O terreno vale mais de um milhão mas foi cedido pelo “preço (simbólico)” de cinco euros à Paróquia de Telheiras. A Câmara Municipal de Lisboa investiu nesse terreno um valor — que não quis revelar ao Observador — para a construção de um jardim para um ano depois, em 2016, celebrar um contrato-promessa que viria a ceder o direito de superfície desse mesmo terreno à Paróquia de Telheiras. Trata-se de um terreno — designado Lote K0 — situado na esquina entre a Rua José Escada e a Rua Hermano Neves, em Telheiras, na freguesia do Lumiar, em Lisboa.

Depois de o investimento estar feito e com o terreno a pertencer à Paróquia, o jardim pode agora vir a ser destruído para dar lugar a um centro paroquial, uma igreja e uma capela mortuária — o que está a deixar alguns moradores descontentes. É que o espaço para onde está prevista a construção é adjacente ao Jardim de Infância de Telheiras e à Escola Básica nº1 de Telheiras. A Junta de Freguesia e alguns encarregados de educação opõem-se a esta construção que consideram “megalómana”.

O Lote K0 está na esquina entre a Rua José Escada e a Rua Hermano Neves, em Telheiras, na freguesia do Lumiar, em Lisboa.

Quem vem à missa já sabia deste projeto há mais tempo”, aponta o padre João Paulo Pimentel ao Observador, acrescentando que tem pedido “sugestões aos paroquianos que vão à missa”. Mas a comunidade no geral só se apercebeu mais recentemente, quando foi anunciado o projeto vencedor e foi divulgado na página da Paróquia. A ideia de que as crianças “irão coabitar paredes meias com esta realidade” levou os pais e encarregados de educação a criar uma petição que conta, até ao momento da publicação deste artigo, com 1947 assinaturas.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Em causa está a construção de um edifício de três pisos, com torre campanária, uma igreja com 600 lugares, um Centro Paroquial e uma capela funerária em piso subterrâneo, onde estão ainda previstos cerca de 100 lugares de estacionamento, segundo explicou o presidente da Junta de Freguesia do Lumiar, Pedro Delgado Alves, ao Observador, acrescentando desde logo que se opõe a este projeto.

O facto de as crianças terem de “coabitar com esta realidade” está longe de ser o único problema, ao qual se juntam questões de logística. Rita Patrício, uma das promotoras da petição alertou, em declarações ao Observador, que uma das ruas adjacentes ao Lote K0 não tem saída, o que causa “problemas de trânsito brutais”. As intervenções que aconteceram no terreno facilitavam a “movimentação na tomada e largada de crianças nas escolas”.

O projeto provisório da igreja, centro paroquial e capela mortuária que será construído no Lote K0 (Foto: Site/Paróquia de Telheiras)

O padre da Paróquia de Telheiras, João Paulo Pimentel admite que é possível “sobreviver” sem a construção desta nova igreja, mas explica essa necessidade face ao crescimento do número de paroquianos: “Não podemos ter um centro de acolhimento de idosos. Não podemos armazenar géneros alimentares. Neste momento, temos um armário porque não temos mais sítios para os colocar. As salas de catequese são minúsculas. Sempre que quero organizar uma atividade com os escuteiros é uma confusão”.

Reconhecendo que as obras são uma “chatice”, o padre defende que a nova construção vai “facilitar a vida aos invisuais, uma vez que não terá degraus nem colunas” e revelou que o projeto prevê “duas zonas para crianças, uma zona onde se pode rezar, quando a igreja está fechada, e um consultório familiar”. O padre revelou ainda que a arquiteta responsável pelo projeto, Maria Alexandra de Moura Cantante Viana Baptista, teve em conta as necessidades das crianças das duas escolas e “dedicou um átrio de 900 metros quadrados onde as pessoas podem estar e que tem uma passagem com passeio de uma escola à outra”. “Havia outros projetos, este foi o escolhido. Penso que a vizinhança só teria a ganhar”, remata.

