O momento é, segundo os partidos da esquerda, “histórico”. Depois de três tentativas falhadas na anterior legislatura, onde PSD e CDS tinham maioria absoluta, a Assembleia da República aprovou esta sexta-feira a eliminação dos obstáculos legais à adoção de crianças por casais do mesmo sexo, bem como a revogação das últimas alterações à lei do aborto, eliminando o pagamento de taxas moderadoras. “À quarta foi de vez”, sublinhou a deputada ecologista Heloísa Apolónia. Mas se a esquerda se uniu nestes temas “fraturantes”, a direita dividiu-se: 19 deputados do PSD mostraram-se a favor da adoção, e a ex-ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz foi a única que furou a disciplina de voto e esteve ao lado da esquerda também na lei do aborto.
Ainda não é a votação final, sendo que os diplomas ainda têm de ser trabalhados em sede de comissão parlamentar e voltar depois ao plenário para serem aprovados em modo definitivo.
PS, BE, Verdes e PAN tinham cada um a sua proposta sobre o tema, mas o objetivo era comum: eliminar os obstáculos legais à adoção de crianças por casais do mesmo sexo, permitindo que todos os casais, independentemente da sua orientação sexual e estado civil, possam adotar crianças. Os quatro diplomas foram esta sexta-feira aprovados com os votos de toda a esquerda e também com o apoio de 19 de deputados da direita, entre eles a ex-ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz, assim como outros nomes como Teresa Leal Coelho, Pedro Pinto, António Leitão Amaro ou Sérgio Azevedo.
Apenas dois deputados se abstiveram na votação: Isabel Oneto (PS) e Duarte Marques (PSD). Por se tratar de uma questão de “consciência”, as bancadas do PS e PSD tinham liberdade de voto sobre a adoção. O mesmo não aconteceu no caso da revogação das alterações à lei do aborto, onde os sociais-democratas tinham disciplina de voto e só a ex-ministra da Justiça a furou, votando a favor.
No final, ouviram-se muitas palmas nas bancadas da esquerda e nas galerias, onde estavam presentes vários ativistas da causa LGBT, incluindo a presidente da ILGA Portugal. Também as deputadas do PSD, Paula Teixeira da Cruz e Teresa Leal Coelho, se juntaram ao coro de aplausos.
Só o projeto de lei do PS sobre a adoção homossexual mereceu votação diferente, acrescentando-se a viabilização por parte de duas deputadas do CDS: Teresa Caeiro e Ana Rita Bessa abstiveram-se, assim como a social-democrata Ana Sofia Bettencourt, que tinha votado contra os diplomas do BE, PEV e PAN, mas que se absteve na votação do diploma do PS.
Os quatro diplomas sobre adoção e os quatro sobre lei do aborto descem agora para a comissão parlamentar da especialidade, devendo voltar a ser votados em termos definitivos no plenário dentro de semanas. Saiba aqui o que está em causa nestes projetos de lei e que alterações práticas vão entrar em vigor.
Alteração à lei do aborto aprovada
A revogação das últimas alterações à lei do aborto, que tinham sido aprovadas pela direita no final da legislatura passada, também foi aprovada por ampla maioria: toda a esquerda, à exceção do deputado socialista Ascenso Simões, votou a favor. Nesta matéria, que, entre outras coisas, elimina as taxas moderadoras nos casos de interrupção voluntária da gravidez, as bancadas do PSD e CDS tinham disciplina de voto e só houve uma deputada, Paula Teixeira da cruz, a remar contra a maré.
Em causa estavam quatro diplomas, um do PS, outro do PCP, do BE e do PEV, com propostas comuns: eliminar as taxas moderadoras no caso de interrupção voluntária da gravidez e eliminar as “restrições” impostas à liberdade de escolha da mulher. No verão, o anterior Parlamento aprovou alterações à lei do aborto que, além das taxas moderadoras, obrigava a mulher a ter uma consulta prévia com um psicólogo e com um técnico de serviço social, assim como tornava obrigatório o acompanhamento da mulher grávida e a possibilidade de os médicos objetores de consciência participarem nas várias fases do processo de aconselhamento à mulher. Na altura, toda a esquerda se mostrou contra, mas em vão.
