Foram quase quatro horas de debate sobre uma moção de censura que já tinha chumbo anunciado. Mas se o final não era o mais importante — todos os partidos já tinham anunciado o seu sentido de voto, e a maioria de esquerda permanecia unida a segurar o Governo –, o importante foram os argumentos.
Enquanto a esquerda acusou o CDS de “oportunismo” por censurar o Governo numa matéria como esta, que resultou na morte de mais de 100 pessoas, o CDS e o PSD uniram-se para dizer que não havia motivo mais forte para censurar do que o falhanço do Estado. A direita lembrou que Capoulas Santos foi o ministro que mais tempo teve a Agricultura nas mãos, e a esquerda recordou que foi a ministra Assunção Cristas que “liberalizou” o eucalipto. E se Luís Montenegro, do PSD, citou declarações de António Costa em 2002 para dizer que na altura defendia a necessidade de uma moção de confiança para clarificar o apoio dos parceiros, também Telmo Correia citou um Jerónimo de Sousa antigo para lembrar como o PCP era “o campeão das moções de censura”.
Quem ganhou e quem perdeu nas várias frentes?
As responsabilidades do Governo por tudo o que falhou
O ataque. A responsabilidade do Governo foi o argumento central do CDS e também do PSD. O Estado falhou e quem mando no Estado é o Governo. “Num contexto de normalidade financeira e de estabilidade política, falhou clamorosamente. Falhou no exato momento em que foi sujeito a uma prova de fogo. Posto à prova, o Governo falhou”, resumiu Luís Montenegro. Assunção Cristas, por seu lado, enumerou uma dezena de perguntas a António Costa para saber porque é que o primeiro-ministro não tomou certas decisões depois da primeira tragédia em Pedrógão. Se “exonerou uma ministra visivelmente fragilizada e que pediu para sair”, se “demitiu dirigentes da ANPC”, se “reforçou meios do terreno à escala adequada”, se “reforçou verbas no Orçamento”, ou se “pediu desculpas depois da tragédia”. Costa não respondeu a quase nenhuma. Sobre a falha na Proteção Civil, Nuno Magalhães lembrou mesmo que foi Costa, enquanto ministro da Administração Interna, que fez a reforma da ANPC em 2005. “Vai mudar o que fez, e vai mudar no sentido do que já tinha sido feito e o senhor deixou na gaveta?”, atirou. E continuou: “Onde é que os senhores estiveram nos último quatro meses? Só agora se lembraram que é preciso fazer e reerguer. O que fez desde Pedrógão?”
A defesa. Costa respondeu a estas críticas dizendo que agiu antes das tragédias, e que fez a sua parte: ora com a reforma da floresta iniciada em abril de 2016, ora em 2005, quando era ministro da Administração Interna. “Tive a honra de há 12 anos conduzir um processo de reforma do sistema de combate aos incêndios florestais que mereceu grande consenso na Assembleia da República”, disse, acrescentando que anos depois, em 2011, avisou que “aquela reforma só tinha emprestado tempo para se fazer a reforma florestal que faltava fazer”. E concluiu que “a única coisa” de que o podem “acusar” é de ter feito a sua parte: “Lamento que os outros pilares não tenham feito o que era necessário”. Também o ministro da Agricultura, Capoulas Santos, disse que “muito antes de imaginarmos sequer que uma tragédia como a que ocorreu em Pedrógão Grande pudesse ocorrer, o Governo encetou a tarefa de pôr em execução uma profunda reforma da floresta em meados de 2016”.
O contra-ataque. Do lado do PCP e do BE não veio qualquer defesa do Governo. Os partidos da esquerda também fizeram críticas ao Executivo, mas sobretudo contra-atacaram a direita não só por ter levado ao Parlamento uma moção de censura sobre uma tragédia destas dimensões, mas também pelas políticas levadas a cabo durante os seus governos. Só o PS saiu em auxílio de António Costa nesta matéria. “É altura de confrontar o CDS e Assunção Cristas pelo que não fizeram e pelo que fizeram de errado: em 2013 foi revertida a lei que condicionava a reversão dos eucaliptos, ficou conhecida como a lei da liberalização do eucalipto, e na sequência dessa nova lei, 92% do total de comunicações prévias relativas a novas árvores foram sobre eucaliptos”, disse. Também o ministro da Agricultura fez esse papel, dizendo que o CDS é o “grupo parlamentar que menos autoridade moral tem para invocar nesta câmara” o tema dos incêndios, por ser também da responsabilidade do anterior Governo, em particular de Assunção Cristas.
