O DocLisboa encerra hoje com a projecção do documentário “Nos Interstícios da Realidade ou o Cinema de António de Macedo” (Culturgest, Grande Auditório, 21.00), de João Monteiro, um dos directores do MOTELX. Um dos nomes mais importantes do Cinema Novo português, nos anos 60, António de Macedo é também um dos raros cineastas nacionais que tentou fazer cinema de género, nomeadamente fantástico, esotérico e de ficção científica em Portugal, graças a títulos como “O Princípio da Sabedoria”, “Os Abismos da Meia-Noite”, “A Maldição de Marialva” ou “Chá Forte com Limão”.
Isto valeu-lhe a incompreensão e o ostracismo dos seus pares, a hostilidade da imprensa e ainda a recusa de apoios oficiais, pelo que não voltou a filmar desde início da década de 90. Em 2012, a Cinemateca dedicou uma retrospectiva a António de Macedo, que no mesmo ano recebeu o Prémio Sophia de Carreira da Academia Portuguesa de Cinema. Em 2013, foi a vez do Fantasporto o homenagear e conceder um Prémio de Carreira. O Observador conversou com João Monteiro sobre o seu documentário e sobre António de Macedo, hoje com 85 anos.
[“Trailer” de “Nos Interstícios da Realidade”]
Este documentário é uma forma de fazer justiça a António de Macedo e á sua obra, a um realizador que é um dos mais teimosamente individualistas do cinema português; e também de fazer justiça às pessoas que em Portugal gostam de cinema fantástico, e que por gostarem, são constantemente amesquinhadas e menosprezadas pelo meio cinematográfico, onde o fantástico e o cinema de género são menorizados e desconsiderados.
Concordo, porque humildemente, o meu objectivo com este documentário era repor alguma justiça, deixar o testemunho de um autor que foi completamente esquecido. Foi assim que eu o conheci. Ouvi falar de um Macedo que tinha feito filmes fantásticos e que tinha assim uma aura de coisas que não eram levadas a sério, esotéricas. Isto coincidiu quando no MOTELX andávamos á procura das origens uma espécie do cinema de género em Portugal, e todos os caminhos iam dar ao Macedo. E veio-se a revelar que este estigma que ele tinha não fazia sentido, porque o Macedo havia deixado uma série de experiências que tinham a ver com o seu passado experimental, vanguardista, para serem, como ele diz no filme, cultivadas, melhoradas, e que acabaram por ser desprezadas pelos seus pares.
[Excerto de “Os Abismos da Meia-Noite]
https://youtu.be/EpPaXC84xf8
Ele também é prejudicado politicamente, por nunca ter sido uma pessoa de partidos, de ideologias, de clubes, de capelinhas. Há uma parte no filme onde ele diz que é “um anarquista místico”, o tipo de afirmação que pode desagradar a muita gente, da esquerda à direita.
Sim, este esquecimento dele passa também um bocado por esse tipo de anarquismo que não se revê nas lutas ideológicas dos colegas, ou até naquela questão deles estarem muito ligados a um cinema militante, seja a Nouvelle Vague, seja o neo-realismo, enquanto o Macedo vê o cinema como arte cinematográfica. No “Sete Balas para Selma”, por exemplo, a preocupação dele é criar sequências de acção num país que não tem nada daquilo, fazer essas experiências sem se preocupar com o que as pessoas estão a pensar ou não, numa lógica de comunicação com o público, de criar uma coisa que hoje não existe: uma ligação do público português com o cinema português.
[Excerto de “Sete Balas para Selma”]
O António Macedo nasce para o cinema na geração do Cinema Novo, e faz aquele que é um dos grandes filmes dessa geração, o “Domingo à Tarde”. Acha que ele depois se tornou um dissidente desse movimento?
Não o vejo como um dissidente, houve um altura em que ele até acreditava, mas no “Sete Balas para Selma” já está a mandar uma mensagem aos colegas, “É pá, nós não estamos no mesmo barco, por isso escusam de contar comigo para as vossas aventuras”. É um exílio forçado, de certa forma. Pelas coisas que eu li, já no “Domingo á Tarde” se notava que ele estava um pouco avançado, e portanto começou a haver logo ali uma certa divisão. O único cineasta que eu vejo hoje como quase um sósia do Macedo é o Edgar Pêra, porque continua a tradição do experimentalismo, continua a tentar de tudo a fazer de tudo, a experimentar tudo, e sempre numa lógica de trabalhar a cultura portuguesa.
