A vida é horrível: ou temos sede, ou temos fome, ou vontade de ir à casa de banho ou calor ou frio. Sofremos com desgostos de amor, despedimentos, despedidas, doenças, mortes, notas negativas, filas de trânsito ou dores menstruais. O pior? A morte não é muito melhor, bem pelo contrário, pelo que o cenário “se é assim tão mau por que não te suicidas e pronto?” não se qualifica como saída válida. O ideal, garante o filósofo a que a New Yorker deu recentemente o epíteto de “mais pessimista do mundo”, é mesmo nem sequer chegar a nascer.

Eis a premissa do movimento anti-natalista, divulgado essencialmente por David Benatar, diretor do departamento de Filosofia da Universidade do Cabo, na África do Sul, e autor de ‘Better Never to Have Been: The Harm of Coming into Existence’ (qualquer coisa como ‘É Melhor Nunca Ter Sido: O Mal de Passar a Existir’), e seguido por cada vez mais pessoas em todo o mundo.

Para Benatar, que dedica a obra aos pais — “apesar de me terem trazido para a existência” –, a saída para o universo é nada menos que a extinção da espécie humana e a forma de lá chegar o fim de todos os nascimentos. “Embora as boas pessoas façam grandes esforços para poupar os seus filhos do sofrimento, poucas delas parecem aperceber-se de que a única forma garantida de prevenir todo esse sofrimento é não lhes dar sequer vida”, escreveu o sul-africano, de 51 anos, já em 2006.

Inspirados por esta corrente de pensamento, partilhada por outros autores, como a britânica Sarah Perry, autora de ‘Every Cradle Is a Grave’ (‘Todos os berços são uma sepultura’), ou o norte-americano Thomas Ligotti, responsável por ‘The Conspiracy Against the Human Race’ (‘A Conspiração Contra a Raça Humana’), alguns espanhóis começam a tratar do assunto clinicamente.

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Uma reportagem da revista Papel, do El Mundo, ouviu dois casais anti-natalistas que, garantem, nunca na vida irão ter filhos — apesar de alguns nem terem idade legal para isso, a convicção é tanta que conseguiram arranjar forma de se esterilizarem e assegurar o assunto.

Gemma Orozco, de 25 anos, garante que é antinatalista desde que se recorda — “Viver é sofrer e quem não existe não sofre. Sou anti-natalista desde que faço uso da razão” — e foi por isso que, com apenas 23 anos, se dirigiu ao centro de saúde e pediu que lhe laqueassem as trompas. “Disseram-me que não, que para fazê-lo tinha de ter pelo menos 35 anos ou dois filhos”, contou à Papel, três meses depois de finalmente fazer a intervenção, numa clínica privada. Marc, seu namorado, como não tinha seguro de saúde não conseguiu cumprir o objetivo: o sistema nacional de saúde espanhol não lhe permitiu que fizesse uma vasectomia.

“Não só lhe falei [à médica ginecologista que a consultou] sobre as minhas objeções éticas e morais face à ideia de trazer ao mundo uma pessoa sabendo de antemão que iria sofrer, como também lhe expliquei os meus argumentos ecológicos: o nosso mundo é um mundo superpovoado com gente a mais, onde a indústria pecuária é a principal responsável pelas alterações climáticas e pela desflorestação, não é razoável trazer para cá um novo ser humano. Já para não falar nos motivos políticos: vivemos sob um capitalismo terrível e sem piedade e ter um filho significa dar ao sistema um novo escravo, mais carne para canhão”, justificou Gemma Orozco à Papel. “Considero que ter um filho é um ato egoísta que responde apenas aos interesses dos progenitores“, concluiu.

Audrey García, de 39 anos, também laqueou as trompas aos 35. E, garantiu, inspiradas pelo seu blogue, que entretanto desativou, 14 pessoas ter-lhe-ão seguido o exemplo. “Falar da extinção humana pode parecer muito forte, mas a verdade é que somos algo nefasto. Extinguimos animais, destruímos o meio ambiente, não paramos de lutar. Também é inegável que só por nascer cada um de nós vai ter de lidar com o sofrimento, se não mais, pelo menos com o sofrimento e o medo que vêm com a morte.”