As ruas da Venezuela vão ser esta quarta-feira palco daquela que já foi descrita como a “mãe de todas as manifestações”. Centenas de milhares de pessoas devem sair à rua, alimentado manifestações e contra-manifestações em várias cidades do país. Nicolás Maduro já prometeu uma reação implacável: convocou as Forças Armadas para as ruas de Caracas e vai armar meio milhão de civis como elementos da Milícia Nacional Bolivariana, um corpo de apoio às Forças Armadas que já conta com centenas de milhares de efetivos.

Os resultados deste barril de pólvora prestes a explodir podem ser desastrosos. Os Estados Unidos, de resto, já vieram alertar para a situação de “desastre” iminente na Venezuela, com a militarização de centenas de milhares de civis. O porta-voz do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos, Rupert Colville, interveio no mesmo sentido: “O que é preciso neste contexto de conflito é que se apazigue a tensão, e não que ela seja agravada, e quantas mais armas houver nas ruas mais possibilidades há de poderem ser usadas”.

RONALDO SCHEMIDT/AFP/Getty Images

Ainda antes desta manifestação de quarta-feria, onze países da América Latina pediram à Venezuela que “garanta” o direito a manifestações pacíficas. “Apelamos ao Governo da República bolivariana da Venezuela que garanta o direito de manifestação pacífica”, declararam a Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Honduras, México, Paraguai, Peru e Uruguai, num comunicado divulgado por Bogotá.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Nicolás Maduro, por sua vez, não está disposto a recuar um centímetro que seja: é preciso defender o país contra a “tentativa de golpe de Estado” em curso. “Todo este território tem que ser inexpugnável contra a agressão anti-imperialista”, afirmou o Presidente Venezuelano, numa comunicação que fez ao país.

“Não me intimidaram, nem me intimidarão jamais. Não é tempo de traição, que cada um se defina se está com a pátria ou contra ela. Não é tempo de traição, é tempo de lealdade”, afirmou Maduro.

JUAN BARRETO/AFP/Getty Images

Os protestos têm-se arrastado desde o início de abril, com registos de mortos e de vários detidos. Ninguém sabe exatamente o que vai acontecer esta quarta-feira. Em fevereiro de 2014, 43 pessoas foram assassinadas em violentos protestos contra o regime venezuelano. Com o escalar dos confrontos, não há qualquer garantia de que isso não venha de novo a acontecer, desta vez numa escala de dimensões ainda maiores.

A Mesa da Unidade Democrática, que constitui a maioria parlamentar e que convocou a manifestação, já prometeu que esta será a “mãe de todas as manifestações”. Isto num dia em que o país celebra o 207.º aniversário da revolução de 1810, que levou à independência do país.

O início do braço-de-ferro entre Maduro e a oposição

Em dezembro de 2015, o Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV) de Nicolás Maduro sofreu uma pesada derrota nas eleições legislativas de domingo, perdendo uma hegemonia que durava há 16 anos para a Mesa da Unidade Democrática (MUD). A coligação da oposição conseguiu 99 assentos — conquistando a maioria de dois terços — contra 46 do PSUV, do Presidente Nicolás Maduro, anunciou o Conselho Nacional Eleitoral.

Mesmo reconhecendo a derrota, o Presidente venezuelano encontrou uma forma alternativa de anular o poder da nova maioria parlamentar — pelo menos, é isso que sugere a oposição. Já depois das eleições legislativas, mas antes da tomada de posse da nova Assembleia Nacional, os deputados do PSUV nomearam 13 juízes efetivos e 21 suplentes para o Supremo Tribunal — todos homens leais a Maduro.

Com um Supremo altamente politizado, a maioria de dois terços da oposição a Maduro ficou praticamente sem margem para adotar iniciativas legislativas. Em março de 2016, o Supremo Tribunal da Venezuela chegou mesmo a assumir os poderes do Parlamento do país, por considerar que a Assembleia Nacional estava desacreditada depois de ter permitido a tomada de posse de três deputados (opositores de Maduro). Todas as iniciativas legislativas do Parlamento venezuelano foram anuladas pelo Supremo, com a oposição a denunciar aquilo que dizia ser uma tentativa de golpe de Estado.

A 1 de abril, no entanto, o Supremo Tribunal de Justiça reverteu a decisão que dissolvia a Assembleia Nacional, num gesto que foi entendido como um recuo de Maduro perante a pressão internacional. O recuo do Supremo não foi exatamente sinónimo de maior liberdade para a oposição. Antes pelo contrário.

O principal rosto da oposição, Henrique Capriles, por exemplo, foi proibido de exercer atividades políticas durante os próximos 15 anos por supostas irregularidades administrativas cometidas como governador do Estado de Miranda (no centro do país). Ele que em 2013 desafiou (e quase venceu) Maduro nas presidenciais: 49,07% contra 50,66%.

Leopoldo López, outra das principais figuras da oposição ao regime de Maduro, viu o Supremo Tribunal confirmar no início do ano a condenação a 14 anos de prisão depois de ter sido acusado de ter incitado os violentos protestos de 2014. López, tal como Capriles, são do centro-direita político e participaram em 2002 na tentativa de golpe de Estado contra Hugo Chávez. São apontados como possíveis candidatos às eleições presidenciais de 2018, onde se jogará o futuro do país.

AFP PHOTO / JUAN BARRETO (Photo credit should read JUAN BARRETO/AFP/Getty Images

Uma economia de rastos

A taxa de desemprego deverá ultrapassar os 28% na Venezuela este ano, quase quadruplicando face aos níveis que se registavam em 2015. É o resultado de uma recessão que a cada um dos últimos três anos se agravou: em 2016 o produto interno bruto (PIB) contraiu-se em 18% — não é uma recessão, já se trata de uma depressão.

A taxa de inflação poderá superar os 2.000% em 2018, segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), que fala numa “crise económica profunda” no país sul-americano, o país com as maiores reservas petrolíferas em todo o mundo. Os organismos públicos não publicam estatísticas desde o início de 2016.

Mas não é preciso muitos números para perceber a crise na Venezuela, porque há as histórias. E as histórias que vêm de Caracas dizem-nos que há mulheres que estão a fazer esterilizações para evitar ter mais filhos, porque há uma grande escassez de métodos contracetivos.

“Não conseguia encontrar a pílula, portanto engravidei de novo” há uns anos, contou uma habitante de Caracas a uma reportagem de uma rádio da Flórida, a WLRN. Para evitar ter mais filhos, e porque tem medo de não ter como os alimentar, pediu para ser esterilizada.

O colapso dos preços do petróleo, especialmente em 2015 e 2016, fez desaparecer os dólares na economia, o que ajuda a perceber a escassez de produtos. Por outro lado, o Governo está a tentar açambarcar os poucos dólares para pagar a dívida emitida na moeda norte-americana e evitar a bancarrota.

Estima-se que as importações tenham caído para metade entre 2016 e 2015. “Os números são piores do que uma economia em guerra”, afirmou Jose Manuel Puente, economista em Caracas, citado pela Bloomberg.

JUAN BARRETO/AFP/Getty Images