[Excerto de “Domingo à Tarde”]
https://youtu.be/zHzhAfs8Zzc
O que o António de Macedo sempre fez.
Os filmes fantásticos dele, seja “O Princípio da Sabedoria”, seja “Os Abismos da Meia-Noite”, seja “Os Emissário de Khalom”, não imitam os americanos. São filmes cuja base têm a ver com a cultura portuguesa: com poemas medievais, com lendas, com passados coloniais, etc.
Houve pessoas que não quiseram dar depoimentos para o filme, que disseram que se recusavam a falar sobre o António de Macedo?
Houve de tudo. Eu comecei a fazer este filme em 2009, e de então para cá, a Cinemateca já lhe dedicou uma retrospectiva e a forma das pessoas olharem para ele mudou um bocadinho. Mas nessa altura o Macedo era o velhinho maluco do esoterismo e de quem as pessoas tinham vergonha de dizer que até gostavam dos filmes dele. Eu reparei nisso nalguns meios cinéfilos, onde as pessoas quando percebiam que eu estava a falar a sério, me diziam: “´Que bom trabalho, acho que ele merece.” Mas diziam baixinho. Eu contactei gente que não quis falar, apresentando desculpas esfarrapadas mas que obviamente eu respeito. Houve outras pessoas que me fizeram perder tempo porque estavam muito desconfiadas e nunca me chegaram a dizer se sim ou se não. E houve outras que não quiseram ser filmadas mas que se encontraram comigo para falar, parecia um bocado os “Ficheiros Secretos”, a certa altura. Mas a maior parte deles, e aqueles que eu achava que poderiam não querer falar, acabaram por o fazer.
[Excerto de “Os Emissários de Khalom]
https://youtu.be/wzc4ssOfSX8
Como por exemplo?
Pessoas como o António-Pedro Vasconcelos, que tem aquele passado de ataque ao Macedo. Houve quatro pessoas com as quais, por razões óbvias, porque já não estão entre nós, não pude falar: o João César Monteiro, o João Bénard da Costa, o Eduardo Prado Coelho e o Paulo Rocha, que surge em imagens de arquivo de um programa que o António de Macedo fez para a RTP, “A Profissão de Produtor em Portugal”. O único que esta fora do contexto é o Bénard da Costa, num programa sobre a Gulbenkian, onde ele descrevia a formação do Centro Português de Cinema. Fazia sentido incluir aquilo para perceber o que era essa instituição.
Não é chocante o facto do António de Macedo ter sido vítima de censura de gosto em democracia, quando passaram a ser-lhe recusados apoios, só por ele ser o cineasta que é e fazer o tipo de filmes que faz?
Dizer mal do Macedo tornou-se um hábito, era uma coisa que toda a gente fazia. E cada nova pessoa que chegava ao meio cultural tratava o Macedo como um mentecapto. Isso faz-me muita confusão, porque por exemplo, as entrevistas que lhe faziam não eram entrevistas, eram discussões. E até ao fim da carreira dele. Há uma entrevista, feita creio que pela Clara Ferreira Alves, quando da estreia de “Os Abismos da Meia-Noite”, onde lhe é perguntado: “Que coisa pirosa era aquela que você pôs ali?”. Não imaginamos ninguém a fazer essa pergunta ao Manoel de Oliveira ou a outro cineasta qualquer. E o número da “Cinéfilo” dedicado ao “A Promessa” é fantástico, a primeira parte é uma entrevista conduzida pelo Fernando Lopes e a segunda é uma discussão aberta entre ele e o António-Pedro Vasconcelos. Como diz o José de Matos-Cruz no filme, era um hábito dizer mal dele.
[Excerto de “Chá Forte com Limão”]
E esse hábito prolonga-se…
E acaba por ter consequências. Penso que as pessoas que lhe recusaram constantemente subsídios se calhar nem conheciam a obra dele. Não sabiam que aquela pessoa tinha sido, entre outras coisas, um dos fundadores do Cinema Novo, o primeiro a competir em Cannes e em Veneza, na altura…
O que também suscita invejas, não é?
