António Costa respondia ao desafio do PSD – que não deixa cair a polémica em torno da Caixa Geral de Depósitos (CGD) – esta quarta-feira, em pleno debate quinzenal. O primeiro-ministro garantiu que para o Governo foi sempre claro e explicitado que “nunca” houve “qualquer dúvida” que os gestores da Caixa estavam obrigados a apresentar as declarações no Tribunal Constitucional. E que as alterações ao Estatuto dos Gestor Público (EGP) nunca estiveram centradas na obrigatoriedade da entrega das declarações de rendimento e património dos novos administradores da Caixa Geral de Depósitos junto do Tribunal Constitucional.

O primeiro-ministro foi taxativo: nem o Governo, nem o Presidente da República alguma vez duvidaram da obrigação da equipa de Domingues de submeter à análise dos juízes-conselheiros os seus rendimentos.

O que está em causa?

A polémica em torno da Caixa Geral de Depósitos voltou a motivar troca de acusações entre a oposição e o Governo. Desta vez, no entanto, foi a vez de Pedro Passos Coelho assumir o contraditório. António Costa, em resposta às dúvidas levantadas por Catarina Martins, tinha citado o acórdão do Tribunal Constitucional para garantir que o Governo nunca teve dúvidas sobre a obrigatoriedade dos gestores da Caixa de apresentarem as declarações de rendimentos junto do Constitucional. Perante isto, Passos questionou:

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Se a interpretação é tão óbvia porque é que o Governo não foi pronto a fazer esse esclarecimento quando foi publicado o decreto-lei? E porque é que o secretário de Estado das Finanças disse exatamente o contrário?”

O líder do PSD iria mais longe, acusando o Governo de “falta de clareza” e de estar mergulhado em “contradições”. E disparou contra Centeno: “Há dúvidas que cheguem que o ministro das Finanças tenha respondido com verdade à Comissão de Inquérito”.

Na resposta, o primeiro-ministro acusou Passos Coelho de “estar desatento”, e foi perentório: “Desde a primeira hora” defendeu a obrigatoriedade de apresentação dessas declarações, associando o chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa, a essa interpretação.

Nunca houve da parte do Governo ou do Presidente da República qualquer dúvida que a exceção ao estatuto do gestor público em nada excetua quanto à obrigação de apresentar declarações”, disse o primeiro-ministro aos deputados.

E quais são os factos?

O Observador já aqui tinha passado em revista as várias datas fundamentais para perceber o desenrolar do caso. Algumas dessas datas são igualmente importantes neste caso:

8 de junho. O Governo aprovou alterações ao Estatuto do Gestor Público que permitiam acabar com os tetos salariais na Caixa Geral de Depósitos. A decisão foi logo polémica, mas centrada nos vencimentos, levando o Presidente da República, defensor de salários menos elevados, a justificar-se quando promulgou o decreto.

30 de junho. Marcelo Rebelo de Sousa acabaria por revelar, numa nota de promulgação, que tudo partia de uma exigência dos novos administradores, assumindo que foi “no quadro da preparação e negociação desse plano [de reestruturação e de capitalização], ainda em curso, que surgiu este decreto, apresentado pelo Governo como necessário para a entrada em funções de nova administração”. Nesta altura, a questão colocava-se apenas no plano dos salários elevados e não da entrega de declarações de rendimentos no Tribunal Constitucional, que só surgiria mais tarde.

23 de outubro. O ex-líder do PSD e comentador Luís Marques Mendes lança a bomba no seu espaço semanal na SIC: “Os gestores públicos, todos eles, estão obrigados, no início de funções, a fazer três declarações: uma para o TC, outra para a PGR e uma terceira para a Inspeção Geral de Finanças. Isto aplica-se a todos os gestores públicos. Pois bem, o Governo ‘desobrigou’ os gestores da Caixa destas três exigências. Apesar da linguagem hermética do decreto-lei, é isso, na prática, o que lá está”. O comentador colocou então dois cenários: “Ou isto é um lapso e tem de ser corrigido ou isto é intencional e é gravíssimo”.

