As cinzas dos defuntos devem ser mantidas em local sagrado, como uma igreja ou o cemitério, determina a Igreja Católica, num documento orientador publicado pela Congregação para a Doutrina da Fé, e aprovado pelo papa Francisco, que proíbe a dispersão das cinzas na natureza ou outros locais. Esta prática é considerada “em desacordo com a fé da Igreja” e pode levar as autoridades eclesiásticas a negar a realização de um funeral, adverte o documento redigido pela Congregação para a Doutrina da Fé.
O documento Ad resurgendum cum Christo [Para ressuscitar com Cristo] afirma que a Igreja aceita a cremação, mas proíbe que as cinzas sejam espalhadas em qualquer lugar, ou divididas entre familiares, lembrando que devem ser mantidas em local sagrado, “ou seja, no cemitério, ou numa igreja, ou numa área especialmente dedicada para este fim pela autoridade eclesiástica competente”. O documento, não traz, contudo, “nada de novo”, sublinha ao Observador o Monsenhor Feytor Pinto, estudioso dos documentos do Vaticano. “Trata-se de uma instrução, um documento de orientação pastoral, que tem até um título muito sugestivo. Para ressuscitar com Cristo”, sublinha o sacerdote.
Para evitar qualquer equívoco panteísta, naturalista ou niilista, não é permitida a dispersão das cinzas no ar, terra, ou água, ou de qualquer outra forma, ou a transformação das cinzas em recordações comemorativas, em peças de joalharia ou em outros artigos”, sublinha a instrução.
Com a publicação deste documento, a Igreja não determina a proibição da cremação, mas apenas da dispersão das cinzas. “Na ausência de motivações contrárias à doutrina cristã, a Igreja, depois da celebração das exéquias, acompanha a escolha da cremação seguindo as respetivas indicações litúrgicas e pastorais, evitando qualquer tipo de escândalo ou de indiferentismo religioso”, lê-se no documento. A Congregação para a Doutrina da Fé determina que “caso o defunto tenha pedido a cremação e a dispersão das cinzas na natureza por razões contrárias à fé cristã, as exéquias serão negadas”.
Para a Igreja, “a conservação das cinzas num lugar sagrado ajuda a reduzir o risco de afastar os defuntos da oração e da lembrança dos familiares e da comunidade cristã”, explicou o consultor da Congregação para a Doutrina da Fé, o espanhol Angel Rodriguez Luno, na conferência de imprensa de apresentação do documento. Deste modo, “evita-se a possibilidade de esquecimento, falta de respeito e maus tratos, que podem acontecer especialmente passada a primeira geração, bem como práticas inconvenientes ou supersticiosas”. A Igreja católica permite aos fiéis, desde 1963, escolher a cremação do corpo, embora prefira o sepultamento.
Mons. Feytor Pinto: “Fazer joias a partir das cinzas é macabro”
O Monsenhor Vítor Feytor Pinto leu o documento e explicou ao Observador que “com a ideia da cremação houve alguns abusos, como por exemplo, as pessoas começarem a fazer joias a partir das cinzas, o que é macabro”. Para o sacerdote português, isto é “tratar mal a memória dos defuntos”. Outro caso comum é o de espalhar as cinzas, pelo mar ou na terra. “Perde-se o sentido pessoal. A Igreja Católica caracteriza-se pela relação entre os vivos e os mortos”, que, no entender de Feytor Pinto, é “quebrada” com esta prática. O padre, que estuda os documentos do Vaticano, alerta ainda para “o perigo do naturalismo”, que “pode ter algum interesse poético, mas não é consistente com a fé”.
Para Feytor Pinto, a publicação deste documento “exige à Igreja uma explicação” mais concreta. “Nós, católicos, devemos conversar com as pessoas sobre a importância da relação com os defuntos. Nós, os portugueses, até temos, tradicionalmente, uma relação com aqueles que partem, com a celebração de festas como o Dia de Todos os Santos”, sublinha o padre.
“Durante algum tempo a Igreja condenava a cremação, porque muitos pediam-na com medo de serem enterrados vivos”, recorda. Mas “atualmente há, na medicina, o chamado diagnóstico da morte, que indica que uma pessoa está mesmo morta, pelo que já não há esse perigo”, sublinha. Por isso, “a Igreja aceita a cremação enquanto escolha pessoal”. O objeto deste documento é precisamente o destino a dar às cinzas, que, recorda Feytor Pinto, também “não devem ser divididas, por exemplo, entre irmãos”. As urnas com as cinzas devem permanecer nos cemitérios, explica o sacerdote, referindo até que “no cemitério dos Olivais já existe um espaço para o efeito, junto ao crematório”.