A violação dos regulamentos foi um elefante pequenino numa sala que aplaudiu de pé a atribuição do prémio Direitos Humanos a António Guterres. Ferro Rodrigues, presidente do Parlamento e anfitrião, disse acreditar que Guterres é o indicado para dar “razão e coração” aos líderes mundiais, na recuperação de um slogan de campanha do socialista em 1995. A cerimónia foi cheia de “coração” no regresso do filho pródigo ao Parlamento, mas o presidente da comissão de Assuntos Constitucionais, Pedro Bacelar de Vasconcelos, continuou sem justificar a “razão” do Parlamento ter furado as regras para esta distinção. À plateia pouco importava e, através de palmas, pareceu recuperar o entusiasmo de Valentim Loureiro quando também em meados da década de noventa gritou, embora de forma involuntária: “Guterres, Guterres, Guterres.

Guterres é mais que consensual. É unânime. O prémio Direitos Humanos 2016 foi, aliás, decidido por unanimidade, através de uma comissão de deputados, com membros das seis bancadas parlamentares. A forma como o prémio foi atribuído ultrapassou os regulamentos. Que são claros. O prémio Direitos Humanos só pode ser atribuído em duas situações: “Alto mérito da atividade de organizações não governamentais; ou original literário, científico, designadamente histórico ou jurídico, jornalístico ou audiovisual, qualquer que seja o respetivo suporte, divulgado em Portugal no período a que respeita.” Guterres não se enquadra em nenhum dos dois, como noticiou o Observador na quarta-feira.

Na altura, o presidente da comissão que decidiu o prémio, Pedro Bacelar Vasconcelos, mostrou-se indignado por o prémio estar a ser questionado e disse que “foi atribuído pela exemplaridade da defesa dos Direitos Humanos, através da instituição a que ele esteve ligado mais recentemente.” Chamou “idiota” a quem reclamou e remeteu esclarecimentos para os serviços de apoio à comissão.

Agora, na cerimónia, voltou a falar para justificar a atribuição do prémio. Mas voltou às imprecisões. Pedro Bacelar de Vasconcelos afirmou nesta sexta-feira que “no passado inúmeras associações e personalidades foram distinguidas”. Na mesma intervenção, destacou entidades como “a AMI, a Amnistia Internacional, a Rede Europeia contra a Pobreza, a Comissão Nacional Justiça e Paz ou o movimento lançado por Jorge Sampaio para apoiar os estudantes sírios”. Disse depois que já “várias personalidades foram distinguidas” com este prémio. O que é errado: desde que o prémio foi criado, esta é a primeira vez que foi atribuído a uma personalidade. O que existiu foi a atribuição de medalhas de mérito, que são decididas em paralelo, com o prémio, sendo que este ano não foi atribuída qualquer medalha.

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Pedro Bacelar Vasconcelos enumerou depois figuras como “Mário Soares, Maria Lamas, o bispo D.Basílio Nascimento, Sérgio Vieira de Melo, Fernando Nobre, Francisco Sá Carneiro. Personalidades que, mais do que o seu nome ou a sua pessoa, pela atividade que exerceram mereceram o destaque que a Assembleia lhe entendeu reconhecer e constituem.” Novamente, confusão. É verdade que todas estas personalidades receberam uma distinção parlamentar — mas a medalha, não o prémio Direitos Humanos.

O presidente do júri do prémio ainda tentou justificar (sem êxito) o facto de o prémio furar os regulamentos, dizendo que não é atribuído pelo trabalho de António Guterres como “antigo Alto Comissariado para os Refugiados das Nações Unidas”, nem na qualidade de “futuro secretário-geral”, mas pela “atividade exemplar [ao longo da sua vida] na promoção da paz, pela solidariedade entre os povos e pela proteção dos Direitos Humanos.” Facto: continua a não estar conforme com os regulamentos.

António Guterres — a quem o processo de escolha terá passado ao lado — recebeu depois o prémio das mãos de Ferro Rodrigues e entregou o valor pecuniário, de 25 mil euros, de imediato ao Conselho Português para os Refugiados.

Guterres propõe Portugal líder mundial da defesa dos Direitos Humanos

Quanto ao discurso, António Guterres centrou-se naquela que tem sido, de facto, a sua luta nos últimos anos: a defesa dos Direitos Humanos. No início do discurso, recusou-se a nomear, um a um, os presentes, justificando que o fazia para “não se esquecer de ninguém”. Fez ainda questão de agradecer a “elevada solidariedade” de Portugal na sua candidatura, não deixando mil obrigados, mas quatro: “Muito, muito, muito, muito obrigado.”

