Poucas dúvidas restam de que o automóvel está prestes a entrar numa nova era, que representará uma completa revolução da indústria, impulsionada não só pelas energias alternativas e não poluentes, mas também pela afirmação do carro 100% autónomo. Sucede que isso tem implicações – e nem todas são positivas. Pelo contrário.

Thomas Frey, fundador do think tank DaVinci Institute, sedeado no Colorado (EUA), concentrou-se em antecipar o cenário que nos aguarda numa era em que os carros dispensem por completo o condutor. E concluiu que o sonho que representa, para alguns, a possibilidade de tirar as mãos do volante significará, para muitos outros, um pesadelo chamado desemprego.

Mas o investigador norte-americano, conhecido participante em palestras sobre o futuro das sociedades, não se fica pelos postos de trabalho que, a seu ver, estarão em risco no futuro. Também aponta uma série de outras coisas que tenderão a desaparecer e que, hoje, fazem parte da “paisagem” e da vida do dia-a-dia. Garantindo, desde já, que a transição promete ser tudo, menos suave… Mas vamos por partes, começando pelo fim.

O fim do homem-condutor

Quando estudos como os da conhecida agência financeira Morgan Stanley evidenciam que a utilização diária de um automóvel não ultrapassa os 4%, ou seja, o veículo está imobilizado 96% do tempo, parece cada vez mais aberto o caminho rumo à autonomização do automóvel. A qual, segundo Frey, irá bem mais além da actual introdução de tecnologias que permitem ao condutor entregar, ainda que não de forma permanente, o acto da condução ao automóvel. Culminará, isso sim, lá mais para 2030 ou 2035, numa nova era em que apenas e só ao automóvel será autorizada a condução. De acordo com o teórico, antes da plena concretização dessa nova realidade, há que estar atento aos sinais que a prenunciam como, por exemplo, a criação de vias destinadas exclusivamente a carros autónomos…

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A visão de condução autónoma da BMW, no concept Vision Next

E se a teoria de Thomas Frey poderá parecer, à partida, demasiado ficcional ou até catastrofista, a verdade é que basta pensar um pouco e perguntar-se: quantos de nós, que habitamos nas grandes cidades entupidas de trânsito, não desejámos, pelo menos uma vez, sair de casa de manhã, sem pressas ou correrias? Se isso se resolvesse recorrendo apenas a um smartphone, para chamar um veículo autónomo – que depois nos conduziria descontraidamente até o trabalho, ao mesmo tempo que víamos as primeiras notícias do dia ou conversámos com amigos – não o faríamos? E, ainda para mais, sendo certo de antemão que, uma vez chegados ao nosso destino, não teríamos de andar às voltas e a perder a cabeça à procura de um lugar para estacionar?

Os mais cépticos estarão já a dizer, alto e bom som, que este tipo de serviço já existe, sendo prestado pelos taxistas convencionais ou pelos motoristas de empresas como a Uber ou a Cabify, entre outras. Só que é aqui que começam os despedimentos. Frey recorda que o serviço prestado por estas empresas tem por base um colaborador, que conduz a viatura, e que, além de permeável ao chamado erro humano, implica custos para as companhias. Dois aspectos que desaparecerão num ápice, a partir do momento em que, com o veículo autónomo totalmente implementado, as empresas decidam repensar o seu modelo de negócio, trocando os carros dos nossos dias por uma frota de veículos autónomos.

O fim do negócio automóvel (como o conhecemos)

O negócio dos próprios construtores automóveis vai mudar – não faltando sequer já sinais disso -, com as marcas a preparem-se para se passarem a centrar já não tanto na venda propriamente dita de veículos, mas mais na sua utilização, através da disponibilização dos mesmos no seio de extensas frotas. Com o cliente a deixar de pagar pela propriedade de um só automóvel, antes preferindo assumir apenas os custos inerentes à utilização dos mais variados tipos de viaturas – as que melhor o servem, em determinadas circunstâncias.

O protótipo autónomo da Mercedes F 015

Antecipa Fey que, em resultado deste novo modelo de negócio, os fabricantes acabarão por reduzir muitas das estruturas intermediárias que hoje em dia existem entre si e o cliente final. Como é o caso, por exemplo, dos concessionários ou até das empresas financiadoras, com os gestores de frotas a ganharem, em contrapartida, uma importância substancialmente maior, já que serão eles quem melhor conhecerão os clientes que servem. Já estes tenderão a dar cada vez mais importância, nos automóveis utilizados, a aspectos como o acesso, o conforto a bordo ou as opções entretenimento, em detrimento de questões hoje em dia particularmente valorizadas, como a cor, o tipo de carroçaria e a própria marca do carro!

A par destas alterações na forma de encarar o veículo, por parte do utilizador, o analista do DaVinci Institute destaca igualmente o papel que poderá vir a ser desempenhado pela chamada Geração Z, a qual crescerá sem sentir a necessidade de, por exemplo, tirar a carta e pagar um seguro automóvel; ou até mesmo dos chamados Baby Boomers, demasiado ciosos da sua liberdade para criarem amarras com um carro próprio.

