Susana e Marta. Beijos no rosto, abraços, gargalhadas de cócegas. Mãe e filha em frente a uma câmara. A mãe heterossexual, a filha homossexual. Mas isso não está escrito nas imagens. A dupla é protagonista da campanha da Associação de Mães e Pais pela Liberdade de Orientação Sexual e Identidade de Género (AMPLOS), para divulgar a associação de famílias com filhos LGBT. Às famílias une-as a vontade que seja só uma fase, une-as as expectativas defraudadas, a negação, mas une-as também a luta pela integração dos filhos e pelo convívio natural com essa característica.
“Isto é o que parece. Isto é amor” é o título da campanha da associação. Tudo é assegurado pro bono, desde a agência criativa até à produtora. O objetivo de todos é chegar ao maior número de famílias possível.
“Cada vez que vocês se abraçam, há uma criança que morre”
Susana, 42 anos, e Marta, 19 anos, não são modelos nem atrizes contratadas para o efeito. São um caso real. Aos 14 anos, Marta apaixonou-se. “Ela passava os dias a chorar e eu estava assustadíssima a pensar que alguém pudesse ter feito alguma coisa à minha menina”, conta a mãe ao Observador. Tinham feito “uma coisa” à filha, sim. A rapariga por quem Marta se apaixonou não lhe devolvia o mesmo sentimento. Marta não era correspondida. Susana só queria saber o que se passava.
Um dia, chegadas a casa e depois de tomar banho, Marta decidiu contar à mãe o que sentia. A mãe ficou aliviada. No meio de um “ataque de choro” reagiu: “Dei-lhe um grande abraço e depois ralhei muito com ela, porque a outra rapariga era um bocado mais nova”, conta Susana. “Os desgostos são iguais aos dos heterossexuais.”
Passado uns meses, a paixão passou e o cupido apontou para outra rapariga. Dessa vez, acertou. As duas começaram a namorar. “Conheci verdadeiramente o meu primeiro amor e a minha primeira namorada”, conta Marta. Em casa, tudo bem. Na escola, era complicado. “Andávamos de mão dada e abraçadas e isso começou a incomodar os professores e os auxiliares”, conta a rapariga. A mãe lembra: “Os amigos protegiam-nas em rodas para elas se poderem abraçar e dar beijinhos”. Mas a proteção não era suficiente.
As crianças reagiam. “Havia meninos do 1º ano a bater palmas quando nós passávamos e gritavam ‘lésbicas’. São miúdos”, desvalorizava Marta. Professores e auxiliares torciam o nariz. Pediam-lhes controlo nas manifestações de afeto. Como o pedido não foi aceite, a autoridade começou a fazer-se ouvir. “Começaram a ameaçar a namorada da Marta que iam contar aos pais dela, porque eles não sabiam”, conta a mãe de Marta. No caso de Marta, mãe e pai estavam a par da situação: “O pai da Marta disse: agora já tenho alguém para comentar as miúdas na rua!“.
O meu problema com a Marta nunca foi a homossexualidade. Foi sempre a irreverência e o feitio dela”, refere Susana.
Um dia, uma professora disse-lhes: “Cada vez que vocês se abraçam, há uma criança que morre!”. Marta, até aí forte e segura, ligou para a mãe a soluçar. “Foi a gota de água. Telefonou-me a chorar e foi aí que eu saltei e pensei: vou à procura de ajuda senão vou descambar”, conta Susana. Procurou ajuda na internet, encontrou a AMPLOS, o telefone da associação tocou e do outro lado estava a presidente e fundadora da associação, Margarida Faria. A mãe foi chamada à direção da escola e Margarida foi com ela.
Na reunião, os responsáveis da escola apresentaram um cenário de “atentado ao pudor”, com “abordagens muito indelicadas”, referindo-se àquilo que Marta e a namorada faziam. “Alguns pais de meninos do 1º ciclo tinham feito queixa à escola. Eu e a Margarida achámos que esta conversa era uma oportunidade para mostrarmos que os jovens podiam gostar de pessoas do mesmo sexo. Podíamos ter feito história ali”, lamenta Susana. Nada feito. O ano letivo acabou e Marta mudou de escola, por opção. O namoro durou alguns anos e entretanto terminou mas, garantem mãe e filha, ainda hoje são muito amigas.
