O acidente de aviação que na passada quarta-feira fez duas vítimas mortais, na sequência da aterragem de emergência de um Cessna 152, na praia de São João da Caparica, em Almada, está a ser investigado pela Polícia Judiciária, em colaboração com o Gabinete de Prevenção e Investigação de Acidentes com Aeronaves (GPIAA). Caberá a este organismo elaborar um relatório do acidente que, em última análise, conduzirá à resposta a uma questão: as mortes poderiam ou não ter sido evitadas? Se bem que, da parte do GPIAA, “a investigação técnica não tem por objectivo o apuramento de culpas ou a determinação de responsabilidades”.

Os investigadores vão ter de apurar as circunstâncias em que o motor do aparelho deixou de funcionar, ou seja, a rota e o posicionamento exacto do avião, incluindo a altitude, bem como as condições meteorológicas (visibilidade, intensidade e direcção do vento). E, em face disso, se as decisões tomadas pelo piloto foram ou não as que seriam recomendáveis, no sentido de adoptar os procedimentos mais correctos para minimizar danos.

Em paralelo, é igualmente importante conhecer as causas da avaria do motor, sobretudo se existiu ou não incúria por parte dos técnicos que asseguram a manutenção, ou do piloto durante o voo, sendo que este tema está já a ser investigado pelos técnicos do GPIAA, pois a aeronave foi recolhida para um hangar na Cova do Vapor, a fim de ser alvo de peritagem.

Mas enquanto estes elementos não são conhecidos, outros já o são. E levantam dúvidas.

Porque aterrou o piloto a favor do vento e não contra?

O Observador contactou um piloto da TAP e um instrutor de voo e ambos confirmaram que qualquer aluno de um curso de pilotagem de aeronaves, ainda na fase inicial das aulas teóricas, isto é, muito antes de sentar num avião, aprende que a descolagem e a aterragem se realizam contra o vento e não favor. Isto porque, ao contrário dos automóveis, cuja velocidade se define em relação à estrada, nos aviões ela é caracterizada pela velocidade em relação ao ar, pois é este que dá sustentação ao aparelho, permitindo-lhe voar.

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Exatamente o que não aconteceu na Costa da Caparica.

A aeronave já no solo, ainda com a cauda a favor do vento

Esta não é uma questão de pormenor, tanto mais que no próprio manual de instruções do Cessna 152 vem indicado como velocidade de aproximação 60 nós (60 milhas por hora, qualquer coisa como 108 km/h), ideal para realizar manobras de aterragem de emergência, sempre que há falha de motor durante o voo – os procedimentos são distintos consoante se trate de uma falha do motor durante a descolagem, imediatamente após a descolagem ou em voo, como foi o caso reportado pelo instrutor que seguia a bordo da avioneta que aterrou de emergência no areal, Carlos Alberto Conde de Almeida, à Torre de Cascais.

A velocidade de 60 nós é especificada porque, abaixo dela, a aeronave deixa de ter sustentação, e logo de conseguir planar, comprometendo a capacidade de o piloto ter o necessário controlo sobre o aparelho.

Sem motor, sem hipótese?

Segundo nos explicaram, a avioneta que fez duas vítimas na praia de São João da Caparica poderia não ter o motor a funcionar, mas o piloto “continuava a ter pés e manche”, como se diz na gíria, ou seja, controlo sobre o aparelho.

Podia virar para qualquer um dos lados, mergulhar para ganhar velocidade ou elevar o nariz do aparelho para perder velocidade, o que lhe permitia decidir aterrar ou amarar em qualquer local dentro de um determinado raio a partir do ponto em que o motor falhou, raio este que é determinado exclusivamente em função da descida necessária para manter a velocidade dentro dos já referidos 60 nós.

Altitude dava margem de manobra?

Como instrutor e aluno descolaram de Tires, tendo como destino Évora, só o poderiam ter feito por uma via: “No túnel VFR”, de Visual Flight Rules (Regras de Voo Visual), um corredor de saída do aeródromo de Cascais, que tem obrigatoriamente de ser percorrido a 1.000 pés de altitude (cerca de 300 metros), isto porque o corredor em sentido contrário, rumo a Tires, está fixado nos 1.500 pés – medidas impostas para não interferir com a aviação comercial, daí que, ao que nos disseram, a Torre de Lisboa também o monitorize.

Após a avaria, o piloto teria então cerca de 1.000 pés para gerir e encontrar um local para aterrar com o mínimo de danos.