Uma outra questão é colocada por Pedro Delgado Alves: “Não só já existe uma Igreja no bairro de Telheiras a escassos 200 metros do local, como a proximidade das duas escolas torna o local inadequado”. Os limites de alturas, a volumetria, o “impacto muito significativo nos equipamentos escolares ao lado, privando-os de exposição solar e impedindo a fruição do espaço” e o impacto das capelas mortuárias, quer devido à proximidade da escola, quer devido ao impacto na circulação” são algumas das razões que levam o autarca a concluir que o projeto “não é compatível com o respeito pelo enquadramento da envolvente urbanística”:

Estamos a procurar, desde já, sensibilizar a paróquia para uma necessidade de reponderação e revisitação do projeto. E também estamos a antecipar a nossa preparação da avaliação do projeto para depois assegurarmos a intervenção no processo de licenciamento, formulando a necessidade de redução substancial de volumetria e de necessidade de inúmeras condicionantes”, disse ainda o autarca.

Pedro Delgado Alves alertou ainda que “não há qualquer processo de licenciamento nem apresentação formal de projeto”, além do projeto divulgado pela paróquia. O autarca explica que o “projeto em concreto tem de ser licenciado e respeitar as respetivas regras”. A Câmara Municipal de Lisboa, numa resposta por escrito enviada ao Observador, garantiu que “até ao momento não deu entrada nos serviços da Câmara Municipal de Lisboa qualquer projeto para aquela parcela de terreno”, acrescentando que “quando e se tal se verificar, a CML não abdicará de analisar o projeto e de fazer valer todas as suas prerrogativas para fazer cumprir a legislação urbanística em vigor”.

O padre João Paulo Clemente disse também que não tem a “mínima hipótese de construir sem o apoio do bairro” e que “se tiver sete mil pessoas contra e seis mil a favor” não vai avançar com o projeto que está em causa. Mas esclarece: “Tenho um contrato com a Câmara que me obriga à construção”. É que o contrato-promessa cede o direito de superfície “exclusivamente à construção de um novo equipamento religioso” a começar em 2019. Isto significa que “a igreja vai ser construída, pode é não ser a que está no projeto” a não ser que o contrato seja rescindido. O padre explicou ainda que o projeto final tem de ser entregue à Câmara de Lisboa até novembro deste ano e até lá vai tentar “chegar a um acordo até porque há muitos aspetos negociáveis. “Não sei como isto vai acabar”, acrescentou.

A Câmara deu, tirou e voltou a dar. Por que mãos andou o terreno?

O projeto ainda está no papel, uma petição já circula pela internet mas a polémica começou há vários anos. Em 2003, foi celebrado um contrato-promessa entre o Patriarcado de Lisboa e a Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL) — uma empresa que auxiliava a Câmara Municipal nas questões de urbanismo. O contrato-promessa era relativo àquele terreno, o Lote K0. Na altura, a EPUL era a “dona legítima possuidora” do terreno, segundo o documento a que o Observador teve acesso, e também do Convento da Nossa Senhora da Porta do Céu — que a EPUL expropriou ao dono do imóvel, em 1983, contava o jornal Público em 2015, uma vez que o convento se encontrava abandonado e arruinado.

Apesar de pertencer à EPUL, foi a Paróquia de Telheiras — na altura Fábrica de Igreja Paroquial do Lumiar — que o ocupou o convento para atividades e armazenar bens. O contrato-promessa previa o seguinte: a Paróquia de Telheiras desocupava o convento e, em troca, a EPUL cedia o direito de superfície do Lote K0 pelo valor de cinco euros e fazia obras na Igreja da Porta do Céu, no valor de 497 mil euros.

Já na altura da celebração deste contrato, em 2003, era nítida a intenção de “construção e manutenção de um edifício, para exercício de culto católico e fins assistenciais e culturais conexos com múnus apostólico do Patriarcado de Lisboa” no Lote K0. No contrato, é também apontada a razão que justifica essa construção:

A Urbanização de Telheiras está carenciada de mais uma Igreja Católica e de um Centro Social e Cultural conexo com o múnus apostólico da Igreja Católica, de qualidade, que permita dar uma resposta adequada às crescentes necessidades da população católica de Telheiras, em matéria prática da sua religião”.