25 de outubro. Aqui começam as contradições na versão apresentada esta quarta-feira por António Costa. Depois do comentário dominical de Marques Mendes, uma fonte oficial do Ministério das Finanças responde ao Observador (e a outros órgãos de informação), na terça-feira seguinte, que “a ideia é a CGD ser tratada com qualquer outro banco”.

A nota do gabinete de Mário Centeno é clara: “Essa foi a razão para que fosse retirada do Estatuto do Gestor Público. Está sujeita a um conjunto de regras mais profundo, como estão todos os bancos. Não faz sentido estar sujeita às duas coisas. Não foi lapso. O escrutínio já é feito“.

Este comunicado oficial a reagir ao lapso sugerido por Marques Mendes seria interpretado como uma posição das Finanças a dizer que os administradores não estavam sujeitos às regras de transparência dos gestores públicos. Ou seja, não teriam de entregar as declarações.

26 de outubro (1ª parte). Esta data é igualmente importante. Em declarações ao Diário de Notícias, à margem dos trabalhos da comissão parlamentar de Orçamento e Finanças, o secretário de Estado Adjunto, do Tesouro e das Finanças, Ricardo Mourinho Félix, explicou o seguinte:

Sim, foi intencional, sabíamos que isto [o fim do escrutínio público dos rendimentos dos novos gestores da CGD] seria uma consequência da sua retirada do Estatuto do Gestor Público”

E continuava: foi “uma solução combinada” com a Direção Geral da Concorrência da Comissão Europeia e o objetivo era o de equiparar a CGD a um banco privado e equiparar os gestores da CGD a gestores de um banco privado.”

Como todos os outros gestores bancários privados, os gestores da CGD terão obrigações de escrutínio de idoneidade maiores do que os políticos ou os titulares de altos cargos públicos”. Mas com uma diferença: “Não haverá acesso do público em geral às suas declarações de rendimentos. Será um processo entre o gestor e o regulador [Banco de Portugal]”.

No mesmo dia, e mais uma vez em resposta ao DN, o gabinete do ministro das Finanças emitiu uma nota acrescentando outro dado: a equipa de António Domingues estava “disponível para revelar essa informação [os seus rendimentos] ao acionista”. Ou seja, apenas e só ao Governo.

26 de outubro (2ª parte). No entanto, o jornal Público tinha dado conta, através de um esclarecimento do Tribunal Constitucional, que existia uma lei de 1983 que obrigava os novos administradores da Caixa a apresentar as declarações de rendimentos. Isto, independentemente das alterações introduzidas ao Estatuto de Gestor Público. E Mourinho Félix é obrigado a ser mais cauteloso.

Escreve o Diário de Notícias no mesmo artigo já citado: “A situação voltou a mudar ao fim da tarde. O Executivo, novamente através de Mourinho Félix, reconhecia ao DN que afinal [à luz da lei de 1983] os novos dirigentes do banco público poderiam mesmo ser obrigados a entregar no Tribunal Constitucional uma declaração de rendimentos”.

O mesmo jornal cita Ricardo Mourinho Félix: “Se eles [os novos administradores da CGD] tiverem de entregar de acordo com essa lei então terão de entregar”.

A partir deste momento, os socialistas alinharam-se e começaram a defender abertamente que António Domingues e restante equipa deviam apresentar as declarações de rendimentos junto do Tribunal Constitucional.

28 de outubro. No final de uma homenagem ao antigo vereador da Câmara de Lisboa e ex-dirigente do CDS-PP Pedro Feist, António Costa invocou o princípio de separação de poderes e remeteu o caso para o Tribunal Constitucional. Disse o primeiro-ministro: “Compete ao Tribunal Constitucional apreciar se são devidas. E compete aos próprios [administradores da CGD] saberem se sim ou não”.

O primeiro-ministro continuava: “Essa é uma questão que a CGD saberá responder e que o Tribunal Constitucional saberá apreciar. No que diz respeito às obrigações do Conselho de Administração em relação ao acionista, o Estado, essas estão cumpridas”.

