PS, PCP e Bloco de Esquerda têm um Tratado Orçamental a dividi-los. As diferenças, no que ao cumprimento das metas europeias diz respeito, são muitas e de raiz, mas podem estar prestes a ser esquecidas. Então o que os aproxima? Do aumento do salário mínimo à reposição dos apoios sociais, passando pelas 35 horas de trabalho e o fim dos cortes salariais é muito mais o que os une do que aquilo que os separa. Na Justiça, Saúde, Educação e Ciência, os três também parecem dar as mãos em muitos pontos. Posto isto, com o que podemos contar se António Costa conseguir avançar para uma solução governativa à esquerda?
Olhando para os programas eleitorais dos três partidos, PS, PCP e Bloco de Esquerda, é fácil encontrar pontos de entendimento. Basta olhar para aquelas que são apontadas pelos comunistas como as 25 medidas mais “urgentes” para os próximos quatro anos para perceber que há no programa do Bloco de Esquerda medidas equivalentes. Também o PS se encontra, ou no fim ou a meio caminho, na maior parte dessas duas dezenas de prioridades. Mas já lá vamos.
É certo que há linhas vermelhas, com a TSU à cabeça. Catarina Martins fez questão de as sublinhar ainda durante a campanha eleitoral antevendo o dia em que se sentaria à mesa com António Costa para negociar. O fim da TSU, que é transversal ao programa do Partido Socialista, é uma delas, assim como o recuo no corte de 1.660 milhões de euros nas pensões e o fim do regime conciliatório, que o BE diz ser meio caminho andado para facilitar despedimentos. Sem essa marcha-atrás, nada feito.
Mas tirando isso há muito que pode ser feito. Como disse a própria coordenadora bloquista esta segunda-feira no no final da primeira reunião com os socialistas, a prioridade são “os salários, as pensões e o emprego”. O resto vem por acréscimo. E aí, sim, há convergência.
Por partes. O que esperar então de um Governo apoiado à esquerda? Onde é que os programas eleitorais do PS, PCP e BE se cruzam?
Política Fiscal: Redução do IVA da restauração é um dado adquirido para a esquerda
Em termos de política fiscal, PCP e Bloco de Esquerda convergem em vários pontos – não só entre si, mas com o PS também. Começando pela eliminação da sobretaxa de IRS: tanto comunistas como bloquistas querem o fim imediato da sobretaxa, distinguindo-se dos socialistas apenas no ritmo de eliminação, já que o PS assume que a sobretaxa só deve ser totalmente eliminada ao fim de dois anos, em 2017.
Se o PS quer “rever os escalões do IRS, reforçando a progressividade”, não arriscando quantificar os escalões, BE e PCP são mais específicos. Os comunistas querem dez escalões de tributação, enquanto o Bloco quer repor os oito escalões que havia antes da troika.
Quanto ao IVA, acordo quase total: os três querem reduzir o IVA da restauração para os 13%, sendo que o PCP e o BE querem ainda reduzir o IVA sobre a eletricidade e o gás dos atuais 21% para 6%. Mas aí, Costa não vai tão longe. A tributação sobre a energia foi, de resto, uma das medidas que Catarina Martins terá levado para cima da mesa na primeira reunião que teve com a delegação socialista, sabendo que, na anterior legislatura a proposta do BE sobre esta matéria foi chumbada não só pela maioria como também pelos socialistas.
Quanto ao IRC, se o Bloco de Esquerda critica as “borlas fiscais” que advém da redução do IRC para as grandes empresas e grandes grupos económicos, o PCP pormenoriza mais a diferença, propondo baixar o IRC para as pequenas e médias empresas com lucros mais baixos, assim como propõe, em sentido contrário, aumentar o imposto para as grandes empresas com lucros mais elevados. Nada muito longe do PS, contudo. Também o PS quer distinguir a tributação das empresas, beneficiando fiscalmente aquelas que se fixem em territórios de baixa densidade, no interior do país.
Possíveis entendimentos:
- Redução do IVA da restauração para os 13%;
- Revisão dos escalões do IRS;
Entendimentos difíceis:
- Fim da sobretaxa do IRS – o PS quer uma eliminação faseada; BE e PCP querem-na já;
- Redução do IVA sobre a eletricidade e gás
Segurança Social: Dossier (muito) difícil para entendimentos
Começando pelos pontos de convergência: para PS, BE e PCP é indispensável a reposição do Complemento Solidário para Idosos (CSI), do Rendimento Social de Inserção (RSI) e do abono de família.