Quem ganhou? A direita, sobretudo o CDS, porque o Governo apesar de dizer que assumia as responsabilidades nunca deu respostas satisfatórias sobre o que correu mal nos incêndios que causaram 110 mortos, preferindo focar-se no que há para fazer agora.
A falta de estadismo de António Costa
O ataque. “Quando o país precisava de um estadista, constatou que tinha apenas um político habilidoso sem fibra nem caráter.” A frase de Assunção Cristas foi referida várias vezes ao longo do debate. Luís Montenegro depois diria mais: “António Costa apareceu na madrugada de segunda-feira (dia 16 de outubro) não como político hábil e experiente que dizem que é, mas como tecnocrata de mediana categoria”. Tudo para dizer que o Governo e o primeiro-ministro não tiveram sentido de Estado a lidar com a questão. Costa não só não pediu desculpas, como não soube “preparar, coordenar, não soube executar uma política eficaz de prevenção e de combate aos fogos”, segundo a líder do CDS. Quando precisava de governar, não governou e não teve mão nas instituições que estão sob a tutela do Estado, que se mostraram “desorganizadas” e sem capacidade de resposta.
A defesa. Costa respondeu que a melhor forma de agir daqui para a frente era pôr em prática as recomendações da comissão técnica e independente — que são isso mesmo, independentes. E para isso colou todos os partidos à solução. “Depois de todos vocês terem concordado com a constituição de uma comissão técnica independente, a função do Governo é dar seguimento às recomendações da comissão para nos afastarmos da demagogia e assentarmos num compromisso científico”, disse. E até se comprometeu a mexer no OE para 2018, em sede de especialidade, para aumentar a verba se fosse preciso. Garantiu que o OE de 2018 “vai responder às necessidades” da floresta, sem pôr em causa as políticas de reposição de rendimentos. Nem sequer no défice vão pesar, já que Costa diz que muitas dessas medidas vão ser contabilizadas como excecionais à luz de Bruxelas.
O contra-ataque. PCP e BE contra-atacaram o CDS por estar a falar em sentido de Estado quando é o partido “que quer menos Estado”. Jorge Costa, do BE, foi claro: “O Estado falhou? Falhou sim, mas como se podem insurgir os que sempre exigiram Estado mínimo?”, perguntou, referindo-se ao CDS e ao PSD, mas em particular ao CDS. Também António Filipe, do PCP, tinha culpado as “políticas de menos Estado” pela fragilização do país.
Quem ganhou? A oposição. Apesar dos esforços de António Costa para se redimir, o que aconteceu deixa uma marca muito forte na perceção de quem é o primeiro-ministro. Apesar de tudo, Assunção Cristas foi longe quando se referiu ao caráter de Costa. Ele, ao contrário do costume, e talvez para não se irritar, fingiu que não ouviu.
Politiquice? Aproveitamento? Censurar governo era inevitável?
O ataque. Antevendo as críticas da esquerda sobre o “oportunismo” de censurar um Governo à boleia de uma tragédia com uma dimensão humana ímpar, o CDS preparou o argumento de que o debate sobre a moção de censura era “inevitável”, apesar de o Governo o querer “esconder”. Telmo Correia disse que o argumento de que o tema dos incêndios não era político não colhia, porque “não há tema mais político do que o falhanço absoluto do Estado”. Além de que “não há sentido mais nobre para a política” do que a definição de que “política é o que se ocupa da sociedade, da comunidade, do Estado”.
A defesa. A maior defesa da esquerda — e aqui foram mais os partidos à esquerda do PS que usaram este argumento — foi atacar a moção de censura em si mesma. Do lado do BE, Jorge Costa criticou a “instrumentalização das vítimas” e “mesquinhez política” do CDS ao apresentar uma moção de censura sobre a tragédia dos incêndios. E disse que era “uma manobra perigosa do CDS, uma instrumentalização das vítimas e uma desumanização do adversário”, porque punha aqueles que iriam rejeitar o texto a dizer, de forma indireta, que a morte de 100 pessoas não era grave. Também Jamila Madeira, do PS, falou em “fait-divers entre o PSD e o CDS”, ou em disputa entre CDS e PSD sobre que aparece “logo à noite a abrir o noticiário”.
