tempo – tal como do Banco de Portugal que continua com processos de contra-ordenação abertos contra os ex-gestores do BES.
O MP apenas tem de provar que os membros do Conselho Superior do GES sabiam que estavam a ser gravados, dando o respectivo acordo, nem que seja tácito – facto que é claramente perceptível em algumas dessas gravações – e alegar que as conversas foram profissionais e que têm interesse para os autos.
Ricardo Salgado, José Manuel Espírito Santo, Manuel Fernando Espírito Santo, Ricardo Abecassis ou até mesmo José Maria Ricciardi, poderão tentar fazer o mesmo que a PwC, alegando ter um interesse directo na matéria por serem as suas palavras e que estas poderão ser usadas contra si próprios. No caso do Conselho Superior do GES, o facto de ser um órgão familiar informal poderá ainda fazer com que os gestores aleguem que se tratavam de conversas privadas. Existindo, contudo, este precedente na Relação de Lisboa relacionado com a PwC, será mais díficil o sucesso de tal batalha jurídica.
Curiosamente, Amílcar Morais Pires, o braço direito de Ricardo Salgado no BES e o seu representante directo na administração da PT, foi o único que não aceitou ser gravado, tendo apresentado um depoimento escrito com as principais declarações prestadas. Salgado, por seu lado, apesar de ter sido contactado pela PwC através do advogado Proença de Carvalho, nunca se disponibilizou para ser ouvido pelos auditores, segundo consta do próprio relatório da auditoria.
A PwC contactou aquele que pensa ser o advogado do dr. Ricardo Salgado, dr. Proença de Carvalho, no sentido que este agendasse uma entrevista com o dr. Ricardo Salgado. Até à data de emissão do presente relatório, a única resposta recebida foi através da RA&A [Rogério Alves & Associados] e indicava que o dr. Ricardo Salgado não estaria disponível”
As conversas entre os cinco clãs da família começaram por ser revelados pelo jornal i, tendo as gravações sido divulgadas mais tarde pela TVI e pela revista Sábado.
As queixas da PwC
A razão do recurso que duas sociedades do grupo PwC (PwC & Associados – Sociedade de Revisores Oficiais de Contas, Lda e PwC – Assessoria de Gestão, Lda) apresentaram na Relação de Lisboa prendeu-se com as buscas que foram realizadas no dia 6 de Janeiro deste ano à sua sede da auditora, na rua Sousa Martins, em Lisboa. No mesmo dia, as autoridades fizeram o mesmo tipo de diligência na sede da PT. Promovidas pelo MP e autorizadas e presenciadas pelo juiz Carlos Alexandre, as buscas visavam a apreensão, em primeiro lugar, do relatório final da auditoria realizada à PT, pois a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM) queixava-se de que apenas tinha uma versão preliminar apesar das diversas solicitações dirigidas à empresa de telecomunicações para que lhe fosse enviada a versão final. Os investigadores, contudo, acabaram por encontrar no gabinete de uma funcionária da PwC cinco DVD com ficheiros audio que reproduziam integralmente as entrevistas realizadas, assim com encontraram transcrições integrais dos depoimentos de João Melo Franco, Mário Gomes (ambos da Comissão da Auditoria) e do administrador Rafael Mora.
O objectivo do recurso também é simples de explicar: impedir o MP de utilizar as gravações como prova, alegando que as mesmas tinham sido apreendidas de forma ilícita por parte das autoridades, logo eram nulas.
A PwC começou por invocar, através do advogado Rogério Alves, que as gravações não podiam ser utilizadas pelo facto de cada um dos entrevistados ter “o direito a decidir sobre o círculo de pessoas a quem a palavra se pode transmitir”. Isto é, o direito à palavra protegido constitucionalmente.
As empresas de auditoria explicaram também que as gravações “resultam de um pedido feito pela PwC a cada um dos entrevistados para que autorizassem a recolha em suporte audio do teor das entrevistas realizadas”, o que permitiria aos auditores “terem ciência do exacto teor das declarações prestadas por cada um” durante a escrita do relatório. O advogado da PwC recordou ainda aos desembargadores da 9.ª Secção da Relação de Lisboa que “os entrevistados autorizaram as gravações na condição expressa de que o seu conteúdo” ficaria “em poder da PwC e seria apenas utilizado para o efeito pretendido”.
