Tinham passado setenta e oito minutos do jogo entre Portugal e Áustria. A poucos minutos do fim, a baliza austríaca ainda não tinha estremecido com um golo português e o jogo continuava empatado a zero. Até que o árbitro apitou, levantou a mão e a esperança de uma vitória renasceu nos portugueses. Cristiano Ronaldo aproximou-se. Pôs aquela pose de toureiro que não agrada a todos, mas a todos enche de expectativa. Olhou para a bola, para a baliza, para a bola outra vez, suspirou e correu. Rematou, a bola voou. E foi bater no poste da baliza austríaca.
Desde o início do Euro 2016 até àquele momento, era a décima quarta vez que uma bola ia bater num dos ferros das balizas. E a pergunta haveria de ser repetida a um expoente tão alto que nos fez duvidar: será que 25 bolas nos postes – as registadas pelo site da UEFA desde o início do campeonato até à última segunda-feira, 44 jogos no total – são uma questão de sorte, de azar ou uma qualquer mudança magnética nos campos de futebol franceses?
A Física do Futebol
É, acima de tudo, um fenómeno “simplesmente acidental”, conta-nos Carlos Fiolhais, professor catedrático de Física na Universidade de Coimbra. Embora pouco provável – porque a área do poste é muito mais pequena que a área de uma baliza e, portanto, é mais difícil acertar nela que em qualquer outra região do campo -, é um acontecimento que se pode considerar aleatório aos olhos da ciência. É o que acontece “num jogo de flippers, em que nem sempre o jogador acerta nos buracos que quer”. Não há qualquer “força magnética” que atraia a bola do Euro 2016 aos postes: a única força que existe é a do azar. Ou da sorte, depende da perspetiva.
O jogo acabou e nós continuávamos sem entender o que tinha acontecido. Parecia que o árbitro tinha entregue uma bandeja com um golo a Cristiano Ronaldo e que o capitão português a tinha deixado cair. Mas, na verdade, de um ponto de vista físico, o madeirense fez tudo bem naquele remate. Tão bem que acabou por falhar. Eis porquê.
Uma baliza oficial mede 7,32 metros de largura e 2,44 metros de altura, significando isto que a área da sua entrada é de 17,86 metros quadrados. Um guarda-redes com 1,93 metros (Rui Patrício tem menos três centímetros) demoraria em média cerca de 0,7 segundos a chegar a um dos extremos da baliza, se partisse do centro. Ora, rematada em situação de penálti a uma distância de 11 metros da baliza, a bola pode chegar à rede em menos de 0,5 segundos. Visto que o guarda-redes só pode avançar depois do remate, um penálti é virtualmente indefensável se a bola for enviada para longe do guardião. Um estudo publicado em 2005 após analisar 286 penáltis indica que mais de 80% dos remates à baliza (cerca de 4 em cada 5) resultam em golo se forem rematados para a chamada “zona indefensável”.
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Nesse mesmo estudo descobriu-se também que o guarda-redes tem maior probabilidade de defender um penálti se permanecer no centro da baliza do que se se atirar para a esquerda ou direita, como habitualmente acontece.
Ora, Cristiano Ronaldo rematou precisamente para a zona indefensável. Mas foi traído por fatores que ele próprio não podia controlar: a zona indefensável está muito próxima dos postes. Qualquer remate mal calculado – às vezes bastam milímetros para que a bola siga por uma trajetória indesejada – pode significar um golo falhado. Ronaldo falhou, mas é cientificamente perdoável.
E é-o, principalmente porque a física do futebol é “muito complexa”, explica-nos Carlos Fiolhais. A trajetória de uma bola desde o momento do remate até à baliza depende de vários fatores que se podem organizar em dois grupos: as condições iniciais da bola (a posição, a velocidade imprimida no remate e outras características da rotação) e as forças que atuam durante o movimento (que são o peso e a resistência do ar).
Mas que forças são essas? No momento do remate atua sobre a bola uma “força de contacto”, que é a transmitida pela bota do jogador. Depois a bola entra em viagem e está sujeita ao seu próprio peso e à resistência do ar. Estas forças chamam-se “aerodinâmicas” e são influenciadas pela pressão e pela viscosidade do meio, um parâmetro do ar que estuda a “resistência” que ele tem ao ser atravessado por um objeto. A força resultante da pressão e da viscosidade pode ser decomposta em dois: o arrasto (uma parte da força de resistência do ar à bola oposta ao movimento e que o desacelera) e a sustentação (outra parte da resistência do ar à bola que se opõe ao peso).
De acordo com Carlos Fiolhais, todo o movimento é governado pela 2ª Lei de Newton: a velocidade que a bola leva é modificada pelas forças que nela atuam. E há uma força que pode mudar completamente a felicidade (ou a infelicidade) de um remate no futebol: a rotação. Quando um jogador remata a bola de raspão (evitando o seu centro), imprime à bola um movimento de rotação semelhante ao da Terra, fazendo com que uma força de sustentação passe a agir sobre ela. Essa força chama-se “efeito Magnus”. Para a entender, vamos fechar os livros de Física: o melhor mesmo é recordar aquele golo quase impossível de Roberto Carlos em 1997. Não se lembra? Veja o vídeo.