A partir daqui, (quase) tudo muda de figura. Desde logo nas pensões. Se os três estão de acordo em rejeitar cortes nas pensões atuais, o facto de os socialistas afastarem, pelo menos para já, o descongelamento das pensões divide profundamente a esquerda – foi mesmo o tema mais quente do debate entre António Costa e Catarina Martins, que chegou mesmo a acusar o socialista de querer cortar mais de 1.600 milhões de euros nas pensões nos próximos quatro anos. O secretário-geral do PS explicou, na altura, que o PS não pretende cortar esse valor e que esse valor se referia ao aumento da despesa com pensões se estas fossem descongeladas. Mas Catarina Martins não ficou convencida: “Congelamento de pensões é corte de pensões”.
Em todos os desafios que fez a António Costa, Catarina Martins traçou claramente essa linha vermelha: o PS tinha de desistir do congelamento das pensões ou não havia conversa possível. E, neste ponto, também o PCP elege como prioridade o “aumento das pensões de reforma”.
Seria, aparentemente, uma bota difícil de descalçar para António Costa. Ainda assim, olhando para as declarações públicas dos três protagonistas – que descreveram as reuniões que foram mantendo como produtivas e interessantes -, o secretário-geral socialista parece estar disposto a não ultrapassar essa linha vermelha e a descongelar as pensões. Mas é ainda muito cedo para dizer.
Por falar em linhas vermelhas, a porta-voz bloquista também tinha dito claramente que não aceitaria o corte da TSU dos trabalhadores. Também no programa eleitoral do PCP fica claro que é preciso eliminar as insenções e as reduções da TSU “que proliferam e que de excepção se transformaram em regra, fazendo perder mais de 500 milhões de euros de receitas por ano”.
Mas era nas mexidas da TSU que estava grande parte do fôlego que António Costa esperava dar à reforma da Segurança Social. O PS comprometia-se a descer a TSU dos trabalhadores dos 11% para 7% até 2018 – a partir daí, haveria uma subida gradual 0,5 pontos ao ano. Por outro lado, insistia também na redução da TSU para empregadores (até quatro pontos). No programa do Bloco, as duas medidas são comentadas assim: “Os trabalhadores ficarão pior, os pensionistas ficarão pior, os patrões ficarão melhor e a Segurança Social ficará em risco”. Dificilmente Costa conseguirá (ou tentará) convencer Catarina e Jerónimo do contrário.
Ainda assim, há duas medidas no programa do PS que podem, na teoria, agradar a bloquistas e comunistas: o reforço do financiamento da Segurança Social, dizem os socialistas, pode dar-se através do aumento da TSU sobre empresas com elevados índices de precariedade e através do alargamento da base de incidência das contribuições aos lucros das empresas. A ideia, explicada por António Costa durante a campanha eleitoral, é obrigar as empresas que têm grandes lucros, mas poucos trabalhadores, ou empresas que apostem em empregos precários a contribuírem mais para a Segurança Social. Um ideia que, curiosamente, também colheu o elogio de Pedro Passos Coelho.
O Bloco de Esquerda, por sua vez, também parece alinhar nesse discurso. “A contribuição das empresas para a segurança social é feita através da Taxa Social Única que incide apenas sobre os salários. Um esforço concentrado apenas sobre salários, tendo em conta a evolução tecnológica a que assistimos, restringe a capacidade de financiamento da segurança social e isenta do esforço solidário boa parte da riqueza do país”.
Por isso, propõem os bloquistas, é preciso criar “uma taxa sobre o Valor Acrescentado das grandes empresas para financiamento solidário da segurança social e de reforço do Fundo de Estabilização da Segurança Social (FESS). Na prática,“uma taxa de 0,75% sobre o valor acrescentado das grandes empresas representa, mesmo no atual contexto de crise, um acréscimo de receitas de cerca de 300 milhões de euros/ano para a Segurança Social”, explicam.
Havia uma proposta que poderia deitar tudo a perder, mas acabou por não ter lugar no programa eleitoral do PS. O grupo de economistas responsáveis pelo estudo macroeconómico chegou a admitir a hipótese de aumentar a idade legal de reforma. Costa, por sua vez, deixou cair essa proposta ainda antes dela ver a luz do dia e, já em campanha, comprometeu-se, inclusive, a travar um possível aumento da idade da reforma.
Quanto a Catarina Martins e Jerónimo de Sousa, ambos são muito claros em relação a esse ponto: é preciso salvaguardar o “direito à reforma aos 65 anos e a possibilidade da sua antecipação sem penalizações para carreiras contributivas de 40 e mais anos”. Esse parece ser um tema tranquilo para os três partidos.