Uma segunda linha de argumentação baseou-se na lei que regula a forma como a Justiça pode interceptar conversas telefónicas dos cidadãos – para a PwC as suas gravações deveriam ser analisadas à luz dessas regras. Esse paralelismo tinha como objectivo afirmar que, para serem aceites num processo-crime, as gravações tinham de ser promovidas pelo MP, autorizadas e escrutinadas por um juiz de instrução criminal e executadas por uma polícia de investigação criminal, como, por exemplo, a Polícia Judiciária. Ora, alega a PwC, como as suas gravações audio não nasceram no âmbito de uma investigação criminal e não seguiram esse caminho, logo teriam de ser consideradas como prova proibida.
Como o MP venceu o recurso
A resposta do MP resume-se a duas ideias que o Tribunal considerou eficazes: as duas sociedades da PwC não tinham legitimidade para interpor recurso e as gravações eram simples documentos fonográficos, logo nunca poderiam ser equiparadas a escutas telefónicas.
A falta de legitimidade das duas sociedades do grupo PwC, segundo o MP, relaciona-se essencialmente com o facto das recorrentes pretenderem defender o direito à palavra e o direito à não auto-incriminação de terceiros que nada têm a ver com a auditora – não sendo sequer seus funcionários. Chama-se a isso ausência de interesse em agir – conceito jurídico que leva à rejeição liminar do recurso, como de facto veio a acontecer por decisão dos desembargadores.
Apesar dessa rejeição liminar, a Relação de Lisboa não deixou de apreciar a parte substantiva do recurso, seguindo mais uma vez a leitura do MP. Argumenta a procuradora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal que lidera a investigação ao caso PT :
“Na era das tecnologias e da banalização do registo de voz e imagem, da sua transmissão e exposição pública não se vê como pode o direito à transitoriedade à palavra considerar-se absoluto (…). E tal banalização não se circunscreve a sites de partilha, tais como o You Tube, ou a redes sociais, mas alastra igualmente ao funcionamento dos órgãos de soberania do Estado, sendo disso exemplo os plenários da Assembleia da República e a Comissão Parlamentar de Inquérito à Gestão do BES e do GES, na qual os depoimentos dos mesmos entrevistados, cujas gravações são objecto do mesmo recurso, foram filmados, difundidos na televisão e estão disponíveis online ( www.parlamento.pt/Paginas/XIIL4S_AudicoesCPIBES-GES201501.aspx ) “, lê-se no acórdão da Relação de Lisboa.
Mais: o MP fez questão de referir os prejuízos que o caso GES/BES causaram à economia nacional:
“Estando em causa nos presentes autos a investigação de criminalidade grave, causadora de elevado prejuízo patrimonial, de valor superior aos 897 milhões de euros, e de danos acentuados na economia do país, a prossecução da Justiça no caso concreto terá necessariamente valor superior ao direito à palavra, levemente beliscado, considerando o consentimento da gravação e a circunstância de o seu conteúdo não contender com o direito à intimidade”
O Tribunal rejeitou igualmente a visão da PwC quanto à equiparação das suas gravações a escutas telefónicas. “Tais gravações não constituem uma forma atípica de uma intercepção telefónica mas antes um verdadeiro documento, concretamente uma reprodução fonográfica, e as transcrições de tais registos constituirão um documento escrito”, afirma o MP. Logo, tendo a busca sido liderada pelo juiz de instrução criminal (Carlos Alexandre), “o acto de recolha de tais documentos não padece de qualquer ilegalidade”.
Além do mais, “estando em causa gravações consentidas não enferma a sua apreensão e junção aos autos de qualquer vício, não constituem um meio de prova proíbido, nem a sua utilização como prova pode ser qualificada como nula ou inconstitucional”. E mesmo que fossem gravações consentidas apenas para o âmbito da auditoria, o MP considera que “estar-se igualmente perante prova válida e susceptível de ser utilizada nos presentes autos porque continuam a estar em causa gravações obtidas com o consentimento dos visados e o teor de tais gravações obtidas com o consentimento dos visados e o teor de tais gravações não contende com a reserva da intimidade dos intervenientes, uma vez que não se tratam de conversas privadas, mas de uma entrevista formal circunscrita ao objecto do trabalho relativo à PT que a PwC se encontrava a realizar e que constitui, igualmente objecto da presente investigação.” Os desembargadores da Relação de Lisboa concordaram totalmente.
Ao que o Observador apurou, a PwC não interpôs recurso da decisão da Relação de Lisboa. O Observador contactou oficialmente a consultora, mas não obteve qualquer resposta oficial. Contudo, fonte próxima da PwC explicou que o recurso interposto na Relação deveu-se exclusivamente à “garantia de manutenção e confidencialidade e defesa do cliente. Faremos isso com qualquer cliente. Para salvaguardar a integridade do sigilo da informação dos nossos clientes”. A mesma fonte adianta ainda que não contesta esta decisão por não querer “guerras judiciais”.