A deputada e ex-ministra da Justiça Paula Teixeira da Cruz votou a favor de todos os diplomas sobre a lei do aborto (tanto o do PS, como do PCP, BE e PEV). Também o social-democrata Pedro Pinto votou inicialmente a favor do projeto dos socialistas, tendo votado contra os restantes diplomas da esquerda. No final das votações, contudo, Pedro Pinto comunicou à Mesa que se tinha “enganado” na votação e que o seu voto seria contra, à semelhança da restante bancada.
Só o deputado do PS Ascenso Simões votou em sentido contrário à sua bancada, tendo votado contra os quatro diplomas da esquerda. o deputado do PAN também esteve ao lado da esquerda na aprovação da lei.
Uma discussão sobre o “supremo interesse da criança”
O argumento é o mesmo, tanto à esquerda como à direita: trata-se de “assegurar o supremo interesse da criança”. Mas falta entendimento sobre as formas de o fazer. Se o debate sobre a interrupção voluntária da gravidez já se tinha travado na quinta-feira, o debate sobre a adoção homossexual foi feita esta manhã no plenário, imediatamente antes das votações, e deixou a descoberto as visões diferentes entre a esquerda e a direita.
Entre a deputada bloquista Sandra Cunha, estreante nas intervenções no Parlamento, a socialista Isabel Moreira, a ecologista Heloísa Apolónia, o deputado do PAN, André Silva, e ainda a comunista Rita Rato, todos os partidos da esquerda fizeram intervenções no sentido de apelar aos deputados que fizessem “história” e que “ultrapassassem preconceitos” em nome da igualdade de direitos. “Todos os cidadãos têm direito a tratamento igual perante a lei”, disse Sandra Cunha, sublinhando que isso é “cumprir o superior interesse das crianças”.
“As crianças estão a ouvir-nos”, disse a deputada socialista Isabel Moreira, que é a principal defensora dos direitos LGBT da sua bancada. Nas galerias do Parlamento estavam de facto centenas de crianças de duas escolas, um Externato de Lisboa e uma escola de Alverca, assim como vários defensores da causa LGBT. Falando a partir da tribuna do Parlamento, Isabel Moreira destacou que “não há forma mais nobre de começar uma legislatura” do que com o reforço dos direitos humanos. Aprovar a lei é, disse, dignificar “uma sociedade que respeita e não expulsa, que integra e respeita as diferenças”.
O PCP, que foi durante muito tempo contra a adoção homossexual, anunciou desde logo que votaria a favor. Já em 2013 os comunistas tinham votado favoravelmente uma proposta do PS sobre a coadoção, evidenciando a partir daí uma mudança de posição. Uma das intervenções mais aplaudidas entre a esquerda foi, curiosamente, a do deputado do PAN, André Silva. Sem muito tempo para intervir, disse apenas breves palavras que foram suficientes para desencadear os aplausos: “Não existe nenhuma razão para colocar em causa o superior interesse das crianças alegando o suposto impacto negativo da orientação sexual dos pais na educação e crescimento da criança. A orientação sexual não coloca em causa a parentalidade”, disse.
Pelo PSD falou apenas a deputada Andreia Neto, que deixou clara a posição da sua bancada: o que está em causa no debate da adoção não é o “superior interesse da criança” mas sim a agenda LGBT. E o facto de a esquerda ter assumido as questões “fraturantes” como prioritárias no início da legislatura “mostra bem quais são as reais preocupações” da esquerda para o país. PSD e CDS lembraram ainda que foi no tempo do governo socialista de José Sócrates que se legalizou o casamento gay mas se optou por, na mesma altura, não avançar com a adoção.
A posição mais conservadora foi ainda assim assumida pelo centrista Filipe Anacoreta Correia, representante da ala crítica de Paulo Portas dentro do CDS, que sublinhou que uma criança “nasce biologicamente do masculino e do feminino”, e que “é na complementaridade do feminino e do masculino que nos afirmamos socialmente”. Também Filipe Lobo d’Ávila, CDS, defendeu que o “direito a ser adotado é um direito da criança, mas o direito a adotar é um direito subordinado que depende do superior interesse da criança”. Ou seja, “trata-se do interesse da criança e não do interesse do adulto”, resumiu.