O espião português detido no sábado passado, em Itália, por suspeitas de estar a vender informações a um funcionário dos serviços secretos russos, mudou radicalmente de perfil pessoal a meio do seu percurso na agência de espionagem interna portuguesa, apurou o Observador junto de antigos funcionários do Serviço de Informações e Segurança (SIS) que trabalharam com ele. Frederico Carvalhão Gil, licenciado em Filosofia, é um homem “intelectualmente superior”, diz um antigo colega. Quando entrou para os serviços de intelligence chegava a ser gozado pelos colegas pela sua correção considerada excessiva, incapaz sequer de dizer um palavrão (dos mais ligeiros).
Um divórcio complicado terá desencadeado um processo de desestruturação da sua vida pessoal. Habituado a vê-lo como intelectual e “certinho”, um colega que passou algum tempo no estrangeiro surpreendeu-se quando o viu de rabo-de-cavalo e a fazer vida noturna. Passou de um extremo para o outro e “mudou a personalidade”, explica a mesma fonte. Entretanto, começou a relacionar-se com uma cidadã georgiana, a mulher de leste referida pelo Expresso, que terá levantado suspeitas a um serviço de informações estrangeiro por o ter acompanhado a um curso internacional.
Fonte ligada ao processo confirmou ao Observador que Carvalhão Gil é suspeito de vender informações a um espião russo do SVR, também ele detido. Segundo esta mesma fonte, o espião português e o espião russo não foram detidos em flagrante delito, mas no comunicado da Policia Judiciária (PJ) é referido que existem provas “com relevante valor”.
O espião detido exerceu cargos de direção intermédia nos serviços. Ao que apurou o Observador, terá sido diretor de pesquisa do Contraterrorismo em finais dos anos 90 e início dos anos 2000. Era uma responsabilidade operacional, refere outra fonte ligada aos serviços. Os responsáveis pela pesquisa, nesta época, tinham a seu cargo a gestão das fontes — os chamados “agentes”, que passam a informação aos funcionários da agência secreta. Recentemente, Carvalhão Gil não tinha funções desta natureza e estaria mais afastado do fluxo de informações sensíveis do SIS.
O seu percurso pessoal e profissional também se terá ressentido de um “gravíssimo problema de coração” que o fez correr perigo de vida, recorda o mesmo ex-colega. Este antigo funcionário dos serviços de informações faz um paralelo com o caso do piloto alemão que fez despenhar um avião nos Alpes, e sobre o qual havia numeroso indícios de instabilidade psicológica. “No fundo, agora até acaba por não ser uma notícia inesperada, tendo em conta este perfil que mudou profundamente”.
O espião português terá viajado até Itália com o propósito de vender informações reservadas e chegou a receber o dinheiro da transação efetuada com o funcionário dos serviços de informações russos. A detenção dos dois suspeitos terá ocorrido em separado e após terminada esta alegada transação.
“Apanhar uma toupeira é a coisa mais difícil para um serviço de informações”, diz ao Observador um antigo dirigente dos serviços, que admite estar “em choque” com esta notícia, assim como está a geração que esteve na fase inicial dos serviços com o funcionário agora detido. “É um ato de coragem do atual diretor-geral do SIS, a quem tiro o chapéu”, afirma o antigo espião. “As coisas têm de ser vistas com realismo: apesar de ser um momento triste, esta é uma grande vitória dos serviços de informações portugueses, porque é muito difícil fazer este tipo de operações”.
Todo o mundo da intelligence tem uma espécie de código: é tão importante apanhar um espião estrangeiro hostil, como um agente do próprio serviço que trabalhe para outros serviços. Tão importante quanto saber o que os outros sabem, é fundamental “saber o que os outros sabem de nós”. Daí que este antigo dirigente das secretas realce a importância desta ação. “Isto quer dizer que a nossa contra-intelligence é eficaz. O problema agora é perceber há quanto tempo é que ele estava a passar informações e quais é que passou”.
A conta de Facebook em nome de Frederico Carvalhão Gil exibe uma série de posts alusivos à Geórgia, a temas relacionados com a Rússia, e também com a maçonaria, à qual o espião pertenceria.
As informações oficiais da PJ e da PGR
Em comunicado, a PJ apenas refere “a existência de suspeitas da prática de um crime de espionagem, por parte de um funcionário, a favor de um serviço de informações estrangeiro”.
A Procuradoria-Geral da República, num comunicado emitido após o texto da PJ, confirma que estão a ser investigadas “suspeitas de transmissão de informações, a troco de dinheiro, por parte de um funcionário português a um cidadão estrangeiro supostamente ligado a um serviço de informações estrangeiro”.
Foi o próprio SIRP — Serviço de Informações da República Portuguesa que detetou “a toupeira” — termo usado para definir um agente secreto que passa informações a outro serviço de informações — e fez a respetiva participação criminal no Ministério Público (MP) por suspeitas do crime de espionagem e violação do segredo de Estado. A partir daqui, o MP e a Judiciária tomaram conta do caso.
Segundo o comunicado da PJ, foi desencadeada “uma complexa e sensível operação, que decorreu desde o final da passada semana e findou ontem, na sequência da qual foi possível esclarecer factos referentes à prática dos crimes de espionagem, corrupção e violação de segredo de Estado”.
Fruto da excelente articulação entre o Ministério Público, a Polícia Judiciária e o Serviço de Informações de Segurança, bem como ao nível da cooperação internacional com as autoridades italianas, foram detidas duas pessoas, em Roma, pela presumível prática dos crimes de espionagem, corrupção e violação de segredo de Estado”, lê-se no texto da PJ
O comunicado revela ainda que já foi iniciado o processo de extradição:
Os dois detidos, a quem foram apreendidos elementos com relevante valor probatório, foram presentes à Autoridades Judiciárias italianas competentes, tendo sido determinado que aguardem a extradição em prisão preventiva.
Apesar de o segundo detido ser de outra nacionalidade, pode dar-se o caso de vir a ser extraditado para Portugal, uma vez que a operação foi feita recorrendo a mandados de detenção europeus.
Buscas domiciliárias em Portugal
No comunicado da Procuradoria-Geral da República sobre a operação “Top Secret”, assim se chama, acrescenta-se que, ao mesmo tempo que em Roma eram detidos os dois homens, “foram realizadas, igualmente, buscas domiciliárias em Portugal”.
Os suspeitos estão detidos em Itália.
As autoridades portuguesas fizeram deslocar funcionários a Itália, sendo que a operação contou com o apoio das autoridades italianas, da Interpol e do Eurojust. O MP é apoiado nesta investigação pela Unidade Nacional de Combate ao Terrorismo da PJ.