A direção dizia-nos que não podíamos andar assim, que não era correto e não podia haver namoros. Eu respondia que havia outros casais, menino e menina, que andavam aos beijos na escola e a eles não diziam nada”, conta Marta.
“Há dois tipos de pais: os que acham que é uma escolha e os que percebem logo que é definitivo”
Outubro de 2009. O pai e a mãe de Catarina formavam a AMPLOS, já sabedores da orientação sexual da filha. “Eu não imaginava que a minha filha fosse homossexual e percebi que ela estava apaixonada por uma rapariga. Ela tinha 16 anos. Na altura baralhei um bocado as coisas, pensei que era uma certa contestação dela”, como um ato de rebeldia, recorda Margarida Faria.
Não foi. Hoje, com 28 anos, Catarina já soma algumas relações de alguns anos, algumas merecedoras de conhecer a família. Mas, naquela altura, Margarida e o marido queriam falar com outros pais, queriam partilhar dúvidas, receios e confusões. “A Catarina tinha amigos gays e eu disse-lhe que gostava de conhecer os pais deles e ela disse: ‘Não, mãe. Eles não falam com os pais’.”
A tese confirmou-se. Margarida Faria escreveu um manifesto que viria a ser o texto fundador da associação e, com o marido, leram-no a um grupo de jovens da associação rede ex aequo. “Na altura, disse aos jovens que lá estavam: ‘Digam lá aos vossos pais para virem’ e eles responderam ‘mas os nossos pais não sabem’. Numa reunião aí com 20 jovens, só um é que disse ‘ok, vou falar com a minha mãe. Ela vai ficar toda contente’”.
Os filhos também têm de perceber as dificuldades dos pais. Aliás, eu às vezes digo: ponham-se no lugar dos vossos pais. Imaginem que o vosso pai diz que é gay ou que a vossa mãe diz que é lésbica. Também acontece. As pessoas que amamos mais, também são aquelas com quem temos uma imagem mais idealizada”, considera Margarida Faria.
A primeira paixão de Catarina foi aos 16 anos. “Era uma coisa tão pura que eu só queria estar perto dela e não questionava nada. Mas quando ia para a Zambujeira do Mar só com ela, sentia necessidade de dizer que ia com um grupo de pessoas”, conta a própria. Estava tudo certo e tudo errado ao mesmo tempo.
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Catarina, hoje com 28 anos, escreveu uma carta na altura aos pais, uma forma de sair do armário, para dizer o que sentia. Os pais não reagiram bem a princípio — mal sabiam que iriam passar grande parte do tempo livre a tranquilizar outros pais. “O meu pai ficou sobretudo preocupado com a imagem que isto daria para os outros”, mas depois ficou encantado com uma das noras. Tal como a avó. “A minha avó também gostou muito de uma namorada minha, com quem já não estou. Aliás, a minha avó hoje está com perdas de memória e ainda me pergunta por ela”, revela Catarina, entre risos.
Mas nem todas as pessoas LGBT nasceram no berço de Catarina. A realidade não era comum no grupo de amigos. A maioria dos pais não fazia ideia de que a orientação sexual dos filhos não era aquela que eles esperavam. “Mesmo quando sabiam, não se falava. Muitos diziam que nunca iam contar, porque os pais viam homossexuais na televisão e comentavam: ‘paneleiros’ ou falavam em ‘nojo’. Alguns foram expulsos de casa, a outros, os pais disseram que não iam dar mais dinheiro. Uma das minhas melhores amigas levou os pais a jantar e contou aos dois. A mãe saiu do restaurante a correr e ficaram sem falar durante imenso tempo”, relata Catarina.