Possíveis entendimentos:
- Obrigar empresas com mais lucros, menos trabalhadores e com empregos mais precários a contribuírem mais para a Segurança Social;
Entendimentos difíceis:
- Descongelamento de todas as pensões;
- Redução da TSU
Salários e política laboral: O que será do aumento do salário mínimo? Ou do procedimento conciliatório?
Devolver rendimentos, repor cortes, reverter a austeridade e a precariedade laboral. É este o eixo central dos três programas no que toca a políticas salariais e de trabalho. Mas uma vez mais, a diferença começa na questão do ritmo de devolução: se os comunistas e os bloquistas falam, nos seus programas, em reposição “integral” e “imediata” dos cortes salariais e descongelamento de pensões, os socialistas, já se sabe, prometem a reposição dos cortes salariais e de pensões da função pública em dois anos, 40% em 2016 e o restante em 2017.
Aumento efetivo e real de salários o PS não promete, mas pelo menos no que toca ao salário mínimo nacional o entendimento entre a esquerda não parece difícil de alcançar. PCP e BE estão em sintonia: aumentar para os 600 euros, e o PS admite que é preciso um aumento mas a ser estudado em sede de concertação social.
Quanto à política laboral, é preciso mexer com mais cuidado. Mas há algumas questões que são ponto assente entre os três: o regresso ao regime de trabalho de 35 horas semanais, a reposição dos feriados e o reforço da contratação coletiva. O princípio do combate à precariedade, através do fim dos falsos recibos verdes e da diminuição dos contratos a prazo, é também transversal aos programas dos três partidos.
Também o regime de requalificação, ou antes chamado de mobilidade especial na função pública, é para “rever”. Ou para “acabar”.
Mas há uma linha vermelha. O regime de despedimento conciliatório proposto pelo PS é, à cabeça, uma das intransigências da restante esquerda, com o Bloco e o PCP a discordarem totalmente daquele regime de despedimento por conciliação e a apertarem o cerco aos despedimentos coletivos. Além de que Bloco e PCP vão mais longe do que o PS nas medidas de proteção dos trabalhadores e no combate aos despedimentos, arriscando mais nos limites e nas penalizações para as empresas.
Possíveis entendimentos:
- Combate à precariedade;
- Reposição das 35 horas;
- Reposição dos feriados;
- Reforço da contratação coletiva;
- Fim do regime de requalificação;
Entendimentos difíceis:
- Reposição dos cortes salariais – o PS quer uma reposição faseada; BE e PCP querem-na já;
- Aumento do salário mínimo;
- Recuo no procedimento conciliatório
Mais investimento na Educação
Universalidade, obrigatoriedade e gratuitidade – a base é a mesma, com a esquerda a querer unanimemente alargar e facilitar o acesso à escola pública, aumentando aqui o investimento. Esta tem sido, de resto uma das bandeiras prioritárias de António Costa sobre a defesa do Estado social e o incremento da formação ao longo da vida, como forma de promover a justiça social e a igualdade de oportunidades.
Alargar a universalidade da oferta da educação pré-escolar a mais crianças é ponto assente, com o BE a querer essa extensão a todas as crianças a partir dos dois anos, o PCP a pôr a meta nos três e o PS, num regime mais progressivo, a falar no alargamento a todas as crianças dos três aos cinco anos. A gratuitidade no acesso aos manuais escolares é também uma das medidas propostas pelos comunistas e bloquistas, com o PS a ir ao seu encontro, a meio caminho, falando na necessidade de “desenvolver um sistema de aquisição e retorno de manuais escolares que assegure a progressiva gratuitidade dos manuais”.
Também a redução do número de alunos por turma e a questão da redução nas propinas no ensino superior não parece ser problema, com os partidos mais à esquerda a pedirem a redução do valor e o PS a sugerir um “pagamento faseado”.
Na base dos programas eleitorais do BE e do PCP, no que à educação diz respeito, está o fim imediato do “processo de municipalização” do ensino, para travar a perda de autonomia das escolas ou até a sua privatização. O programa do PS não é claro neste ponto, mas o processo foi na altura muito criticado pelos socialistas, pelo que a sua revogação não é excluída.
Se, no que diz respeito à União Europeia e à política internacional os entendimentos parecem muito difíceis, na Educação nenhum dos pontos defendido por BE e PCP parece ser obstáculo para o PS. E vice-versa. A redução das propinas no ensino superior, uma batalha histórica, poderá, no entanto, não ser fácil para bloquistas e comunistas.
Saúde: Fim das taxas moderadoras pode dividir
Defender o Serviço Nacional de Saúde e reduzir as desigualdades entre cidadãos no acesso à saúde, dar um médico de família a cada português (ou a pelo menos mais 500 mil habitantes, compromete-se o PS) e repensar as taxas moderadoras – o acordo entre as esquerdas não parece difícil, a não ser neste último ponto. PCP e o BE querem eliminar por completo as taxas moderadoras, e o PS não chega a tanto – promete a redução, não o seu fim.
