Há os factos. São o que são. Depois há aquilo que os políticos dos vários partidos dizem dos factos. São as interpretações à luz de um certo posicionamento. Agora há os factos reconstruídos pelos políticos, esses mesmos, os factos alternativos. Andam nas margens da verdade ou são mesmo mentira e vão funcionando enquanto houver quem acredite (ou quem nem queira saber se os políticos manipulam muito ou pouco os factos). Esta quarta-feira, António Costa tentou reconstruir a sua “narrativa” sobre a Caixa Geral de Depósitos no debate quinzenal no Parlamento com factos alternativos e nenhum deputado lhe disse que mentia, depois de ter sido acusado em debates mais recentes de ter faltado à verdade.
A performance de António Costa foi a de um perito nas artes políticas, mas, neste caso, no que a retórica parlamentar e a tática comunicacional têm de pior. A notícia do Público sobre o escândalo das offshores — um caso gravíssimo em que a Autoridade Tributária fechou os olhos no tempo do Governo de direita –, oferecia-lhe a cortina de fumo ideal que permitia atacar o adversário sem que estivesse como um pato parado no lago, à espera de todos os tiros por causa da Caixa Geral de Depósitos. Assunção Cristas levantou a hipótese de a notícia ter sido “plantada” no momento ideal.
Depois, foi clara e demasiado explícita a maneira como se antecipou à polémica em que estava sob fogo. Sem que ninguém lhe perguntasse, pegou no acordão do Tribunal Constitucional sobre a entrega das declarações dos administradores da Caixa Geral de Depósitos e disse que, “quanto a dúvidas em matéria de transparência”, aquela peça jurídica tornava “claro” que “nunca esteve em causa a transparência” no caso da equipa de António Domingues. O primeiro-ministro vincou que o acórdão dizia” em itálico”, que a exceção ao Estatuto do Gestor Púbico não isentava os administradores da Caixa dos deveres declarativos da lei de 1983.
A recriação dos factos é esta: Costa tentou dizer que o TC lhe deu razão “por unanimidade”, apesar de — quando rebentou a polémica — ele próprio ter afirmado que era ao TC que cabia a interpretação da lei. Em Outubro, o primeiro-ministro afirmou: “Essa é uma questão que a CGD saberá responder e que o Tribunal Constitucional saberá apreciar”. Ou seja, Costa argumentou que o Constitucional hoje lhe deu razão quando disse há meses que a razão estaria com a interpretação que o Constitucional viesse a fazer.
A habilidade não passou despercebida. Desta vez, Pedro Passos Coelho teve golpe de rins para ir a jogo. Primeiro, no terreno do jogo puramente político percebeu o dano que o caso das offshores lhe podia causar e também jogou na antecipação: “Hoje, na oposição, estou interessado em que se apure tudo o que se passou”. Foram 10 mil milhões de euros colocados no estrangeiro sem que a Autoridade Tributária registasse. Claro que a jogada do líder do PSD era no sentido de aproveitar a força do adversário para o derrubar. Afinal, todo aquele amor pela transparência no caso das offshores tinha também a ver com a Caixa. “Faremos na oposição o contrário do que os senhores estão a fazer relativamente à CGD onde existe uma plena ocultação e violação ate das regras mais básicas de transparência”, alegou Passos.
Em segundo lugar,o líder do PSD tocou no ponto sensível que António Costa tinha deixado a descoberto em relação ao Tribunal Constitucional: “Uma vez que veio citar o Tribunal Constitucional sobre as declarações de rendimentos, se esta interpretação é tão óbvia, porque é que o Governo não disse desde então, com clareza, que essas declarações deviam ser apresentadas e o secretário de Estado disse o contrário?”
Foi a seguir, em resposta a Passos Coelho, que António Costa voltou a criar mais um facto alternativo à realidade conhecida dos últimos meses. Com esta frase, o primeiro-ministro meteu Marcelo ao barulho e misturou a opinião do Presidente com as ambiguidades do Governo:
Desde a primeira hora que tenho explicitado, como aliás o senhor Presidente da República também fez, que nunca houve da parte do Governo ou da parte do senhor Presidente qualquer dúvida que a exceção ao Estatuto do Gestor Público em nada exclui a obrigação de apresentar as declarações. Aliás, essa dúvida não foi suscitada por nenhum deputado na AR quando apreciou o diploma. O que aqui foi debatido foi o montante dos vencimentos.”
Com esta declaração, o primeiro-ministro omitiu que as primeiras reações oficiais do Governo tinham sido no sentido de dizer que os administradores da Caixa estavam isentos de apresentar as declarações. Ou até que o ministro das Finanças, Mário Centeno, admitiu que tinha gerado um “erro de perceção mútuo” no presidente da Caixa sobre a entrega das declarações de património e rendimentos.
Caixa. Governo nunca teve dúvidas sobre a entrega das declarações de rendimentos dos gestores ao TC?
Passos acusou-o no fim: “De cada vez que fala vai-se contradizendo. Só gera desconfiança”. Costa reagiu sem argumentos. Disse que o líder do PSD era um “pessimista irritado”. Pedro Passos Coelho mantém o erro de se recusar a usar todo e qualquer argumento fornecido pelo Presidente da República. Tinha à disposição a confiança condicionada no ministro, e os termos do comunicado presidencial. Não aproveitou. Nem o CDS o fez.
A esquerda tinha puxado outros temas como o Novo Banco, no caso do Bloco de Esquerda, da central nuclear de Almaraz no caso d’ Os Verdes e do preço do gás no caso do PCP. Mas António Costa voltaria a resvalar no confronto com Assunção Cristas. Não se sabe se por lapso ou deliberadamente, o primeiro-ministro justificou o fim da revisão trimestral do Imposto sobre os Produtos Petrolíferos e Energéticos (ISP) com o “gasóleo profissional”. Nunca o tinha feito.
Em 2016, introduziu-se uma medida de revisão trimestral, que foi uma medida transitória até à introdução do combustível profissional. Palavra dada palavra honrada. Fizemos a revisão trimestral ao longo de 2016 e introduzimos o gasóleo profissional. Em 2017, o OE, como bem sabe, não prevê qualquer revisão trimestral porque prevê a manutenção do gasóleo profissional.”
Se alguma vez o Governo usou este argumento, foi discreto. As justificações sobre a criação do ISP nunca falaram do gasóleo profissional, como se pode ver neste fact check do Observador. Noutra resposta, neste caso a Jerónimo de Sousa, sobre o elevado preço do gás de botija, o primeiro-ministro voltou a não ser rigoroso. Disse que, este ano, o aumento da energia tinha sido o mais baixo de sempre. Também não é verdade, como se pode ler, mais uma vez, neste fact check do Observador.
O aumento da eletricidade este ano foi o mais baixo de sempre?
António Costa desencontrou-se com a verdade pelo menos por três vezes ao longo do debate. Num dos casos, o mais grave, tentou refazer a história. Na verdade, mentiu sobre a Caixa. Um primeiro-ministro que permaneça muito tempo a distorcer e a manipular os factos para além do que é aceitável em política não costumava ter grande futuro. Mas no tempo da política da “pós-verdade” e dos “factos alternativos” talvez seja uma garantia de longevidade.