Tinha uma amiga que namorava com uma rapariga há quatro anos. A mãe sabia mas chamava-a sempre de ‘a tua amiga’. Ela sabia mas não se tocava no assunto”, exemplifica Catarina.
O silêncio, segundo Margarida Faria, é o primeiro dos males dos pais. “O silêncio não faz parte da aceitação. Faz parte da negação”, sentencia. “Os nosso filhos homossexuais têm os mesmos direitos de falar sobre a sua vida afetiva, emocional e sexual que os outros. Têm o direito de partilhar com os pais como têm os irmãos”. Pôr o seu sofrimento à frente de tudo vem logo a seguir na lista negra. “Às vezes há um enorme egoísmo na forma como os pais reagem. Se há alguém que sofre com o preconceito social é o filho. Mas claro, os pais sofrem muito, porque tinham expectativas para os filhos, culpa de um contexto cultural, daquilo que se diz dos outros, etc. Os pais aprendem a ser pais através dos filhos. Todos têm de ter tempo de tristeza e de readaptação, mas tudo tem limites”.
Há pais que não têm ninguém com quem falar. Por isso nós dizemos: nós estamos aqui, podem falar abertamente, sem ninguém ser julgado.”
Os primeiros momentos nunca são fáceis. Há quem dê o salto mais depressa, outros mais devagar, e outros podem nunca chegar a dá-lo. “Eu arrumo os pais em duas categorias: aqueles que acham que é uma escolha e aqueles que percebem logo que é definitivo. Os primeiros tentam de alguma maneira alterar a escolha. Há pais intolerantes, que usam chantagens emocionais: a mãe diz que se suicida, ou que está doente e que a culpa é dele ou dela, para levar o jovem a mudar de ideias. Há pais que chegam a pôr os filhos fora de casa. Esses não procuram a AMPLOS, mas os filhos procuram. No segundo grupo, os pais percebem que é uma característica do filho. Pode demorar a perceber como é que vão lidar com isso, mas faz-se”, sublinha Margarida.
Num primeiro momento, todos desejam que passe, porque ninguém quer ser discriminado. Margarida fala por ela e pelo pai de Catarina. “Nós imaginámos uma fase em que queríamos que passasse. Quando deixámos de desejar que passasse, passou a ser muito mais tranquilo. Resolvemos aquilo dentro de nós. Ela era muito namoradeira e quando percebemos que eram sempre raparigas, pronto ok, é assim é assim. Estava arrumado.”
E o que é fazer mal a um filho? Margarida Faria explica: “Fazer mal a um filho é verbalizar que a homossexualidade é uma coisa errada. Porque isso é dizer que o filho está errado. É isso que eu digo aos pais: ao dizerem que a homossexualidade é uma coisa que vos choca, estão a dizer: ‘Tu és uma coisa que me choca’. Estão a dizer: ‘Eu não gosto de ti. Não gosto de quem tu és’. E os pais, porque acham que têm o direito de desabafar, não sabem que isso pode ser irreversível. Sobretudo quando os filhos fizeram um esforço enorme para dizerem naquele dia, naquele momento, uma coisa importantíssima. Os filhos podem demorar muito tempo a recuperar”.
Eu ia a passar na rua com uma rapariga e ouvi: ‘Onde é que é a festa lésbica hoje à noite? Qual de vocês é que faz de homem?”, conta Catarina.
“Quando se filma duas pessoas do mesmo sexo, a fronteira entre o carinho e a promiscuidade é muito ténue”
A AMPLOS nasceu em 2009 e, aos sete anos de existência, esta é a grande campanha da associação que já acompanhou cerca de 200 famílias. Margarida conheceu João Peral, diretor criativo da agência Winicio. João quis contribuir para a projeção da associação e falou com a diretora-geral da Winicio, Catarina Byscaia. A partir daí, toda a equipa ficou mobilizada. Conta João que é hábito da agência fazerem algumas campanhas pro-bono (gratuitas), “uma forma de contribuir para a sociedade”, e a AMPLOS viria a ser a premiada.