Qualquer instrutor, tendo como função ensinar e incutir a mentalidade de piloto ao seu aluno, sabe duas coisas básicas. Uma é que todos os aviões podem ter problemas de motor. A outra é que, nesse caso, a aterragem de emergência deve ser efectuada contra o vento, pois além de ser o mais seguro é aquilo que garante o mínimo de perdas, humanas e materiais”, aponta-nos uma fonte, que prefere não ser identificada, mas que conhece as circunstâncias em que decorreu o acidente.

Para o mar ou para um mar de gente?

O Observador já aqui colocou esta questão. Mas tem agora mais dados. Importa, por isso, recordar que Conde de Almeida apontou à linha de areia, que começa na povoação da Cova do Vapor, na praia do mesmo nome, e que depois se prolonga pela praia de São João da Caparica até chegar à Costa da Caparica.

Acontece que, neste rumo, o piloto tinha um vento de cauda variável, mas em torno dos 30 nós, tanto quanto o Observador conseguiu apurar. Isto atira a velocidade em relação ao solo da avioneta na aproximação à praia para 90 nós, ou seja 162 km/h, “uma brutalidade”.

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Vendo as imagens disponíveis da altura em que a avioneta toca no solo, verifica-se que Conde de Almeida efectuou, como mandam as regras, uma manobra denominada flare, destinada a reduzir a velocidade antes de tocar na areia – e nas pessoas –, que consiste em elevar o nariz do avião de forma a perder velocidade.

Mas ele não deve ter conseguido baixar dos 40 nós”, avança a nossa fonte.

Ora, a esses 40 nós é preciso ainda somar os 30 de vento de vento de cauda, o que dá uma velocidade em relação ao solo de 70 nós, ou seja, 126 km/h.

Caso o piloto tivesse virado contra o vento, tocaria no solo a 60 nós – ou melhor, 40 depois de efectuar o mesmo flare –, menos os 30 do vento que agora estaria de frente, o que significa que o contacto com a areia seria reduzido para 10 nós, cerca de 18 km/h, muito abaixo dos 126 km/h a que terá aterrado. Com uma agravante: sem motor, seria impossível aos banhistas ouvirem a aeronave a aproximar-se. Só poderiam fugir os que a vissem, estando virados para Norte.

Então, porque é que Conde de Almeida aterrou a favor do vento e não contra?

Os técnicos deslocaram-se de imediato ao local

O Observador falou com o piloto, que recusou prestar declarações. Mas nas inquirições de que será alvo, é possível que Conde de Almeida argumente que, no momento, já não tinha altitude suficiente para voltar para trás, de forma a aterrar contra o vento, uma vez que, segundo as nossas fontes, um Cessna 152 necessita de iniciar uma viragem como esta a um mínimo de 500 pés de altitude para ter hipóteses de a completar antes de tocar o solo.

Porém, se esta explicação pode ser válida em relação à praia de S. João, fica por esclarecer porque não efectuou essa mesma manobra na praia que sobrevoou antes e, logicamente, a uma altitude superior, a praia da Cova do Vapor. Que estava, praticamente, deserta.

Porque não aterrou antes na praia deserta da Cova do Vapor?

Imaginemo-nos por um momento pilotos experientes, numa avioneta sem motor e a perder altitude com uma determinada razão de descida, para mantermos a velocidade de 60 nós rumo à praia de São João da Caparica. Se conseguíamos lá chegar, como Conde de Almeida conseguiu, significava que tínhamos sobrevoado a praia da Cova do Vapor (que está imediatamente antes) a uma altitude mais elevada.

Ora aqui surge a segunda questão: porque é que o piloto optou por não aterrar na praia da Cova do Vapor, visivelmente com menos gente, logo, com menor probabilidade de fazer vítimas, quando a praia de São João estava visivelmente cheia de gente, como provam as imagens que publicamos, tiradas poucos minutos depois da tragédia?

Imagem aérea captada escassos minutos após a ocorrência do acidente, onde se vê o Cessna já rodeado pela multidão. E a praia da Cova do Vapor, ao fundo, praticamente sem ninguém

Pilotos profissionais e instrutores, à semelhança de Conde de Almeida, garantiram-nos que, a menos que o aparelho tivesse alguma outra deficiência até aqui nunca reportada e que lhe limitasse a manobra, seria mais fácil aterrar na praia Cova do Vapor. Bastar-lhe-ia planear a manobra com a devida antecedência, de forma a conseguir virar contra o vento (que teria de ser iniciada acima dos 500 pés, e realizar a aterragem de emergência em condições próximas do ideal, ou seja, aos tais 10 nós (40 do avião menos 30 do vento), isto é, a 18 km/h.