Num jogo entre França e Brasil, o então ainda jovem Roberto Carlos foi chamado a marcar um livre direto a 35 metros de distância da baliza. Ninguém acreditava num golo: o jogador brasileiro não tinha uma única trajetória em linha reta para a baliza. Mesmo assim, a bola entrou na baliza francesa, depois de descrever uma rota com forma de banana que deixou todos boquiabertos: Roberto rematou para a direita, longe da barreira de defesas, mas a bola deu meia volta e o milagre aconteceu. De acordo com a 1ª Lei de Newton, um objeto move-se na mesma direção e velocidade até que uma força seja aplicada. Mas se nada tocou na bola de Roberto Carlos para ela mudar de direção, o que aconteceu naquele dia?
Não era milagre: era Ciência. E o segredo estava na tal rotação da bola. O pontapé foi dado no quadrante direito inferior da bola, levantando-a para a direita, mas fazendo-a girar em torno do seu próprio eixo. A bola parecia viajar numa trajetória direta, mas era o ar em redor dela que estava prestes a tornar aquele remate memorável: num lado, o ar movia-se na direção oposta à rotação da bola, aumentando a pressão; no outro lado, o ar movia-se na mesma direção da rotação, criando uma área de baixa pressão. Essa diferença obrigou a bola a curvar-se para a zona de menor pressão: o fenómeno criado por este diferencial é o tal “efeito Magnus” e foi observado por Newton em 1670 enquanto jogava ténis.
Roberto Carlos não sabia, mas estava prestes a conseguir um golo fisicamente muito complicado. Um remate demasiado alto e a bola voaria por cima da baliza, demasiado baixo e ela chegava ao chão antes de curvar. Se o ângulo do remate fosse demasiado aberto, a bola sairia para fora do campo; mas se fosse demasiado fechado, ela iria bater nos defesas. Um remate lento e a bola curvaria demasiado cedo; mas se fosse demasiado rápido, ela curvaria tarde demais. Por isso, de um ponto de vista científico, Roberto Carlos não foi mágico, mas foi um génio da física.
Claro que nem sempre as forças aerodinâmicas são companheiras dos jogadores. Basta recuar a 1970 e olhar para o “não golo” de Pelé, no jogo entre o Brasil e a Checoslováquia. Nesse jogo, Pelé estava no meio campo e o guarda-redes checo estava bastante adiantado na grande área. O brasileiro rematou e a bola saiu do chão a 105 km/h, girando a 7 rotações por segundo no sentido contrário aos ponteiros do relógio. Três segundos depois, a bola passou mesmo rente à trave. Não entrou.
Sorte ou azar? Neste Euro, é difícil saber
Nos treinos antes do primeiro jogo do Euro 2016, Zlatan Ibrahimovic, que fez a sua última competição pela seleção sueca, tentou a sua sorte. Tal como podemos ver no vídeo, acertou apenas uma em quatro tentativas. Talvez o azar tenha começado aqui, visto que a Suécia não passou da fase de grupos.
https://www.youtube.com/watch?v=uLShwv4QZZo&feature=youtu.be
Quando o objetivo de uma partida de futebol é marcar golos e quando queremos tudo menos falhar um remate, a coisa pode tornar-se angustiante. Logo no primeiro jogo do Euro, entre França e Roménia, houve lugar para um disparo aos ferros. Até aos quartos de final foram 25 as bolas que esbarram nos ferros das balizas em 44 jogos.
O que significa isto? Tendo em conta os números do Euro 2016 (44 jogos, 341 remates à baliza, 83 golos e 25 bolas aos postes) só é preciso fazer contas. Ou seja:
- Em cada jogo há 0,57 bolas que batem nos postes. Um número difícil de entender? Outra perspetiva: a cada 1,76 jogos, há uma bola que esbarra nos ferros.
- A cada 13,64 remates à baliza, uma bola bate no poste.
- Por cada 3,32 golos há um remate que ao poste.
Um dos jogos mais azarados até agora foi o Suíça-França que terminou empatado a zero após uma exibição muito elogiada da seleção anfitriã e, em especialmente, do seu médio Paul Pogba que estava naqueles dias que por mais que rematasse, as bolas estavam destinadas a não entrar.
https://www.youtube.com/watch?v=vjpdNXdF-sc&feature=youtu.be
Portugal também não poderia ficar de fora nos momentos de azar: 2 bolas ao poste. Uma a do penálti falhado de Ronaldo, o que é ainda mais improvável.
Mas até agora nada bate o que Rakitic fez na vitória da sua Croácia frente à Espanha. Num lance que tinha tudo para ser um golo fantástico, um chapéu de fora de área, o médio croata conseguiu acertar com a bola na barra e no poste com um remate apenas. Digno de pontuação extra no desafio da barra.
No total, a França é a seleção com mais pontaria errada, tendo acertado por cinco vezes nos ferros. Segue-se a Croácia com quatro remates e Alemanha com três disparos certeiros nas traves. O alemão Thomas Müller e o croata Ivan Perišić são os jogadores com mais disparos nos ferros, tendo acertado por duas vezes (a de Perišić vai ficar, felizmente, na memória dos portugueses durante algum tempo).
Carlos Fiolhais garante que estas pontarias indesejadas são apenas vicissitudes, casualidades, venturas. É que “apesar de o futebol ser governado pelas leis da mecânica clássica e o jogo ser determinista (as mesmas causas produzem os mesmos efeitos, por isso podemos prever os resultados), certo é que há onze jogadores de cada lado, cuja ação torna o jogo muito complexo”. É por isso que o futebol é praticamente imprevisível. E fascinante também.