Entre a reforma hospitalar proposta pelo PS e o incentivo aos investimento prioritário nos novos hospitais de Lisboa, Seixal e Gaia, proposto pelo BE, ou a devolução ao domínio público dos hospitais que estão em regime de PPP ou entregues às Misericórdias, comum ao PCP e BE, há diferenças no caminho escolhido para a defesa do SNS e formas de o financiar, mas também há semelhanças. Tanto BE como PS pretendem, por exemplo, alargar as Unidades de Saúde Familiar ao território nacional, com o PS, à cabeça a prometer a criação de 100 novas unidades.
Europa: Tratado Orçamental e dívida. As diferenças conhecidas
Na Europa, as principais prioridades de Bloco e PCP são – ou eram – claras: rasgar o Tratado Orçamental e avançar para a reestruturação da dívida. Se não resultar, a solução pode passar pela saída da moeda única.
O Bloco de Esquerda defende que se avance para a Conferência Europeia para a Reestruturação das Dívidas dos Países da Periferia do Euro e para o fim do Tratado Orçamental. O PCP diz o mesmo, mas por outras palavras: é urgente convocar “uma cimeira intergovernamental para revisão dos Tratados, que tenha como objectivos, entre outros, a imediata revogação do Tratado Orçamental e a revogação do Tratado de Lisboa”.
O PS, é conhecido, defende um outro caminho: a “leitura inteligente das regras do Tratado Orçamental”. Os socialistas reconhecem que a Europa, através do “programa de compra de dívida soberana do BCE”, das “novas regras de interpretação dos programa de estabilidade” e do “plano Juncker”, já deu alguns passos nesse sentido, “mas é preciso ir mais além”. É preciso “virar a página” e avançar para “uma rutura clara, não com a Europa, não com o euro e com a União Económica e Monetária, mas com a política da austeridade sem fim, que não deixa respirar a economia e corrói o tecido social”. António Costa disse-o várias vezes: a bandeira da reestruturação da dívida não vai ser agitada pelo PS como uma prioridade absoluta – é, apenas, um plano B.
Entendimento diferente tinham Catarina Martins e Jerónimo de Sousa. Os dois defendiam nos respetivos programas a renegociação da dívida embora em dimensões diferentes: o Bloco queria o “abatimento de 60% da dívida, com juros de 1,5% e pagamento entre 2022 e 2030”, acompanhado, entre outras coisas, por uma “auditoria à dívida, para que sejam conhecidas as suas origens e natureza e para determinar a parte que seja ilegítima”; enquanto que o PCP pede a “renegociação da dívida pública com a redução do valor nominal dos montantes em 50% e redução do seu serviço em 75%”. As diferenças entre PS, Bloco e PCP nesta matéria são conhecidas, mas, aparentemente, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa terão já abdicado destas bandeiras. O mesmo parece ter acontecido com a saída de Portugal na NATO, uma batalha que bloquistas e comunistas terão deixado cair.
No entanto, ainda não conhecidas as posições dos três partidos em relação ao Tratado de Comércio e Investimento UE/EUA (TTIP). Olhando para o que têm defendido os três partidos, antevêem-se negociações difíceis: o PS apoia-o; Bloco e PCP querem derrubá-lo já.
Neste caso, não fará muito sentido falar em entendimentos possíveis, conhecidas que são as profundas divergências entre PS, Bloco e PCP. Mas Catarina Martins e Jerónimo de Sousa já deram sinais de estarem dispostos a cederem nessas matérias.
Justiça: Juntos contra a reforma de Paula Teixeira da Cruz
Também na área da Justiça parece existir uma linha que une de forma clara os três partidos: a necessidade de rever o mapa judiciário, “a” reforma de Paula Teixeira da Cruz. O ritmo e o modo de o fazer é que pode variar.
No programa socialista é criticado “o estrondoso falhanço da reforma do mapa judiciário” e é deixada em aberto a hipótese de serem corrigidos “os erros de execução do mapa judiciário promovendo as alterações necessárias, sem prejuízo de proporcionar a realização em cada concelho de julgamentos que respeitem aos cidadãos desse mesmo concelho”.
Uma ideia que parece encontrar reflexo no programa do PCP. “[É urgente] lutar contra o encerramento de tribunais e pela instalação de um tribunal de competência genérica em cada concelho”.
Catarina Martins vai mais longe e concretiza mesmo: é preciso “defender um novo mapa judiciário que assegure proximidade territorial na administração da Justiça”.