O Patriarcado via então realizado o pedido de cedência desse terreno, que tinha feito dez anos antes, em 1993, para ali construir a igreja. Mas com uma condição: “Não exceder o prazo máximo de 60 meses a contar da outorga do presente Contrato, para iniciar o funcionamento do equipamento religioso a construir no lote de terreno”. Ou seja, as obras teriam de ser começadas e concluídas em cinco anos, a não ser que o a EPUL prolongasse o prazo.

Tal não aconteceu. A paróquia desocupou o convento, a EPUL realizou as obras na Igreja, mas as obras no Lote K0 não foram concretizadas. A escritura que se devia “celebrar no prazo de dois anos” também não foi celebrada, embora a EPUL tenha dito que pediu ao Patriarcado os documentos necessários para o fazer, mas não os recebeu. O convento que deveria ficar nas mãos da EPUL, acabou por ser vendido à SOCEI — uma cooperativa ligada à Opus Dei que é dona do Colégio Mira Rio — em 2011. O convento acabou por ser parcialmente demolido e integrado no Colégio. De acordo com o jornal Público, só em 2012 a Paróquia de Telheiras contactou a EPUL e o presidente da Câmara, António Costa, para marcar a celebração da escritura. No ano seguinte, chegou a resposta da EPUL: uma vez que as obras no lote K0 não foram concretizadas no prazo estipulado, o direito de superfície extinguiu-se “automaticamente”. O terreno continua nas mãos da EPUL.

Após uma tentativa da EPUL de vender aquele terreno e várias outras do Patriarcado de conseguir a cedência do direito de superfície, estamos em 2014, a EPUL é extinta e os terrenos passam a pertencer à Câmara Municipal de Lisboa. Explica o presidente da Junta de Freguesia do Lumiar que, “desconhecendo o histórico anterior e tendo havido ausência de novas diligências para a Igreja, os serviços da CML optaram por usá-lo para expansão das hortas urbanas do bairro — um pedido antigo da população. Mesmo que transitório, seria sempre uma solução de um uso coletivo” — um uso que veio despertar os desejos do Patriarcado que, “verificando que o terreno que lhe estava contratualmente prometido desde 2003 estava a ter outro uso, retomou o assunto e exige a celebração do contrato definitivo”.

Tal viria a acontecer em 2016, quando a autarquia decidiu fazer novo contrato-promessa que ia buscar as condições assinadas em 2003, e que tinham sido entretanto revogadas. “É da intenção do Município honrar o contrato anteriormente celebrado pela extinta EPUL”, pode ler-se no documento a que o Observador teve acesso, que começou a ser preparado em outubro de 2015 — pouco depois de ter sido construído um jardim no Lote K0. A proposta para o contrato-promessa foi aprovada em Assembleia Municipal com 12 votos a favor e dois contra, do PCP. Na altura, segundo a ata a que o Observador teve acesso, o vereador João Ferreira foi um dos que se opôs à proposta questionando se foram apresentados “outros locais alternativos” ao jardim. O padre Rui Rosas, que esteve na paróquia durante 12 anos, esclareceu ao Observador que o Patriarcado não aceitou outros espaços por uma razão: “Este [Lote K0] era o único com espaço suficiente”.

O vereador João Ferreira questionou ainda a razão pela qual foi feito um investimento na construção de um jardim para, dois anos depois, vir a ser destruído. Num artigo publicado em 2016, pelo jornal Público, a Câmara Municipal esclareceu que a construção do jardim foi feita para “benefício a população até que seja iniciada a construção” da igreja. O jardim deverá permencer intacto até 2019 já que o contrato-promessa de 2016 prevê que as “construções e ocupações atualmente existentes até à data em que se venha a iniciar a construção por um período nunca inferior a 2 anos” sejam mantidas.