Tal como estes, acrescenta Thomas Frey, indivíduos com menores capacidades financeiras ou menos predispostos para comprar carro próprio, imigrantes, estrangeiros apenas com visto de trabalho num determinado país, além de jovens sem idade para tirar a carta, acabarão certamente também por aderir, com o passar das décadas, aos serviços proporcionados pelas frotas de veículos autónomos. Alguns deles, depois de já terem experimentado outras soluções, como a aquisição de carros mais baratos a marcas cujas vendas se efectuarão exclusivamente por canais online

O fim de muitos trabalhos

Com a disseminação do automóvel autónomo, várias profissões, directa ou indirectamente relacionadas com o sector, tenderão a desaparecer. Entre estas, defende Thomas Frey, estão, desde logo e à cabeça, as profissões relacionadas com a própria condução.

Igualmente em risco estarão, entre outras, profissões como as dos instrutores de condução, analistas de tráfego rodoviário, funcionários de rent-a-car e condutores de veículos de testes, o mesmo acontecendo com os condutores de viaturas especiais, de emergência ou de trabalho (agrícola, industrial, etc). Todas elas passíveis de desaparecerem, graças à autonomia que as viaturas conquistarão, podendo passar a desempenhar a sua missão, sem a intervenção do homem.

Ainda segundo o mesmo autor, o automóvel autónomo deverá levar igualmente a transformações em áreas conexas, deixando de fazer sentido a figura do portageiro ou do repórter de trânsito. Ou não fosse um dos pressupostos da mobilidade do futuro a comunicação de veículo para veículo e de veículo-infraestruturas, o que significa que (em teoria) deixarão de existir engarrafamentos. E, num futuro em que as deslocações se farão em modo eminentemente eléctrico, convém não esquecer que as oficinas e as lojas de componentes automóveis perderão grande parte do seu trabalho, que hoje se encontra ancorado nos problemas associados aos tradicionais motores térmicos. Pelo que, neste horizonte, até os funcionários de postos de combustível ficarão sem o seu ganha-pão, avisa o pensador norte-americano.

Fiscalizar o quê? Quando esta imagem (Sedric, protótipo autónonomo da Volkswagen) for banal no trânsito, isso significa que os veículos autónomos já assumiram as rédeas da condução e não transgridem as regras

Ainda no entender de Frey, até mesmo os serviços policiais, de fiscalização e de justiça, relacionados com a actividade rodoviária (por exemplo, polícias de trânsito e organismos responsáveis tanto pela aplicação de penas e coimas resultantes de infracções rodoviárias, como pela emissão de cartas de condução), acabarão por ver reduzida a sua importância e até meios. Isto porque também as situações para as quais são à partida chamados (controlo de excesso de velocidade e de condução sob a influência de substâncias proibidas, condução perigosa, pesagem de pesados, emissão e aplicação de coimas) deixarão de ter lugar, uma vez que todos os carros autónomos circularão segundo as regras do trânsito e sem a interferência do factor humano.

Começam as mudanças nos carros… e nos próprios condutores

O fim de umas coisas trará o início de outras, defende Frey. A começar pelos próprios carros, que se vão livrar de componentes hoje em dia considerados imprescindíveis, como o volante, o acelerador e o travão, os pneus sobressalentes, as matrículas, os cintos de segurança e até mesmo, o painel de instrumentos, incluindo o velocímetro.

Os habitáculos vão passar a ser projectados visando o máximo conforto e descontracção a bordo

Já os condutores, quando deixarem de o ser, terão menos propensão a fazer determinadas cenas no trânsito, como exteriorizar sentimentos de raiva, exemplifica o fundador do DaVinci Institute. Por outro lado, o facto de não se perderem rumo a um determinado destino, ou de já não terem de lidar com a dificuldade de encontrar um lugar para estacionar, potenciará uma redução dos sentimentos de ansiedade ou de frustração. E, já que não vão guiar, assume o autor, também se sentirão dispensados de fazer test drives para escolher um carro. É que, bem vistas as coisas, também não vão comprar nenhum…

Um novo futuro… no ar

O fundador da Tesla, Elon Musk, defende que neste mundo novo que se projecta, em que só ao automóvel autónomo é confiada a missão de conduzir, serão os próprios homens que acabarão por abdicar de guiar. Desde logo, ao aceitarem e decretarem, através do poder legislativo, que o automóvel é demasiado perigoso para continuar a depender da variável humana. Razão pela qual, e até para a própria segurança de quem nele circula, o melhor mesmo será que se autonomize.

Vahana, o protótipo de carro voador autónomo da Airbus

Para Thomas Frey, a forma como a tecnologia tem vindo a evoluir leva a concluir que automóvel do futuro não se limitará às estradas, conquistará também o espaço aéreo. Sendo que, para os ocupantes, a viagem deixará de ser um momento de envolvimento com a máquina, para passar a ser uma fase de relaxamento completo, descontracção e divertimento – por exemplo, assistindo a um filme num dos ecrãs a bordo, ouvindo um qualquer concerto, ou desfrutando de uma retemperadora massagem. É, de resto, a possibilidade de materialização desta nova realidade, ainda que apenas dentro de algumas décadas, que leva o norte-americano a afirmar acreditar que o carro autónomo conduzirá a uma mudança no paradigma do transporte de pessoas ainda mais radical que a resultante da invenção do próprio automóvel.