Guterres lamentou depois, durante o discurso, que a defesa dos Direitos Humanos esteja hoje “muito em regressão“, depois de nos anos 90 ter tido “um claro progresso“. Isto porque, “progressivamente, a reafirmação da soberania nacional tem vindo a limitar cada vez mais a capacidade de afirmação dos Direitos Humanos”, que depois “se traduz em realidades profundamente chocantes: violações sistemáticas do Direito Internacional Humanitário, com crimes de guerra, crimes contra a Humanidade, violações dos Direitos Humanos por toda a parte do mundo e, mais recentemente, violações até do próprio Direito Internacional dos Refugiados (DIR)”.

O designado secretário-geral da ONU lembrou ainda que, nos dez anos em que foi Alto Comissário para os Refugiados das Nações Unidas, “no essencial o DIR era respeitado — as fronteiras estavam praticamente todas as abertas”. No entanto, “não vivemos hoje a mesma situação”: “A partir do fim do ano passado, início deste ano, assistimos progressivamente a fronteiras fechadas, a pedidos de asilo rejeitados e houve uma clara violação do regime internacional de proteção”. Levando, inclusive, “a situações tão dramáticas como a da Síria, em que as pessoas não conseguem sair”.

Para Guterres, neste contexto, “é muito importante refazer a aliança à escala global capaz de repor a agenda dos Direitos Humanos numa dinâmica positiva de afirmação e restabelecer a integridade do Regime Internacional de Proteção dos Refugiados”. E, acredita o designado secretário-geral das Nações Unidas:

Portugal está particularmente bem colocado para se colocar no centro da mobilização dessa aliança. Em primeiro lugar, porque Portugal é um país exemplar em matéria de respeito dos Direitos Humanos, a nível do Estado e da sociedade. E, em segundo lugar, no caso específico dos refugiados, Portugal tem tido um comportamento extremamente positivo, representando um exemplo muito importante, relativamente àquilo que foi a incapacidade da Europa de se mobilizar para cumprir o Direito Internacional.”

O antigo primeiro-ministro lembrou que Portugal assumiu “responsabilidades para além do que a União Europeia pedia e que muitos países europeus rejeitaram.” Ora, isso dá a Portugal “autoridade moral para procurar mobilizar um conjunto alargado de Estados para que a agenda dos Direitos Humanos volte a progredir.

António Guterres diz que há duas condições fundamentais para que os Direitos Humanos voltem a estar na agenda mundial: “Que se reconheçam como direitos humanos os direitos económicos, sociais e culturais; e a garantia de que se promovem os Direitos Humanos como um valor em si próprio e não como um instrumento de outros objetivos políticos, que naturalmente desacreditam a autenticidade da luta pelos Direitos Humanos.”

Razão e coração de Ferro Rodrigues

O presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, falou ainda antes do antigo primeiro-ministro para destacar que a candidatura de Guterres a secretário-geral das Nações Unidas “foi um fator de união para os 230 deputados à Assembleia da República”, para quem era óbvio que o socialista era “o homem certo, no lugar certo e no tempo certo”. Segundo Ferro, “o que era óbvio para Portugal tornou-se óbvio para o mundo”.

O presidente do Parlamento lembrou ainda que “o trabalho realizado em prol da causa dos refugiados foi unanimemente reconhecido pela AR, ainda antes de sabermos o resultado da candidatura a secretário-geral da ONU”. Ferro Rodrigues avisou o amigo Guterres que o esperam tempos difíceis, em que “as democracias e os Direitos Humanos parecem estar em refluxo depois de décadas de grande expansão” e “em que o Direito Internacional, as organizações multilaterais e a prevenção dos conflitos estão ameaçados pelo espectro do regresso ao equilíbrio de poderes e às esferas de influência”.

Ferro Rodrigues recuperou depois o slogan da campanha de António Guterres a primeiro-ministro em 1995, afirmando:

As pessoas também vivem de sonhos e de esperança. Assim surjam líderes capazes de lhes falar à razão e ao coração. Ora, se há alguém capaz de fazer a síntese entre a razão e o coração é António Guterres.

Para o presidente da AR, Guterres é “o homem certo para dar força ao Direito Internacional e conquistar as pessoas para uma cidadania global.”

O primeiro-ministro, António Costa, e o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, também estiveram presentes, bem como o ex-Presidente da República Jorge Sampaio, e diversas outras entidades.