Acho que no início do filme fica bem patente que o António de Macedo vem de outro tipo de cultura, de outro tipo de DNA. Não é aquela cultura tipicamente portuguesinha da inveja, da calúnia, do boato. E a geração do Cinema Novo estudou toda fora de Portugal, e o António de Macedo era arquitecto na Câmara de Lisboa. Portanto, nos primeiros tempos, os colegas referiam-se a ele como “o arquitecto Macedo”. Como que a dizer, “Calminha aí, que este tipo não estudou cinema e provavelmente não há-de durar muito tempo.” Isto quando ele dominava o meio tão bem como qualquer um deles. Só que de forma completamente diferente. Até escreveu um livro teórico sobre cinema. O contributo dele para o cinema é grande e muito variado. E por exemplo, quando da fundação do Centro Português de Cinema, na qual ele teve um papel preponderante, quando foi decidido que o primeiro filme ia ser do Manoel de Oliveira, para ele continuar a carreira, o António de Macedo não levantou ondas nenhumas, independentemente de não ser um fã do Oliveira. Mas assim que o Macedo filma “A Promessa”, cai-lhe tudo em cima! E ele aguentou uma carreira inteira a levar pancada de todo o lado, dos críticos, dos políticos, da igreja por causa do “As Horas de Maria” e continuou sempre a prosseguir o objectivo de filmar. Custa muito viver num país que se dá ao luxo de desprezar, ou pior, de esquecer, certos autores.
[Excerto de “A Promessa”]
Começou a fazer “Nos Interstícios da Realidade” em 2009 e até chegou a recorrer ao “crowdfunding” para o financiar. Pediu apoios oficiais? Foram-lhe recusados, como sucedeu ao seu biografado?
Eu concorri aos apoios oficiais, mas tinha um grande “handicap”: não tinha experiência de fazer filmes, só de organizar festivais, e o projecto acabava sempre por ser interessante para os júris, mas depois a pontuação não chegava. Nem com uma produtora associada, como é o caso da Black Maria, a coisa mudou. O “crowdfunding” resultou de um concurso feito pelo Indie. Na altura, a Gulbenkian também entrou com dinheiro e começou tudo a mudar um pouco. Virámo-nos também para a RTP. O lógico era vender o filme à RTP e tentar aceder ao arquivo, porque o Macedo também fez muita coisa para a televisão. Mas com toda esta instabilidade política, sempre que íamos à RTP e estávamos quase a assinar um contrato, a direcção demitia-se, ou era demitida, e voltava tudo à estaca zero. No ano passado, finalmente fechámos contrato e tivemos acesso a todo aquele manancial de imagens. Foi então que vi que todos os filmes do Macedo davam uma notícia na televisão. O que torna ainda mais chocante que as pessoas se tenham esquecido dele.
[António de Macedo fala sobre o seu filme “Nojo aos Cães”]
Verdade, há muita gente que não sabe quem ele é.
Há, pois. Quando eu dizia às pessoas que ia fazer um filme sobre o António de Macedo, na imaginação delas, ele era um radialista. E é incrível, porque por exemplo, o escândalo que houve com o “Branca de Neve”, do César Monteiro, não foi nada comparado o escândalo que deu “As Horas de Maria”, em 1979. A igreja perseguiu o filme, houve cerco e pancada à porta do cinema, campanhas nos jornais, ameaças, etc. Nunca um filme português ou estrangeiro sobre religião, deu tanta confusão cá. E mesmo assim, é como se o António de Macedo tivesse ficado invisível.
Tirando o Edgar Pêra, de quem já falou, o António de Macedo tem herdeiros? Todos estes jovens cineastas que hoje fazem curtas fantásticas e de terror, que depois passam no MOTELX, são herdeiros dele, mesmo que não saibam quem o Macedo é?
Acho que há alguns realizadores de longas-metragens que são herdeiros dele sem o saberem. Qualquer pessoa que faça um filme de “zombies” é herdeira do George Romero, quer queira, quer não. Ou quer tenha visto algum filme do Romero ou só visto “zombies” em terceira ou quarta mão. Acho que o Edgar Pêra é um filho legítimo do António de Macedo. O Tiago Guedes também. Todas as pessoas que tentam fazer um filme fantástico em Portugal são, de certa forma, filhos dele, inscrevem-se numa herança que ele começou e praticou. Mas também passa tudo por alguém disponibilizar os filmes dele em DVD, porque não há praticamente nada. Valia a pena haver uma caixa de DVD com a obra dele, como o César Monteiro e o Oliveira têm. Hoje, só podemos ver os filmes do Macedo no YouTube, graças a umas almas caridosas. Só arranjei imagens dos filmes dele para usar no documentário, graças à retrospectiva da Cinemateca, para a qual foram restaurados. Porque as cópias de muitos deles já não estavam em condições.