António Costa não tem sido um político convencional nem previsível no plano interno. Agora prepara-se para tomar uma iniciativa inédita, mas no plano da política comunitária: recorrer para o Tribunal de Justiça da União Europeia se o Ecofin (Conselho dos Ministros das Finanças) resolver aplicar as sanções financeiras a Portugal, que devem ser propostas esta quarta-feira pela Comissão Europeia.

O primeiro-ministro já assumiu ao Público que a argumentação portuguesa contra as sanções será baseada no princípio da proporcionalidade em comparação com Espanha. António Frada, professor de Direito da União Europeia na Universidade Católica — que já trabalhou no Tribunal Europeu –, diz ao Observador que é uma solução “criativa” invocar que estamos a ser tratados de forma diferente dos espanhóis. “Mas, no fundo, trata-se de saber se a decisão é compatível com o Direito da União Europeia”.

O recurso de anulação que o Governo português ameaça apresentar terá de conter uma argumentação jurídica e não apenas política, explica António Frada. É preciso de alguma forma provar não tanto uma ilegalidade, mas suscitar “um controlo da legalidade e conformidade” da decisão com as regras europeias, diz o jurista.

“Seria um ato inédito”, comenta ao Observador um destacado socialista, perito em assuntos europeus. “Normalmente, os Estados não vão contra as decisões do Conselho” através de recursos para o Tribunal de Justiça. “Obviamente que, sendo este um ato inédito, não deixará de ter repercussões” — neste caso políticas –, sobretudo “pela diferença em relação ao que Espanha fará”, diz o mesmo socialista (antes de saber que Costa se preparava para invocar o princípio da proporcionalidade precisamente em relação aos espanhóis). A possibilidade de recorrer para o tribunal existe, mas terá danos colaterais que devem ser ponderados por quem recorre, avisa.

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“Não me parece nada que Portugal fique prejudicado do ponto de vista institucional ou diplomático”, contrapõe Francisco Seixas da Costa — embaixador que foi secretário de Estado dos Assuntos Europeus nos governos de António Guterres — para defender a estratégia do primeiro-ministro: “Do ponto de vista político faz sentido que Portugal dê um murro na mesa de forma institucional. Do ponto de vista diplomático, é um gesto corajoso e com dignidade”.

Apesar de a conflitualidade com Bruxelas poder isolar Portugal na Europa, para Seixas da Costa isso não muda o que já é uma realidade. “Portugal já está isolado”, reconhece ao Observador, “até porque estas decisões têm sido tomadas por unanimidade”. E acrescenta: “Na UE, agora parece que uns têm todos os direitos e outros todos os deveres”. Segundo o embaixador, “elevar a questão para um patamar jurídico é interessante”. Se é inédito, “também é a primeira vez que temos medidas nesse sentido”, da aplicação de sanções.

As sanções são medidas de contrassenso, que vão agravar os problemas económicos, como se estivessem a castigar um doente tirando-lhe um medicamento“, diz Seixas da Costa ao Observador.

O professor António Frada recorda que Espanha “teve sempre muita litigância no Tribunal de Justiça”. Muito mais do que o Estado português. Em vez de afrontar os espanhóis, o jurista até defende que “talvez valesse a pena uma ação concertada com a Espanha”, no recurso de anulação das sanções.

António Costa também explicou ao Público que o Estado português vai recorrer das sanções para o tribunal “com base no mesmo argumento que os nórdicos têm utilizado, que é o de que vamos cumprir as regras, mas vamos discutir quais as regras e se as cumprimos ou não”. António Frada lê esta declaração como a manutenção da retórica recente do PS: “É uma forma de dizer que as sanções têm a ver com o passado, e que agora Portugal vai cumprir”. No entanto, explica o professor de Direito, as sanções não estão desligadas das recomendações orçamentais que certamente o Ecofin fará a Portugal. Embora possa parecer que não têm caráter vinculativo, não são meras sugestões: “São recomendações sui generis, porque produzem efeitos jurídicos: se os Estados não as cumprem há sanções”.

Outra linha de argumentação que o Estado poderá usar é que Portugal fez tudo para baixar o défice durante os anos do Governo PSD/CDS, reduzindo o saldo negativo das contas públicas de mais de 9% para 3,2%, um esforço assinalável. Entre críticas “a esta visão da Europa”, o eurodeputado socialista Carlos Zorrinho até sugeriu ao Observador que “as principais testemunhas” poderiam ser “Pedro Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque”. Nesse sentido, o primeiro-ministro afirmou ao Público que, “ao contrário do que dizem, houve por parte de Portugal ação efetiva de combate ao défice”. E sublinhou que bastava “ver o que aconteceu entre 2011 e 2015”. O primeiro-ministro acrescentou ainda que “um desvio de 0,2 pontos percentuais não pode ser atribuído a falta de ação efetiva” de combate ao défice.