“A nossa questão foi: ‘o que é que eles defendem? Qual é a causa deles?’”, aponta João. Seguiram-se várias reuniões, power points e trocas de ideias com Margarida Faria e Manuela Ferreira, vice-presidente da associação, para que os criativos percebessem melhor o que as mães e pais faziam. “O mais importante era saber qual era a grande missão da marca, porque é que eles existiam”, tal como se faz com uma marca de cadeiras ou canetas. Perceber o produto para depois o comunicar. “O primeiro passo é conhecermos o cliente, porque se não conhecermos, podemos passar mensagens erradas”, completa a diretora-geral da Winicio.
“Percebemos que não são uma associação LGBT, são uma associação de pais para pais. Portanto, tanto têm de chegar aos pais para quem ter um filho que chega a casa e assume que é gay é perfeitamente normal, como também aos pais que têm outras convicções e que fazem os maiores dramas. E o que é que o pai faz? O pai sabe que tem uma associação de pais e mães, com quem pode ir ter, que partilham a mesma questão e que já passaram por esse processo”, explica Catarina Byscaia.
Alguém nestas conversas todas dizia: quando um homossexual sai do armário, arrasta a família toda consigo. A partir daí, a família também tem de fazer o coming out“, diz João Peral, diretor criativo da agência Winicio.
A campanha da AMPLOS tem também uma versão legendada:
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Depois da estratégia, havia que passar ao desenvolvimento criativo. “Primeiro chegámos a um conceito: o amor entre pai e filho é incondicional. O que quer que fizéssemos, tínhamos de contar esta história. Podia ser várias coisas: podiam ser dois amigos a andar de bicicleta e um conta ao outro que o filho saiu do armário, podíamos fazer uma metáfora em cima do armário”, elabora João.
A criatividade a borbulhar e eis que a lâmpada se acende: “Perguntámos: e se visses uma mulher na rua a beijar outra mulher? E alguém disse: eu ia achar que eram lésbicas. E se alguém te dissesse que eram mãe e filha? Epá, isso ia ser estranho. E pensámos: e se filmássemos isso?”, recorda o criativo.
“Quando nós percebemos que é mãe e filha e quando vamos ver o filme pela segunda vez, já não vemos da mesma forma. A provocação é essa: o amor entre mãe e filha tem de ser muito mais forte do que qualquer outra coisa. Independentemente de tudo, ela não pode deixar de amar a filha”, remata Catarina Byscaia. A cabeça criativa assegura: “Se a campanha não for provocadora, cai em saco roto”.
A chave da campanha é: quando olhamos com a lente errada para o amor, ele pode sempre parecer estranho. O nosso desafio é: não questiones o amor pelo teu filho”, atira João.
Mãe e filha, lá foram elas para o set de gravações. Marta está a estudar teatro, por isso as câmaras não são um bicho estranho. A mãe estava nervosa. “Disseram-nos para darmos mimos uma à outra, a troca de afeto normal entre mãe e filha”. Assim foi. A produção, também pro bono, foi assegurada pela produtora Garage. “Quando se está filmar uma cena entre duas pessoas do mesmo sexo, a fronteira entre o carinho e a promiscuidade é muito ténue”, confessa Miguel Varela, produtor executivo. Uma câmara Alexa de cinema, maquilhagem muito subtil, cinco a seis horas de rodagem, sempre em contra luz, um fundo neutro sem ruído à volta. Elas e a câmara.
Um jovem sai do armário. E os pais? Toda a gente se esquece deles. Esta campanha vem ajudar os pais, que também merecem”, considera o produtor executivo Miguel Varela.
“O desejo é chegar a muitas pessoas e que o telefone da AMPLOS toque muito”, diz João Peral, entre sorrisos. Se tocar, a culpa é em parte da dupla feminina que deu a cara, o corpo e a história ao manifesto.
E a mãe Susana, o que achou do resultado final? “Acho que ficou muito bonito. Ela (Marta) tem muito jeito para aquilo!”. E o que é que Marta acha do resultado final? “Acho que estou um bocado gorda. Mas não faz mal”, diz, entre sorrisos.