E porque não optou por amarar em vez de aterrar?

A terceira questão que todos colocam e com a qual certamente os técnicos do GPIAA não se irão esquecer de confrontar o piloto é, muito provavelmente, a mais simples: tendo decidido por razões que se desconhece em realizar a aterragem na praia de São João, porque é que o piloto optou por aterrar na areia molhada, em vez de, nos últimos instantes antes de tocar o solo, voltar ligeiramente para o mar e tentar a amaragem?

A resposta a esta questão é crucial, e não basta dizer que se o Cessna tocasse o mar a 126 km/h ficava destruído, uma vez que o trem de aterragem fixo prenderia primeiro na água, o que levaria a aeronave a capotar. Dizem-nos não só que a aeronave está concebida (pelo menos a zona do cockpit) para resistir a embates com alguma violência, como os ocupantes, bem sujeitos pelos eficazes cintos de segurança, teriam grande probabilidade de resistir ao esforço.

Mais, o piloto, já sobre o mar, poderia exagerar no flare e arriscar um stall, manobra em que o avião entra em perda e quase pára no ar, reduzindo drasticamente a velocidade, neste caso antes de cair. A altitude então seria mínima e os danos para os ocupantes também. Em relação ao avião a conversa seria outra, mas ao contrário das pessoas na praia, o Cessna 152 pode ser sempre recuperado através do seguro.

Um acidente similar, com desfecho sem vítimas

Amarar era uma possibilidade a não descartar, de acordo com o que conseguimos apurar, contrariando alguns pilotos mais alarmistas, que afirmaram na primeira hora que isso colocaria em perigo a vida do instrutor e do seu aluno. Tanto mais que amarar foi precisamente a opção de um piloto de 73 anos que, há dois anos, também teve uma avaria de motor naquela zona.

Imagem da nota informativa publicada pelo GIPAA, a propósito do acidente de 2015

A 30 de Agosto de 2015, António Frade ia aos comandos (também) de um Cessna 172 (uma versão mais comprida do 152, com capacidade para quatro ocupantes, mas somente dois a bordo na ocasião) quando teve um problema de motor enquanto rebocava uma manga publicitária sobre o mar, próximo do Bugio.

Aeronave conseguiu amarar de emergência na Trafaria em 2015

O vento estava Sul/Norte, ao contrário do que aconteceu agora, e o piloto sentiu problemas com o motor a 600 pés de altitude e a duas milhas da costa (3,6 km). Dirigiu-se a terra, exactamente no mesmo rumo de Conde de Almeida, ou seja, em direcção às praias povoadas e com todas as condições para realizar uma aterragem na areia, uma vez que o vento de Sul estava já contra a direcção do aparelho, ao contrário do que aconteceu agora. Mas aqui acabam as semelhanças entre o acidente de 2015, em que não morreu ninguém, e o de há dias, que fez duas vítimas.

Imagem constante da nota informativa publicada pelo GIPAA, referente ao acidente de 30 de Agosto de 2015

Perante as praias cheias a Sul, António Frade decidiu virar para norte, para tentar aterrar nas praias quase vazias da boca do rio Tejo. Depois de soltar a manga já sobre terra, provavelmente para a tentar salvar, o piloto virou contra o vento, limitado na manobra pela presença dos silos, mas já não teve velocidade para atingir a praia. Optou então por amarar com o avião nivelado, muito perto da costa, e depois de realizar um ligeiro flare para reduzir velocidade.

Segundo o relatório dos peritos do GIPAA, tocou na água a 30 nós e ambos os ocupantes se salvaram sem danos (o tripulante mais jovem acabou por ter de prestar assistência ao piloto, uma vez que a sua porta não abria e o avião começou a afundar), com a ajuda dos pescadores da zona.

Este caso, em particular, sugere que a amaragem não só é uma solução válida, como aparentemente daria outros contornos ao acidente na Caparica de 2 de Agosto.

Conde de Almeida, a seu tempo, deverá dar a conhecer as razões da sua decisão. Não o quis fazer ao Observador, pese embora Nelson Ferreira, o vice-presidente da G-Air, a empresa ao serviço da qual o piloto se encontrava, nos tenha garantido que “não proíbe ninguém de falar”.