Como a base da Comissão Europeia para propor as sanções foi que “Portugal não tomou medidas eficazes” e “não corrigiu o seu défice excessivo dentro do prazo estabelecido”, o Governo português terá de defender agora o esforço que o país fez para reduzir o défice. Ou seja, para alegar junto do Tribunal que os portugueses tomaram medidas eficazes e que fizeram todo o esforço possível para manter o défice abaixo dos 3%, o Governo socialista poderá ter de ser obrigado a defender politicamente a ação do Executivo anterior de Pedro Passos Coelho.

Miguel Poiares Maduro, ex-ministro adjunto de Passos Coelho — que foi advogado-geral no Tribunal Europeu — diz ao Observador que “um procedimento urgente ia demorar meses”. Se não fosse urgente poderia arrastar-se por mais de um ano e meio. A somar a isso, dificilmente a interposição de um recurso faria suspender a decisão de aplicar sanções até haver uma deliberação. O social-democrata, que regressou ao seu lugar no Instituto Europeu de Florença, diz ao Observador que, “apesar dos ganhos políticos internos, agora um conflito aberto do Estado português com Bruxelas pode agravar a apreciação dos mercados” sobre o país.

Lembra-se de quando a Comissão foi para tribunal porque o Conselho não aplicou sanções à Alemanha e a França?

Nem haverá sequer grande jusrisprudência neste domínio, a não ser um acórdão sobre o procedimento de défices excessivos da Alemanha e da França, em 2004. A história contava-se então ao contrário. Os dois “grandes” violavam há três anos consecutivos o limite de 3% do défice e a Comissão Europeia, presidida pelo italiano Romano Prodi, através do comissário espanhol Pedro Solbes, mostrava-se implacável. Os dois países deviam sofrer sanções e recomendações com as quais se comprometeriam a cumprir o Pacto de Estabilidade e Crescimento (ainda não havia Tratado Orçamental).

Com a discussão ao rubro, Solbes até escrevia um artigo no jornal alemão Handelsblatt, citado então pelo Público, onde questionava se era possível “coordenar políticas económicas, assentes na moeda única, com base em acordos de cavalheiros”, como pareciam pretender a Alemanha e a França.

O que aconteceu há 12 anos foi a Comissão Europeia a propor a aplicação de sanções à França e à Espanha, mas a esbarrar no Conselho de Ministros das Finanças. Na prática, o Ecofin suspendia as regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento e fazia a seguinte proposta: a Alemanha reduzia o seu défice estrutural em 0,6 pontos percentuais em 2004, se o seu crescimento fosse de 1,6 e promovia uma redução de 0,5 em 2005, caso o seu crescimento acelerasse até 1,8% do PIB. Os dois países só seriam sujeitos a penalizações caso não cumprissem este plano mais prolongado no tempo.

Ora, nessa época, os ortodoxos eram um espanhol e um italiano. E os desleixados eram os alemães e os franceses. Resultado? Como os países não aprovaram a proposta do colégio de comissários, a Comissão recorreu para o Tribunal Europeu, solicitando que este anulasse a decisão dos ministros das Finanças do euro, de não aplicar as sanções previstas nos acordos. O diretor dos serviços jurídicos da Comissão Europeia, Michel Petite, chegou a dizer numa audição do Tribunal que a junção de forças dos ministros europeus contra Bruxelas se revestia “de graves perigos para a credibilidade do pacto e do euro”.

O recurso de anulação foi interposto pela Comissão no dia 27 de janeiro de 2004 e a decisão foi tomada pelo plenário do Tribunal de Justiça no dia 13 de julho do mesmo ano. Levou apenas seis meses porque se tratou de um procedimento urgente.

No final, o Tribunal de Justiça da União Europeia tomou uma decisão salomónica. Não deu razão a nenhuma das partes, ou acabou por agradar a ambas. Considerou “inadmissível” o recurso de anulação interposto pela Comissão Europeia. E anulou a decisão dos Conselho no sentido de suspender o procedimento por défices excessivos. Resta agora saber como será com um pequeno país como Portugal.