Rafaela Silva só podia brincar em frente ao portão de sua casa. Os tiroteios frequentes motivaram a ordem dos pais: vir para casa ao primeiro indício de trocas de tiros. A infância da judoca brasileira, passada na Cidade de Deus (um bairro perigoso do Rio de Janeiro, retratado no filme com o mesmo nome, nomeado para quatro Óscares), foi violenta, envolvida em lutas e recados da escola para os pais.
Foi essa violência, escreve o jornal brasileiro O Globo, que levou os pais de Rafaela a inscrevê-la numa academia de judo orientada pelo mestre Geraldo Berardes. Entre o primeiro treino no Instituto Reação — que dinamiza escolas de desporto em zonas desfavorecidas do Rio de Janeiro — e a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos, o percurso foi longo e difícil.
Os pais trouxeram-nas [Rafaela e a irmã, Raquel] para treinar, porque elas não obedeciam a ninguém, brigavam muito. Nas primeiras aulas, vi que tinham boa coordenação, uma agressividade importante. Na Cidade de Deus, ela peitava [enfrentava] todo o mundo. Tinha que canalizar isso para o judo”, lembra o treinador, que acompanha Rafaela desde o primeiro momento.
Para evoluir na modalidade, e mudar de cinturão, Geraldo exigia boas notas na escola. Por isso, Rafaela tornou-se melhor aluna. Começou a ter o judo dentro de si — mas continuava a jogar à bola com os rapazes, com quem também continuava a lutar na rua. “Sabiam que eu fazia judo e queriam ver se eu era boa”, lembra a atleta. “E apanhavam.”
Geraldo Bernardes percebeu que tinha um diamante em bruto diante de si e começou a trabalhá-lo. Havia de lhe colocar medalhas ao peito. Rafaela treinou muito, e foi, com 16 anos, ganhar o Mundial de Júniores da Tailândia. A competição era para atletas entre os 17 e os 19 anos de idade. A vitória deu a certeza olímpica a Geraldo.
Londres 2012: “Lugar de macaco é na jaula, não nas Olimpíadas”
Rafaela foi acumulando títulos, e, quando chegou aos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, era vice-campeã mundial. No ranking internacional, ocupava o quarto lugar. Após a vitória no primeiro combate, Rafaela defrontou a húngara Hedvig Karakas. Tudo apontava para uma vitória da brasileira, mas o golpe que a fez ganhar foi considerado ilegal. Num segundo, Rafaela Silva caiu no desespero. Chorou, abraçada à treinadora Rosicleia Campos, ali na arena.
Perdeu. E os adeptos da modalidade não perdoaram. Nas redes sociais, Rafaela Silva foi bombardeada com ataques duros e foi vítima de racismo. Quando chegou ao hotel e abriu o Twitter, descobriu os insultos. “Lugar de macaco era na jaula, e não nas Olimpíadas”, dizia um comentário. “Tinha um comentário [a dizer que] eu estava gastando o dinheiro que a pessoa pagava de imposto para querer ganhar roubando”, recordou Rafaela ao jornal desportivo Globo Esporte.
Rafaela podia ter ignorado, mas respondeu. E exaltou-se. “Respondi que pagava imposto também”, lembra. E depois isolou-se: colocou todas as suas redes sociais em modo privado e passou quatro meses sem vestir um quimono, de acordo com o treinador.
A depressão durou até dezembro de 2012, altura em que ganhou a medalha de bronze no World Masters. A partir daí, retomou os bons resultados. O auge chegou esta semana.
“Mostrei que uma pessoa saída de favela pode tornar-se campeã. A lição que fica para as crianças é que, se têm um sonho, que batalhem. Assim, podem alcançá-lo”, disse a judoca à saída do combate que lhe deu a medalha de ouro. Mas nem o ouro olímpico — a medalha que faltava no currículo de Rafaela — a livrou de algumas críticas, como se pode ler nos comentários à publicação que a judoca colocou no seu Facebook para comemorar a vitória:
Foi o mesmo centro que a acolheu em criança, o Reação, que a salvou da desistência. “Imaginas-te daqui a dois anos fora do judo?”, perguntou-lhe uma psicóloga que trabalhava no centro. “Rafaela nem pestanejou”, conta o jornal brasileiro Zero Hora. Foi vencer o Mundial de 2013. O Rio de Janeiro trouxe a quarta medalha de ouro da sua carreira, depois desse Mundial de 2013, e dos Jogos Pan-Americanos de 2012 e de 2013.
“Pode demorar. Eu não consegui há quatro anos. Mas agora alcancei”
A húngara Karakas, que a assombrava desde Londres, foi despachada por Rafaela nos quartos-de-final. Antes, tinha vencido Myiram Roper e Jandi Kim. Nas meias-finais, venceu a romena Corina Carprioru. Rafaela acabaria por ganhar, na final, à mongol Sumiya Dorjsuren, que tinha eliminado a portuguesa Telma Monteiro da disputa pelo ouro.
Dezanove anos depois de ter entrado na academia de Geraldo Bernardes para corrigir as tendências violentas da rua, Rafaela Silva subiu ao pódio olímpico. A jovem da Cidade de Deus garante que cumpriu um sonho, e lembra ao jornal O Globo os dias em que vivia no bairro problemático da cidade: “Desde pequena, o meu sonho era ver as pessoas famosas e tirar fotos. Agora, ao ir para a Vila (Olímpica) e as pessoas pedirem para tirar foto comigo é bem diferente”.