E mais: “Se há valores legais a cumprir, há que cumpri-los“. Perante a insistência dos jornalistas, o primeiro-ministro acabaria por, de forma velada, pressionar Domingues a entregar as declarações de rendimentos. “A única coisa que posso dizer é que eu apresentei a minha declaração”.

Nessa declaração-chave, António Costa nunca diz, de forma clara, qual a sua interpretação da alteração legislativa feita pelo seu próprio Governo. Remete para a interpretação legal de outros organismos, mas não explicita qual foi a sua intenção com a publicação da exceção ao EGP.

4 de novembro. No auge da polémica, e com os gestores da CGD a recusarem-se a entregar a declaração de rendimentos, o Presidente da República veio esclarecer que o novo estatuto a que está sujeito o banco público “nada diz sobre o dever de declaração de rendimentos e património ao Tribunal Constitucional“, logo, devia ser respeitada a lei n.º4/83, que obriga todos os responsáveis de altos cargos públicos à entrega de declaração de rendimentos.

7 de novembro. Em entrevista ao Diário de Notícia e à TSF, Pedro Nuno Santos defende que os gestores da Caixa “têm de apresentar a declaração de rendimentos porque a lei de 83, aliás invocada pelo Presidente da República ainda na sexta-feira, diz isso mesmo e essa não foi alterada e portanto há um conjunto de outras matérias, nomeadamente do ponto de vista remuneratório que não se aplica”.

17 de fevereiro. O caso arrasta-se, com avanços e recuos, com divulgação da troca de correspondência trocada entre António Domingues e Mário Centeno — emails e SMS que deixam o homem das Finanças de António Costa numa situação delicada. O ministro iria a Belém, por vontade expressa de Marcelo Rebelo de Sousa — que tinha visto as mensagens trocadas entre Domingues e Centeno e não gostou — e o Presidente da República convidou-o a explicar-se ao país.

Na conferência de imprensa, Centeno fez o mea culpa possível. Fala na existência de um “erro”, admitindo que pode ter levado Domingues a pensar que não tinha de apresentar as declarações. Esta frase do ministro das Finanças também desmente aquilo que António Costa garantiu esta quarta-feira no Parlamento:

Ao analisar todo este longuíssimo e complexo processo, admito que possa não ter afastado do entendimento do dr. António Domingues, por eventual erro de perceção mútuo, a ideia de que o acordo poderia cobrir de alguma foram a eliminação do dever de declaração”.

Essa segunda-feira terminaria com uma nota politicamente assassina de Marcelo Rebelo de Sousa que sugere que aceitou a confiança manifestada por Costa no ministro das Finanças em nome do “estrito interesse nacional“.

Até que a 17 de fevereiro, o Tribunal Constitucional acaba com todas as dúvidas que pudessem restar: os gestores da Caixa Geral de Depósitos estão obrigados a apresentar a declaração de rendimentos e património no Tribunal Constitucional. O acórdão foi aprovado por unanimidade a 1 de fevereiro.

Conclusão

O Governo teve, de facto, a intenção de isentar a equipa de António Domingues de entregar as declarações de rendimentos junto do Tribunal Constitucional. E há sobretudo três momentos fundamentais que o demonstram:

  1. Quando o Ministério das Finanças reage, de forma oficial, garantido que as novas condições dos administradores da Caixa Geral de Depósitos não tinham sido um “lapso”.
  2. No momento em que Ricardo Mourinho Félix disse, em declarações ao Diário de Notícias, diz que o novo quadro de obrigações era “intencional”.
  3. E quando Centeno fala no “eventual erro de perceção mútuo”, admitindo que levou Domingues a pensar que não tinha de entregar as declarações no TC.

Mesmo António Costa, numa fase embrionária da polémica, remeteu para o Tribunal Constitucional uma posição definitiva sobre o assunto. Não deu a sua interpretação. Pesando todos os factos e declarações públicas, o primeiro-ministro não pode dizer que nunca houve da parte do Governo “qualquer dúvida” sobre a entrega das declarações de rendimentos da equipa de António Domingues no Palácio Ratton. Só passou a fazê-lo bastante depois de a polémica ter rebentado.

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