O contra-ataque. O contra-ataque do CDS, preparado para este argumento, foi simples: “De quem é o oportunismo? De quem como nós exige responsabilidades e consequências, ou de quem falhou e não assume as suas responsabilidades?”, disse Telmo Correia. E antes, já João Almeida tinha falado em “hipocrisia política” do PCP e do BE, que antes eram o “campeão e vice-campeão” das moções de censura, e agora, porque apoiavam o Governo, mudavam de atitude.
Quem ganhou: Empate. Apesar de a maioria das moções de censura apresentadas desde 1976 terem nascido na esquerda — sobretudo pela condução da política económica –, não deixa de ser estranho que agora PCP e BE sejam contra a apresentação desta moção de censura. O CDS marca com este argumento: se o Estado falhou desta maneira, então há razão que baste para censurar o Governo. Mas também é verdade que está a tirar dividendos políticos da tragédia, como acusou a esquerda.
O “amiguismo” de Costa nas nomeações
O ataque. Tanto o CDS como o PSD usaram o argumento de que as nomeações do primeiro-ministro para a Proteção Civil foram feitas com base no critério da amizade e não da competência. “Assistimos ao falhanço de uma estrutura pensada e estruturada pelo ex-ministro da Administração Interna António Costa e nomeada agora pelo primeiro-ministro António Costa de acordo com o critério da amizade e não o da competência“, começou por dizer Assunção Cristas. O PSD viria a chamar-lhe de “amiguismo”, com o deputado Amadeu Albergaria a lembrar ainda o caso de uma tentativa de nomeação para os bombeiros daquele distrito de um dirigente do PS local, que só não foi avante “porque os 25 comandantes de bombeiros do distrito denunciaram esta situação”. E Hugo Soares era mais concreto ainda: “Foi a sua incompetência que fez trocar gente competente na Autoridade Nacional de Proteção Civil pelo seu conjunto de amigos que se revelaram verdadeiramente incompetentes”.
Esta questão das nomeações de Costa viria também a ser invocada por um dos parceiros parlamentares do Governo: os Verdes. Heloísa Apolónia questionou a escolha de Tiago Martins Oliveira para a unidade de missão para enfrentar os incêndios: “O país precisa de alguma credibilidade nas escolhas que se fazem. Quando nomeia uma pessoa que vem do grupo Navigator [ex-Portucel], que tem interesses concretos ligados à floresta, é legítimo que as pessoas se questionem”, disse.
A defesa. António Costa não respondeu diretamente à questão das nomeações feitas com base na amizade, mas respondeu à nomeação de Tiago Oliveira, defendendo-a em toda a linha. Garantiu que Tiago Oliveira “não é acionista da Navigator (ex-Portucel), é apenas trabalhador, e que tem prestígio à prova de bala”. Até já foi bombeiro e sapador, disse. Assunto arrumado. Mas no ar ficou sempre a questão dos membros da Proteção Civil nomeados em janeiro deste ano — e nem o PCP nem o BE saíram em defesa do Governo nesta matéria. Só Fernando Rocha Andrade, ex-secretário de Estado deste Governo, disse que “não é certamente pela falta de preparação dos profissionais da Autoridade Nacional de Proteção Civil que se devem os incêndios que ocorreram, por exemplo, em Aveiro no dia 15”. Do lado do Bloco de Esquerda, até Pedro Soares disse que “receava” que o Governo não fosse capaz de “enfrentar os interesses instalados”.
Quem ganha: a direita. Costa até saiu por cima na defesa curricular do recém-nomeado chefe da unidade de missão, mas ninguém o defendeu na questão das nomeações para a Proteção Civil. Até a esquerda tem dúvidas sobre a capacidade de o Governo enfrentar interesses instalados, e até o próprio Costa diz que uma das recomendações dos técnicos que vai passar do papel à prática é a “profissionalização e capacitação” dos comandos, referindo-se a um novo quadro da Autoridade Nacional de Proteção Civil.